Crise no Haiti: abalos prenunciam o colapso do regime de Jovenel Moïse!

Recebemos este artigo do ELAPRE, um grupo de jovens revolucionários do Haiti. O Haiti vem testemunhando a mesma intensificação da luta de classes que temos visto em muitos países do mundo. Nos últimos anos, as massas no Haiti vêm lutando para mudar a sociedade e poderiam ter derrubado o governo de Moïse diversas vezes. Porém, o seu governo é salvo pela classe dirigente e pela direção reformista dos movimentos populares. Não enxergando nenhum caminho a seguir sobre esta base, o ELAPRE foi formado para estudar as ideias do marxismo, apreender os ensinamentos do passado e construir uma organização revolucionária capaz de capitanear a luta pelo socialismo.

A situação econômica e social do Haiti continua se agravando desde a chegada de Jovenel Moïse ao poder. Trata-se de uma verdadeira descida ao inferno, planejada pela ínfima minoria de famílias burguesas que detêm a maior parte das riquezas do país. Isso inclui as famílias Apeid, Boulos, Bidgio, Mevs, Abdallah, Deep, Brandt, Braun e Accra.

A fim de gerar grandes quantidades de dinheiro, essas famílias burguesas ocasionalmente reciclam a criminosa e abominável máquina de exploração, roubo e corrupção. Esses patrões foram os principais financiadores de Jovenel Moïse durante sua campanha eleitoral de 2016 para se tornar o titular do poder executivo do país. Graças ao suporte financeiro do setor privado, o Partido Haitiano Tèt Kale (PHTK), de Jovenel Moïse, logrou subornar membros do Conselho Eleitoral Provisório de 2016 e contratar os serviços de chefes de quadrilhas e da mídia. A presença de Jovenel Moïse marca a continuação mais radical da política da direita liberal criminosa do país, caracterizada pela corrupção generalizada e o desperdício de recursos públicos.

Diversas manifestações ocorreram desde sua instalação no Palácio Nacional. Os eventos ocorridos nos dias 6 e 7 de julho de 2018, causados pelo aumento dos preços dos produtos derivados do petróleo para mais do que o dobro de seu valor, foram uma real expressão de raiva contra o poder e a classe dominante. Foi um verdadeiro raio fulminante das camadas populares, saqueando edifícios públicos e alguns negócios. Por volta de agosto do mesmo ano, houve várias manifestações de larga escala envolvendo os “petrochallengers”, partidos e organizações políticas de oposição, cujas principais reivindicações eram as seguintes: a renúncia do presidente Jovenel Moïse, justiça e a recuperação dos fundos do programa PetroCaribe, desviados pelas autoridades do mais alto escalão do Estado. Uma outra onda de manifestações paralisou o país por completo no fim de 2019. Nesses três meses de suposto confinamento, mesmo o comboio presidencial, quando não se encontrava bloqueado na residência do presidente em Pétion-ville, era obrigado a mudar de rota para acessar o Palácio Nacional.

As mobilizações populares contestam as políticas liberais e corrompidas do poder. De fato, apesar do descontentamento da população, as medidas adotadas pelo poder seguem superficiais e propagandistas, não sendo em nenhum aspecto suficientes para atenuar a crise. Uma das medidas preferidas do poder consiste em substituir um integrante do governo por outra pessoa do mesmo grupo, muitas vezes mais estúpido e incompetente, ou envolvido em escândalos de desperdício de recursos públicos.

O poder de extrema direita de Jovenel Moïse traz consigo todas as podridões e trivialidades. Trata-se um regime destrutivo e mais hostil às demandas populares.

À medida que a situação sanitária das famílias se deteriora, as medias políticas aplicadas as desgastam ainda mais. Em vez de trabalhar para conter a propagação da COVID-19, Jovenel Moïse se aproveitou deste momento de incerteza para implementar restrições absurdas e antipopulares em seu decreto de 16 de junho de 2020. Esse decreto tem o efeito de exigir que cidadãos paguem uma multa de um quinto do salário mínimo mensal caso sejam abordados na rua pela polícia sem o novo modelo da carteira de identidade nacional unificada. Isso é contestado pela população por conta de seu caráter demagógico e por ter ocorrido num contexto de corrupção e graves irregularidades institucionais.

A política de poder de Jovenel atropela os frágeis direitos adquiridos pela sociedade haitiana para tudo outorgar à burguesia e às pessoas próximas de seu partido. No momento em que a disseminação do coronavírus está a todo vapor, o governo permitiu que os donos de usinas têxteis chamassem de volta ao trabalho os operários, mandados para casa em meados de março devido à disseminação do vírus. Entretanto, nenhuma medida sanitária adequada foi adotada nessas empresas.

Desde o início da pandemia, nenhuma medida séria foi tomada para proteger a população contra a contaminação, exceto manobras ousadas de propaganda enganosa e estatísticas falsas utilizadas pelas autoridades estatais para ocultar a verdadeira realidade da doença. Por outro lado, os números mais recentes indicam que a contaminação avança em um ritmo vertiginoso.

Essa má gestão dos riscos da doença também foi marcada pelos desvios de recursos e pelos roubos de equipamentos e materiais sanitários doados cometidos pelos funcionários públicos estatais. Embora mais de 150 milhões de dólares tenham sido desbloqueados, nem mesmo um centro de quarentena bem equipado foi implementado nos departamentos do país. Desconfiados, os doentes preferem ficar em casa e buscar tratamentos baseados em medicina tradicional. O Estado se alega em ver mais vítimas pois isso acalma as mobilizações contra o governo. Consequentemente, o Estado se aproveita disso para aumentar sua política de repressão contra pessoas que manifestam seu descontentamento nos bairros populares.

No Haiti, o Estado planeja a miséria. Todas as instituições são fragilizadas e mantidas em um estado de incompetência, extorsão e total desregulamentação. Elas são incapazes de oferecer serviços de qualidade à população. Por outro lado, essas instituições são lucrativas para as camadas privilegiadas. Isso ocorre porque elas podem manipular as leis institucionais para liberar subornos e colocar no poder pessoas irresponsáveis, prontas para servir cegamente à burocracia corrompida e criminosa. O funcionamento medíocre das administrações públicas aumenta o déficit do Estado. Em uma declaração, o atual Ministro da Economia e Finanças, Patrick Boisvert, disse que o Estado Haitiano registrou perdas de mais de 1,7 bilhões de dólares nas suas vendas de derivados de petróleo nos últimos anos. Contudo, ele é incapaz de dizer que a grande parte desses recursos é desviadas por ele e sua equipe no poder. Pois os relatórios de auditoria do Tribunal de Contas e Contencioso Administrativo já evidenciam a extensão do roubo de ativos cometidos por dirigentes do mais alto escalão do Estado.

Em 5 de junho de 2020, o Conselho de Ministro, na ausência de um parlamento, aprovou o orçamento para o ano fiscal de 2019-2020 e previu um montante total de 198,7 bilhões de gourdes (moeda haitiana). Desse montante, 90 bilhões de gourdes devem vir da arrecadação tributária do país, um valor significativamente inferior ao que deveria ter sido gerado na base tributária. Porém, a burguesia importadora está organizando gigantescas fraudes na alfândega, na Direção Geral de Impostos, no Ministério do Comércio e Indústria e outras instituições públicas. Além disso, ela goza de um pacote de isenções tributárias e importantes subsídios do Estado. Tais fatos indicam que Jovenel Moïse é o filho dócil e o servidor fiel da classe dominante, atendendo a todos os seus caprichos.

Por outro lado, a burguesia haitiana e a burguesia imperialista exploram a classe trabalhadora com um salário mínimo de aproximadamente 4 dólares por jornada de trabalho, que por vezes pode durar até 15 horas. Esses chefes estão no negócio de atacado e também no negócio de varejo, dominando o sistema bancário do país. O banco central do país está sob o seu controle total. Esses magnatas nacionais se organizam em um cartel para criar bancos privados, como Unibank, Sogebank, Capital Bank e Banque Union Nationale (BUH). A última circular do Banco Central, de número 114-1, comprova a intenção do Estado de aumentar o controle dos patrões sobre a economia, dando direito às casas de câmbio de pagar transferências de dólares em moeda nacional, permitindo dessa forma que somente os patrões detenham dólares, à medida que a economia é dolarizada.

Todas as desgraças são provocadas para piorar a vida da população pobre do país. A fome se encontra em níveis extremos, a insegurança está a todo vapor e provoca muitas mortes por disparos de armas de fogo nos bairros pobres do país. Mesmo o relatório de investigação de 15 de junho de 2020 da chefe do Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti, Helen Meagher La Lime, comprovou o aumento de homicídios dolosos e sequestros no Haiti nos quatro primeiros meses do ano. Ela relatou um aumento de 33% de mortes registradas pela polícia, afirmando que o Haiti é uma ameaça à estabilidade da região do Caribe. Todavia, quem passa o dia nos bairros pobres do país sabe claramente que a realidade da insegurança e seu planejamento é algo bem mais complexo do que é apresentado nos relatórios oficiais. Pois aos olhos de todas as organizações internacionais, o Estado financia gangues de bairro e lhes fornece armas para executar pessoas que se opõem às suas políticas. Senadores, deputados e outros integrantes do governo são pegos em flagrante cometendo sequestros ou transportando drogas e mercenários em carros oficiais do Estado; entretanto, eles permanecem impunes. A comunidade internacional, e principalmente os Estados Unidos, é cega e surda a tudo isso e continua a aplaudir e apoiar o regime, apesar de sua desonestidade.

Sobre a questão da insegurança no Haiti, a organização de direitos humanos “Fondasyon Je Klere” (FJKL) mostrou a gravidade da situação em seu relatório de 22 de junho de 2020, destacando a formação recente de uma coalizão denominada “G9 ak alye”, composta pelos mais conhecidos chefes de quadrilha ligados ao poder. Esse relatório especificou a missão do G9: atacar os bastiões de resistência ao poder e eliminar jovens que se organizam nos bairros populares. O partido governante PHTK, em preparação para as eleições, está trabalhando intensamente para organizar essas quadrilhas em milícias do poder, as quais deverão executar seu plano macabro, focado no terrorismo de Estado e no crime organizado para a renovação do regime. Pela força das armas e do dinheiro, esse poder desacreditado e rejeitado pela população pretende se manter à frente do país.

Os problemas econômicos do Haiti atingiram um ponto crítico. Eles mantêm a população em um círculo vicioso de miséria, entre a calamidade e o desespero, mas também gerando a raiva, a indignação e a revolta. Trótski cunhou uma frase notável: “o processo molecular da revolução”. Ele considerou a dialética como uma ferramenta essencial para desenvolver sua teoria social e compreender o que realmente acontecia na sociedade de sua época. Ele explicou que o processo de mudança de consciência das massas normalmente ocorre de modo progressivo, desenvolvendo-se lenta e imperceptivelmente, mas também de maneira inexorável, até chegar a um ponto de inflexão crítico, em que a quantidade se transforma em qualidade e as coisas se convertem em seus opostos. Essa formulação de Trótski nos insta a utilizar a dialética materialista para compreender a evolução dos fenômenos que estão ocorrendo. No entanto, no Haiti, há um acúmulo de revolta, raiva e frustração ainda tomando forma sob a superfície, cujo ponto de inflexão repentinamente resulta em poderosos movimentos populares. Mais uma vez, com o canibalismo extremo da burguesia e seus subordinados do partido governante PHTK, esses tremores anunciam a iminência de fortes tremores de terra.

Dessa forma, o povo empobrecido, desperto pela raiva e revolta, ainda representa o real potencial revolucionário. É e sempre foi a força social nas fábricas, no campo e nos bairros populares que ataca a ordem burguesa corrompida e parasitária, sem que nenhum burguês, pequeno burguês ou especialista em engenharia social pudesse prevê-lo. O único problema é que a cada investida contra o sistema, a suposta esquerda não é de maneira nenhuma capaz de articular uma expressão organizada do sentimento revolucionário das massas.

Construção de uma alternativa de esquerda revolucionária socialista no Haiti

O Haiti sempre teve uma esquerda que se assimilava como vanguarda na ação revolucionária dos diversos movimentos populares. Da luta dos escravos pela independência, do movimento dos Cacos e dos piquetes de insurreição de Charlemagne Péralte contra a ocupação dos Estados Unidos a 1934, quando revolucionários como Jacques Romain e Stephen Alexis fizeram as primeiras tentativas de construir organizações socialistas, sempre houve uma esquerda que busca e se projeta para um futuro incerto. Acontecimentos se sucederam e levaram à formação de diversas organizações sindicais e populares na década de 1980 contra a ditadura de Duvalier. O movimento popular conseguiu vencer a ditadura em 1986, mas teve dificuldade em verdadeiramente se constituir como uma força organizada em torno das ideias socialistas revolucionárias, as únicas capazes de romper radicalmente com a estrutura econômica burguesa parasitária até então vigente na sociedade haitiana.

O potencial revolucionário popular em luta desde esses anos até nossos dias não conseguiu se tornar autônomo e evitar, por um lado, a infiltração burguesa e, de outro lado, o oportunismo pequeno burguês, em uma boa posição nas direções de partidos políticos e organizações populares, camponesas e até mesmo sindicais. Isso ocasionou um aumento das tendências populistas e do reformismo liberal na onda recorrente das lutas protagonizadas pela população. A cada vitória, tais lutas, no entanto, somente deram origem a novos compromissos firmados com a burguesia parasitária, com uma reciclagem das mesmas políticas reacionárias, por vezes medíocres e absurdas. Contudo, até hoje, não se materializou nenhuma alternativa revolucionária socialista real e franca capaz de atuar profundamente na situação crítica das condições de vida das massas empobrecidas do país.

Assim, na chamada esquerda haitiana, ocorre gradualmente uma desagregação e uma separação da linha do socialismo proletário, concentrando-se nas bases do reformismo pequeno burguês e de um nacionalismo vulgar. Na tradição esquerdista haitiana, foi premiada a cultura elitista e oportunista dos dirigentes de partidos políticos e de organizações camponesas, populares e estudantis. Ela promoveu o ativismo político em vez de construir ações fundamentadas em bases organizacionais sólidas, com uma prática de luta sujeita a um verdadeiro rigor e disciplina revolucionários. Hoje, essa esquerda haitiana está dispersa em várias pequenas células esparsas, obsoletas em seu isolamento.

Atualmente, diante dos poderosos ataques da burguesia e do governo de Jovenel Moïse contra a população, é ainda mais urgente que a esquerda radicalmente revolucionária se reconstitua de uma forma mais organizacional, antes de poder acompanhar a população na conquista de seus direitos e na concretização da transformação de sua condição de vida. É necessário consolidar uma forte coalizão entre partidos e organizações da esquerda revolucionária para buscar atingir objetivos comuns através de métodos e estratégias coordenadas, sendo um dos mais necessários dentre eles a reconexão das organizações populares, operárias e camponesas com as massas para a tomada do poder político e a realização de um programa proletário à frente do país.

TRADUÇÃO DE MARCUS VINÍCIUS BRANCO.

PUBLICADO EM MARXISTE.ORG