Representatividade importa?

Muito se discute hoje sobre representatividade dentro dos espaços políticos. Nosso objetivo é identificar alguns usos para o termo e pensar, de um ponto de vista marxista, o uso (e aplicação) desse conceito.

Muito se discute hoje sobre representatividade dentro dos espaços políticos. Esse é hoje um termo recorrente. Na verdade é um termo quase que fundamental para muitos militantes e lutadores contra o racismo. A representatividade vem ganhando espaço, sobretudo dentro do que hoje de se entende com esquerda e até nos movimentos de direita.

O objetivo desse texto não é esgotar o tema, nem definir o termo e todas as suas concepções semânticas, filosóficas e políticas. Nosso objetivo é identificar alguns usos para o termo e pensar, de um ponto de vista marxista, o uso (e aplicação) desse conceito.

Representatividade, segundo o sentido mais tradicional do termo, é qualidade ou característica de um indivíduo ou entidade cujas relações com a população ou coletivo social expressa seus anseios, desejos, reivindicações etc.

Contudo, atualmente o termo ganhou um outro sentido. Uma grande parte dos movimentos sociais usam representatividade como “pessoas que têm as mesmas características que ‘eu’ ocupando espaços de destaque”.

Dessa maneira, eu que sou negro me sinto representado se outros negros estão nas emissoras de televisão, se ocupam cargos políticos ou de prestígio social, se a cultura com a qual me identifico está presente em espaços de grande visibilidade etc.

Nesse novo sentido que a palavra ganhou, representatividade é quando um determinado grupo tem a possibilidade de enxergar outros de seu grupo como referências em determinadas áreas.

Em um país como o Brasil, segundo o IBGE, mais de 50% da população se considera de pele parda ou preta. Em geral, não vemos os negros em locais de visibilidade. E quando vemos é geralmente ocupando espaços que reproduzem um estereótipo racista, que tenta nos inferiorizar: a empregada da novela que é fofoqueira e sem estudos, o morador de favela que tem relações com o crime organizado, a “mulata” do samba como apenas um corpo escultural, e tantos outros estereótipos que reforçam as ideias racistas (e machistas), criadas pela burguesia como forma reproduzir todo tipo de exploração.

Assim, compreendemos os companheiros e militantes do movimento negro que lutam para que os negros e negras desse país tenham o direito de serem representados como seres humanos, como sujeitos de suas vidas. E estamos juntos na luta contra qualquer tipo de investida racista, que tente colocar na mente de nossas crianças, jovens e adultos a ideia de que certas atividades não são para os “de nossa cor”.

A luta contra o racismo é indissociável das lutas sociais e da luta pelo socialismo.

Nós negros (assim como as mulheres) fazemos parte das parcelas mais oprimidas da sociedade capitalista. E justamente por isso entendemos melhor que qualquer um o peso das opressões que estão sobre nossos ombros. Isso não nos coloca mais longe da luta revolucionária, pelo contrário, isso só nos faz odiar cada vez mais esse sistema que explora e oprime cotidianamente a classe trabalhadora e a juventude.

É claro que, nos papéis de visibilidade social, em especial nos programas de TV, no cinema, teatro, haver mais pessoas que tenham o fenótipo parecido com o meu é bom para a autoestima e para olharmos todos de forma igual no cotidiano da vida.

Porém a representatividade de fenótipos se torna completamente inócua para a luta contra o racismo a depender da posição política da pessoa com a visibilidade representativa. Por exemplo, nos EUA, país mais rico do mundo e com um presidente negro eleito e reeleito, o racismo diminuiu? Os acontecimentos em Baltimore, Los Angeles, entre outros, mostram cabalmente que não. O fato de ter um negro na presidência não diminuiu o racismo, não diminuiu a desigualdade entre negros e brancos. Por que? Porque o racismo é fruto justamente do sistema social que produz as desigualdades, fruto da sociedade de classes.

A única representatividade eficiente, do ponto de vista da luta contra o racismo, é a posição política, ou seja, não importa a cor da pele do governante e sim de que lado está sua posição política na luta de classes: do lado da burguesia ou da classe trabalhadora?

Para os marxistas, o que importa, do ponto de vista da representatividade, é a posição em relação aos objetivos imediatos e históricos do proletariado.

Para nós, o primeiro elemento a ser considerado na representatividade é a classe.

A classe social é o elemento fundamental para definirmos se alguém nos representa ou não, se pode falar por mim ou não, se expressa ou não nossos anseios, desejos, reivindicações etc.

Vamos aos casos práticos reais…

Nós negros queremos nos reunir com outros negros para discutirmos as formas de enfrentar o racismo. Fazemos isso porque vivemos isso no nosso dia a dia, e precisamos nos organizar para tal. Criamos assim vários movimentos negros que combatiam frontalmente os racistas. Um ótimo exemplo foi o Partido dos Panteras Negras em Auto-defesa, nos anos 1960, nos EUA.

Essa era uma organização política que tinha um programa antirracista e que combatia diretamente o capitalismo nos EUA, ao exigir emprego, educação, saúde e direito para todos os negros e negras daquele país.  Inclusive eles se armaram para proteger os negros da periferia contra os ataques violentos da polícia racista norte-americana.

Obviamente essa organização, em escala nacional, incomodou a burguesia, que armou muitas formas de desmobilizar o Partido, como por exemplo agressões, difamações, prisões das lideranças, assassinatos, distribuição de drogas nas periferias e cooptação de lideranças.

Pra ter ideia, uma das pautas do Programa dos Panteras Negras era educação para todos os negros, para que todos os negros soubessem ler e escrever e entendessem seus direitos. Não é à toa que  o lema do Panteras era “Todo poder para o povo”, frase esta extraída da Constituição dos EUA.

Ao mesmo tempo que o governo Lindon Johnson, através do FBI e da CIA, perseguiam implacavelmente os Panteras Negras no final da década de 1960, criou e iniciou a implementação do programa “Black Capitalism”, criando cotas raciais em todos os setores da sociedade e incentivos fiscais para investidores negros. Ou seja, não aumentaram as vagas para que todos os negros tivessem o direito de estudar, de fazer universidade. Mas, pegaram uma fração das vagas que já existiam e colocaram alguns poucos negros para estudar lá. Essa medida apenas aumentou o ódio dos racistas e estimulou a meritocracia, tentando convencer os outros negros que não conseguiam (a esmagadora maioria) que na verdade o que faltava era esforço.

Com essas medidas, muito diferente das pautas originais do movimento negro, implementadas há mais de 40 anos, apesar da constituição e consolidação de uma pequena burguesia negra, os EUA continuam a ser o país imperialista mais desigual do mundo e principalmente entre negros e brancos.

Os EUA é atualmente o país que mais possui pessoas presas em todo o mundo. Além disso, um artigo do Opera Mundi explica que há mais negros presos hoje do que havia na época da escravidão (1850). Cerca de 70% do moradores de rua são negros e os condições sociais entre os negros são as piores dos últimos 25 anos.

A polícia norte-americana é extremamente racista, todos os dias moradores das periferias dos EUA, a maioria negros e latinos, morrem assassinados pelas forças de segurança.  Um caso que ganhou muita repercussão foi do pai de família Eric Garner, que foi enforcado em via pública por um policial.  O trabalhador foi acusado de reagir à prisão, pelo crime de vender cigarro varejo (o que é crime em Nova Yorque), e por isso foi enforcado pelo policial. Eric Garner repetiu sete vezes antes de morrer: “eu não consigo respirar”.  O policial foi absolvido.

O que o presidente negro Obama falou sobre o caso? Nada!

Esse é a “representatividade” que os negros norte-americanos contam. O racismo continua a ser uma das armas dos opressores e asfixia os trabalhadores e a juventude, seja de que cor for. Nem precisamos falar aqui dos povos de outros países que Obama assassina diariamente com as guerras que patrocina e estimula.

Esse é um exemplo cabal que representatividade de “recorte racial” é inócua na luta contra o racismo. Um indivíduo pode ter a mesma cor que nós, mas não compartilhar dos anseios da nossa classe. Mas, se a pessoa tem um posicionamento de classe, certamente suas pautas vão tocar as questões que dizem respeito a qualquer pessoa dessa classe, independentemente da cor da pele.

Então, quando exigimos redução da jornada de trabalho sem redução de salário, quando pedimos ensino público e gratuito para todos, ou quando pedimos transporte público gratuito e de qualidade, essas pautas vão favorecer todo o conjunto da classe trabalhadora, independente de cor, gênero, religião.

Só para dar mais um exemplo de representatividade mais próximo, citamos a presidente Dilma. Qual o posicionamento da presidente sobre a questão da legalização do aborto? Até hoje a presidente não declarou seu posicionamento sobre o tema. Enquanto isso, milhares de mulheres seguem morrendo nos matadouros que são as clínicas clandestinas.

Eduardo Cunha fez a proposta de exigir que mulheres que foram abortadas apresentem laudo médico e Boletim de Ocorrência para comprovar que realmente foram estupradas e só então poderem receber a pílula do dia seguinte, para que não engravidem do criminoso que as estuprou. O que a presidente Dilma, enquanto mulher, expressou sobre essa proposta?

Se a Dilma fosse um mandato popular, classista, sua obrigação como representante das mulheres trabalhadoras era proibir imediatamente essa proposta machista e cruel de Eduardo Cunha. Mas Dilma prefere deixar seu “recorte de gênero” de lado e favorecer seus interesses de classe.

Mais uma vez vemos que a classe pode abafar os outros “marcadores sociais”. Seja para o bem e para o mal.

No caso do movimento negro, uma pauta que seria a princípio para negros pode beneficiar um conjunto muito maior da população, como era o caso do Panteras negras, ou ainda o caso do militante marxista Steve Biko, que participava da luta anti-racista na África do Sul e que explica que “Racismo e capitalismo são duas faces da mesma moeda”.

A luta dos Panteras, de Steve Biko e de muitos outros serve de inspiração para todos militantes, seja do movimento negro ou não.

Um outro exemplo que podemos dar de “representatividade de classe” foi o de Alexandra Kollontai. Uma militante e intelectual russa que, mesmo antes da Revolução Russa de 1917, já lutava pelos direito das mulheres.

Com a revolução as mulheres conquistaram o direito ao voto, e Kollontai foi a terceira pessoa mais votada, assumindo assim o cargo de Comissária do Povo, a primeira mulher a alcançar esse cargo, o que seria equivalente a primeira mulher ministra do mundo.

Com a revolução socialista de 1917, as mulheres tiveram muitas outras conquistas.

A Rússia foi o primeiro país a legalizar o aborto, em hospitais públicos e gratuitos, os salários de homens e mulheres foram equiparados para trabalhos iguais, o casamento e divórcio passaram a ser civil (antes eram apenas religiosos e uma decisão do marido), não houve mais escolas para meninos separadas de meninas, ou seja, homens e mulheres recebiam a mesma educação nas escolas, foi criado o auxílio maternidade, entre outros triunfos.

Essas foram apenas algumas das muitas vitórias que a luta das mulheres conheceu e que hoje se espalharam por muitos outros países. E para isso a luta de algumas mulheres socialistas foi fundamental nesse trabalhado de representatividade. O caso de Kollontai é um dos mais ilustrativos, já que antes das evolução as mulheres nem podiam votar. Outras mulheres também foram fundamentais nesse trabalho, como por exemplo Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin, Krupiskaia etc. A maioria dessas foram apagas dos livros de histórias, e não apenas porque eram mulheres e sim porque eram mulheres com posicionamento de classe, o que não interessa a todos movimentos de mulheres, como por exemplo as mulheres burguesas que não tinham interesse em lutar por aumento de salários de mulheres, pois seu interesse era ter o direito de controlar fábricas, assim como os homens capitalistas, e para isso as mulheres trabalhadoras eram uma ótima forma de mão de obra barata.

Nossa conclusão, com esses poucos exemplos, é que a representatividade pode ser eficaz se o representante for de nossa classe, de nossos desejos e assumir plenamente nossas reivindicações.

Na proposta dos revolucionários marxistas, a representatividade deve ser usada como estímulo para a luta revolucionária. Assim, toda luta que enfrente o racismo ou o machismo, por exemplo, é importante e deve ser abraçada.

Mas, a segunda etapa é utilizar essa luta como uma forma de apontar as falhas do sistema capitalista e assim mobilizar as lutadoras e os lutadores contra esse sistema opressor. Desse modo, toda luta deve servir como programa de transição (como explica Trotsky) para o sistema socialista, para que esse problema seja resolvido na sua raiz. Caso contrário, toda conquista será sempre parcial, insuficiente e passível de ser perdida, como acontece em tempos de crise, quanto o capitalismo toma de volta os anéis que foi obrigado a ceder à classe trabalhadora.

A representatividade dos marxistas não ignora a cor, a raça, ou o gênero, como muitos insistem em afirmar. Um marxista nunca pode ignorar as condições materiais, ou deixaria de ser um marxista.

A questão é que os marxista não veem o mundo a partir de “recortes”, como se as opressões de cor, gênero e classe pudessem ser vistas isoladamente ou cumulativamente. Nossa perspectiva entende que as opressões são utilizadas hoje como forma de fundamentar a principal forma de opressão, que é a de classe. Com isso todas as opressões (machismo, racismo, homofobia etc.) servem de aparato para a exploração de classe se manter. Assim, a única forma de acabar com qualquer opressão é derrotando o sistema que as produz e mantêm.

Porém, entendemos que é impossível acabar com o racismo enquanto houver a sociedade capitalista, pois a opressão e a exploração são a espinha dorsal do capitalismo. O racismo é uma ideologia criada pelo capitalismo para justificar uma exploração e opressão injustificáveis, para criar um exército de mão de obra e dividir o proletariado. E combate-lo é tarefa cotidiana de todos que se reivindicam da luta pelo socialismo.