Turquia: “Golpe desleixado” serve de salvação temporária para Erdogan

16 de julho de 2016

Acontecimentos dramáticos abalaram a Turquia ontem enquanto tropas armadas se movimentavam nas ruas de Istambul e Ankara. Foram fechados os principais aeroportos e pontes enquanto jatos militares rugiam em voos rasantes sobre a cidade. Um golpe estava em andamento.

Os soldados também tomaram as instalações da emissora estatal turca TRT e encerraram suas emissões; quando elas voltaram, os soldados levaram o apresentador a ler o seguinte comunicado:

“As forças armadas turcas assumiram completamente a administração do país para reinstalar a ordem constitucional, os direitos e as liberdades humanas, o papel da lei e a segurança geral que foram danificados.

“Todos os acordos internacionais ainda estão válidos. Esperamos que continuem todas as nossas boas relações com todos os países”.

Foi a oitava tentativa de golpe e, se tivesse sido bem-sucedida, teria sido o quinto golpe na Turquia desde 1960. Contudo, os acontecimentos mudaram de rumo quando o primeiro-ministro turco apareceu livre para fazer uma declaração à mídia internacional. Ele disse:

“Este foi um ataque contra a democracia turca. Um grupo dentro das forças armadas fez uma tentativa de derrubar o governo democraticamente eleito, por fora da cadeia de comando.

“A declaração feita em nome das forças armadas não foi autorizada pelo comando militar. Instamos ao mundo para estar em solidariedade com o povo turco”.

Um pouco mais tarde, o presidente Erdogan apareceu na CNN turca, através de um vídeo, conclamando o povo a sair às ruas, ocupar Praças e aeroportos e lutar contra o golpe.

A resposta foi muito rápida. Milhares de apoiadores do AKP [partido do governo – NDT] correram para as ruas encarando os soldados, subindo nos seus tanques e alguns até mesmo tomando os tanques e os dispersando. Muitos foram feridos durante as escaramuças, mas o movimento parecia estar submergindo o golpe.  

Ao mesmo tempo, todos os principais partidos políticos saíram contra o golpe. O líder do CHP, o principal partido da oposição, pediu apoio ao presidente e apelou aos seus seguidores para sair às ruas. Muitos deles, embora sejam todos veementemente contra o AKP, o fizeram para protestar contra o golpe. Apesar do profundo ódio a Erdogan, muitas pessoas não esqueceram as sangrentas ditaduras militares dos anos 1980. Os poucos milhares de soldados foram rapidamente cercados por milhares de manifestantes.

Em poucas horas o golpe começou a se desintegrar. Em todos os lugares, os soldados começaram a recuar face aos protestos agressivos, e chegaram mensagens de apoio ao presidente dos altos oficiais do exército. O presidente Erdogan aterrissou no aeroporto Ataturk em Istambul e imediatamente fez uma rápida declaração anunciando a derrota do “levantamento”. E logo passou ao anúncio do expurgo das forças armadas e a “limpeza de todo o país”.

A luta continuou durante toda a noite com bolsões de soldados isolados lutando nas principais cidades, o que levou a várias centenas de mortes e a mais de um milhar de feridos. Apesar disso, o golpe como um todo foi derrotado rapidamente e Erdogan reconsolidou os seus poderes.

“Um golpe desleixado”

O golpe aparentemente terminou. Em sua esteira, no entanto, permanecem muitas questões a serem respondidas. O exército turco não é estranho a golpes. No entanto, este golpe em particular foi realizado com planejamento e preparação quase infantis. Depois de percorrer as ruas e de declarar que estavam tomando o poder, as pessoas por trás do golpe nada fizeram para tomar e consolidar realmente o poder. Talvez estivessem esperando que outros setores do exército viessem em apoio ao golpe, mas não fizeram muito para insistir com esta mensagem – pelo menos publicamente.

De fato, ninguém sabe quem eles eram ou o que queriam exatamente; além de sua declaração muito vaga, não tentaram mobilizar ninguém nas ruas e não prenderam ninguém. De fato, Erdogan e o gabinete junto a todos os quadros de AKP, chefes de polícia e outros seguidores do regime permaneceram livres e seus escritórios mais ou menos intocados. Um funcionário de AKP disse que seu escritório foi invadido e que lhe foi “pedido” para se render. Claramente ele não se rendeu e claramente nenhuma outra medida foi tomada contra ele.

A única exceção foi a do chefe do estado-maior, General Hulusi Akar, do qual se informou que foi tomado como refém, somente para ser “libertado” nesta manhã. Além disso, a mídia teve pleno acesso a tudo e foi capaz de transmitir ao vivo durante os acontecimentos. Erdogan e outros líderes de AKP apareceram ao vivo na televisão para transmitir mensagens convocando seus apoiadores a se mobilizarem em massa.          

Daoud Khairallah, um catedrático baseado em Washington, falando para RT News, relatou estes erros básicos e descreveu o golpe como “muito desleixado”. Um jornalista da RT fez a pergunta: “Não é estranho que Erdogan não tenha sido preso? Não é isso o que se faz em um golpe? ”. Como poderiam os jatos e outras aeronaves se permitir assumir o espaço aéreo de Istambul sem nenhuma resistência, para começar?

Gregory Copley, um analista da Turquia, disse: “Neste evento, o planejamento do golpe foi muito secreto, muito sofisticado. Teria de contornar uma grande quantidade de monitoramento intenso pelos agentes internos do MIT – a inteligência turca, e outras – cujo trabalho principal é, na verdade, evitar um golpe. E, no entanto, ele ocorreu”.

Como podemos ver, a tentativa de golpe não foi muito sofisticada. Isto também torna improvável a acusação de que o movimento Güllen estava por trás dele. É um fato também altamente improvável que o MIT (Inteligência Turca), que tem uma pesada presença nas forças armadas, pela exata razão de lutar contra as tentativas de golpe, não soubesse nada sobre esta trama. Mas, por que então eles iriam permitir seu prosseguimento causando a perda de vidas de centenas de pessoas?

Um comentário vindo da Turquia, amplamente compartilhado em Twitter, foi muito perspicaz:

“O mais provável é que tenha sido uma tentativa real de golpe, vagamente detectada de antemão, e que se permitiu que avançasse, porque sabiam que o mesmo era desorganizado e fraco. Isto significa que será seguido por um golpe real do próprio Erdogan, e os últimos resquícios de democracia se perderão. Então, o que já era ruim vai se tornar pior. O movimento curdo e todos nós na oposição seremos atingidos nos próximos dias. Já está em processo um movimento camisa-cinzenta [alusão ao fascismo – NDT] e este governará as ruas uma vez que o suposto golpe seja derrotado em um par de dias”.

Erdogan e o exército

É amplamente reconhecido que o exército turco, que vem de uma clara tradição secular e que é próximo à burguesia tradicional turca – isto é, não se baseia nos aliados capitalistas da Anatólia de Erdogan – sempre teve dificuldades com Erdogan. Desde que o AKP tomou o poder, vários planos de golpe foram descobertos e uma tentativa de golpe em 2007 foi derrotada. 

Erdogan tentou expurgar o exército muitas vezes. Centenas de pessoas foram presas, mas o núcleo do exército sempre foi muito cético com Erdogan. Não são adeptos de seu islamismo, e também se opõem as suas imprudentes políticas interna e externa. Na Síria, eles constituem o bloco principal de Erdogan para iniciar uma invasão em grande escala do país.

Já em abril deste ano apareceram vários relatos, alguns deles provenientes de funcionários do AKP, sobre um possível golpe por parte da Força Aérea com ligações com o movimento Gülenista – um movimento neo-islâmico que foi aliado de Erdogan no primeiro período de seu governo. Em março, o Daily Sabah, o porta-voz principal do AKP, publicou um artigo intitulado “Operações que têm por alvo a Turquia e Erdogan”. O artigo diz que 50% dos pilotos de F-16 da Força Aérea são pró-Gülenistas e que todos estes seriam expurgados das forças armadas em 2016. Declarações semelhantes foram feitas em várias outras ocasiões durante os últimos 6 meses.

Nas últimas semanas apareceram novos informes de que o governo seguiria adiante com o expurgo das forças armadas. Pode ter sido este o gatilho do golpe, que foi claramente conduzido por oficiais de média e baixa patentes, embora possam ter tido a simpatia de alguns superiores.

Da mesma forma como ocorreu durante os ataques terroristas do ano passado, provavelmente nunca teremos um quadro claro do que realmente ocorreu ontem, mas é altamente improvável que este golpe pudesse acontecer sem que a Inteligência Turca não tenha se feito de cega. Este é um método frequentemente utilizado pelo regime. Por exemplo, os ataques terroristas em Ankara e Suruc do ano passado, onde a Inteligência Turca permitiu que centenas de pessoas fossem sacrificadas a fim de recuperar o apoio que Erdogan tinha perdido nas eleições parlamentares de junho. Ao permitir um certo grau de caos, Erdogan pode provocar histeria e mobilizar seus seguidores a fim de reunir a nação por trás dele e golpear a oposição.        

A força de Erdogan

Nas últimas semanas, Erdogan mudou completamente de curso em uma série de questões – em particular na questão da política externa. Ao ver o crescente risco de ISIS e seus representantes serem extremamente enfraquecidos frente às forças russas, iranianas e sírias, ele apelou pela normalização das relações turcas com o regime de Assad – a quem veemente se opôs até recentemente. Também enviou várias cartas ao presidente russo Putin, desculpando-se pela morte do piloto russo cuja aeronave foi abatida pela Força Aérea turca na Síria em outubro do ano passado. Aliás, ele pôs a culpa do evento nos Gülenistas da Força Aérea. Um porta-voz do Kremlin disse: “O chefe do Estado turco expressou sua profunda simpatia e condolências aos parentes do falecido piloto russo e disse ‘sinto muito’”. Isso está a mundos de distância da postura de matador arrogante de Erdogan há apenas poucos meses.

No que aparenta ser outro importante retrocesso, Erdogan também permitiu que as forças curdas no Norte da Síria cruzassem o rio Eufrates e fechassem o corredor que ligava ISIS à Turquia, entre Jarablus e Azaz. Isto era algo que o próprio Erdogan tinha considerado como a “linha vermelha” para a Turquia – assinalando que preferiria invadir a Síria a permitir que isto acontecesse. Sem dúvida, isto deve ter sido recebido com muita fúria dentro da cúpula do exército, cujo único ponto de convergência com o AKP tem sido a luta contra todas as formas de independência curda na Turquia e em outros lugares.

Ele também sinalizou por uma normalização de relações com Israel, o que, junto aos passos anteriores, equivale ao completo colapso e derrota de toda a política de Erdogan nos últimos 6 anos. Esta é uma grande crise para o regime. Além do mais, o atentado no aeroporto de Istambul há poucas semanas e a ascensão do terror relacionado a ISIS elevaram a oposição a Erdogan tanto entre a população, quanto entre os grandes – e tradicionais – capitalistas que querem estabilidade para manejar seus negócios. Eles veem Erdogan como responsável pelo terror, por tê-lo ignorado e até mesmo ajudado ISIS e outros grupos islâmicos a se estabelecerem na Turquia, a fim de buscar o controle da Síria.

Não pode haver a menor dúvida de que estes eventos abalaram o apoio de Erdogan internamente e encorajaram seus adversários. Em uma situação social e política altamente polarizada, com metade do país radicalmente contra Erdogan, tal derrota poderia ter inclinado a balança e provocado uma agitação revolucionária da qual Erdogan não está seguro de poder sobreviver. Mesmo que o faça, seria um obstáculo importante ao seu sonho de lograr uma presidência executiva com o poder concentrado em suas mãos.

Agora, ao golpe de verdade

Contudo, por ter tacitamente permitido que o golpe avançasse, Erdogan manteve a iniciativa – um fator chave na guerra e na política. É preferível permitir e derrotar um golpe débil que enfrentar um poderoso movimento revolucionário. Além do mais, isto permitiu a Erdogan consolidar ainda mais o seu poder dentro do exército, que tinha ficado vulnerável pela crise. Se ele vai ter êxito ou se vai meramente provocar mais resistência ainda não está seguro. Mas é similar às medidas anteriores tomadas contra a polícia, os gendarmes e as agências de inteligência. Estas foram expurgadas e logo inundadas por milhares de leais seguidores do AKP, convertendo-se, de fortalezas Kemalistas [refere-se aos seguidores de Kemal Ataturk, fundador da republica da Turquia – NDT] e Gülenistas, em ferramentas de Erdogan. Utilizando-se de uma facção débil dentro do exército, ele mobilizará suas forças e atacará as instituições como um todo.

Toda esta questão é típica dos métodos de Erdogan. Nas primeiras etapas de seu governo, ele se utilizou das negociações de paz com o PKK para cobrir seu flanco esquerdo e atacar os Kemalistas e o exército em particular. Contudo, depois do movimento de massas de 2013 no Parque Gezi, uma vez que o HDP curdo começou a refletir a ascensão da luta de classes, ele fez um acordo com o exército para lutar contra os curdos. Centenas de golpistas expurgados anteriormente do exército foram libertados e seus julgamentos anulados. Naquele momento, Erdogan necessitava do apoio do exército contra os curdos e o movimento de esquerda que estavam bloqueando suas ambições de ganhar a presidência. No entanto, agora, com as recentes derrotas de sua política externa, Erdogan viu a cúpula do exército como um obstáculo em seu caminho à presidência com plenos poderes executivos, o que reduzirá os poderes do parlamento. É provável que ele também os veja como pontos focais potenciais para um crescente movimento de oposição.

Ele antecipou uma nova onda de oposição crescente ao permitir a disseminação do caos somente para se apresentar como salvador da pátria e como fiador da estabilidade. Levantando um estado de ânimo de histeria, ele agora tentará utilizar seu exército de enfurecidos elementos pequeno-burgueses e lúmpens para golpear o exército e, o que é mais importante, concentrar mais poderes em suas próprias mãos.

Diante da profunda crise do capitalismo turco e da crescente oposição, ele oscila de forma cada vez mais violenta a fim de desviar a atenção e reter o poder. Se houvesse um movimento da classe trabalhadora de todos os turcos com um programa revolucionário claro, este teria usado esta crise para expor o regime e se tornar um real concorrente ao poder. Com sua ausência, Erdogan tem espaço para manobrar. Mas ao tentar salvar sua própria posição, ele corre o risco de desestabilizar continuamente o país e de preparar ainda maiores explosões no futuro.

Para as massas trabalhadoras este será um revés. Em sua declaração desta manhã, Erdogan disse que não somente iria expurgar o exército como também todo o país. Sem dúvida, isto vai significar uma escalada na caça às bruxas contra qualquer oposição, em particular dos ativistas de esquerda e sindicalistas.

Erdogan vai se fortalecer temporariamente, mas a crise social, econômica e diplomática necessariamente vai irromper novamente, mais cedo ou mais tarde. Seu principal problema é que o capitalismo turco é incapaz de levar a sociedade à frente. A cúpula militar não pode resolver esta crise. Eles próprios fazem parte da classe dominante, a mais rica, embora seja politicamente a mais fraca. A única saída é construir um movimento político independente da classe trabalhadora para desafiar o próprio sistema, para oferecer à poderosa classe trabalhadora turca uma alternativa, em vez de ter que tomar partido nas lutas reacionárias de distintas alas da classe dominante para decidir quem vai governá-la e explorá-la.

Artigo publicado originalmente em 16 de julho de 2016, no site da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “Turkey: “Sloppy coup” serves as temporary lifeline for Erdoğan.

Tradução de Fabiano Leite.