Juan Domingo Perón. Foto: domínio público

O passado da Argentina: peronismo, revolução e contrarrevolução.

Em outubro último, o corpo de Santiago Maldonado foi encontrado boiando no Rio Chubut na Argentina. Isso aconteceu depois do desaparecimento forçado do ativista em agosto durante o seu envolvimento no movimento em defesa dos direitos à propriedade dos povos indígenas Mapuche. Em um país onde os desaparecimentos forçados já foram comuns, a morte de Maldonado é um resquício de um passado contrarrevolucionário argentino e também expôs a corrupção, a podridão e as contradições mal resolvidas que restaram no centro do regime.

Mais uma vez, o estado argentino demonstrou que o capitalismo não tem limites quando os interesses da classe dominante estão em risco. Conhecer o atual contexto sociopolítico na Argentina requer uma visão muito mais completa do papel do capitalismo no passado argentino: o peronismo, a ditadura de 1976 e a sua assim chamada ‘guerra suja’.

O corpo do ativista Santiago Maldonado foi encontrado no Rio Chubut na Argentina. Foto: ManoReal

O peronismo e a “terceira via”

As origens sociais e econômicas da ascensão da ditadura militar em 1976 na Argentina recaem sobre o peronismo e o conflito de classes mal resolvido deste período. Trinta anos antes da ascensão do regime militar, a Argentina estava sob o comando de Juan Domingo Perón, o general que introduziu a “era da sociopolítica argentina.” As assim chamadas políticas de ‘terceira via’ do peronismo pareceram, superficialmente, sintetizar os interesses do capital e do trabalho balanceando os antagonismos de classe.

Entretanto, na realidade, era um regime bonapartista burguês que foi capaz de prolongar sua vida graças às condições econômicas favoráveis criadas pelo boom do pós-guerra. Durante as décadas de 1940 e 50, Perón confiava simultaneamente nos capitalistas industriais e na classe trabalhadora, fazendo malabarismos com a esquerda e a direita concedendo às demandas de ambos os lados: ele aumentou os salários e implementou melhores condições de trabalho, enquanto não fazia nada para expropriar as terras das oligarquias ou nacionalizá-las. Organizou cinco milhões de trabalhadores em sindicatos de classe enquanto protegia as empresas privadas, instituiu a seguridade social e reduziu o dia de trabalho para oito horas enquanto colaborava com as forças imperialistas e investidores estrangeiros.

Perón foi um bonapartista que manobrou entre a classe trabalhadora e a burguesia. Foto: AGN

O líder bonapartista era capaz de fazer as manobras do seu jeito por meio das contradições inerentes das políticas da ‘terceira via’, especificamente porque a Argentina possuía uma posição favorável no mercado internacional nessa época. Por causa de sua vasta extensão de terras férteis e da demanda internacional por carne e grãos após a Segunda Grande Guerra Mundial, o estado argentino lucrou com os altos preços de seus produtos de exportação por meio de um monopólio de grãos e carne. Com esta renda, era possível garantir reformas sociais para a classe trabalhadora.

Nestas condições, e com a avançada degeneração dos partidos comunistas controlados pelo estalinismo em escala mundial, Perón monopolizou todo o espaço à esquerda por meio dessas concessões. Os efeitos disso estavam mais discerníveis quando o líder foi destituído por um golpe militar em 1955 e a situação econômica da Argentina declinou severamente. Depois de um período de turbulência econômica nos anos 1960 (quando as áreas cultivadas caíram em 27% e a renda agrícola por habitante declinou em 40%), as condições das massas argentinas pioraram significantemente. Com as exportações de trigo em menos de 15% das exportações mundiais, centenas de milhares deixaram o campo para as cidades onde viviam em comunidades tomadas pela pobreza e fome.

Isabel Perón. Foto: Sin datos

No início dos anos 1970, a inflação subiu até 80% com um custo de vida sempre alto. Em um país com uma forte tradição esquerdista, uma nova geração radicalizada de peronistas estava levando o país a revoltas devido à deterioração das condições de vida. Em outubro de 1972, uma série de greves foi organizada pela federação de sindicatos peronistas e muitos saíram às ruas por um programa revolucionário. À luz das greves, das lutas nas barricadas e com insurreições locais entrando em erupção, os generais foram pressionados a chamar novas eleições livres. Acreditava-se que somente Perón poderia defender a classe dominante do fervor revolucionário.

Sem um forte partido da classe trabalhadora no liderança para organizar e liderar as massas revolucionárias, o movimento foi canalizado ao fronte eleitoral, onde a massa da classe trabalhadora e a juventude já tinham encontrado em Perón um refúgio. Na falta de uma alternativa revolucionária, eles votaram na chapa peronista com a esperança de que ela restaurasse as condições anteriores.

Naturalmente, a Frente de Libertação Justicialista Peronista fez pouco para aliviar os problemas. Depois de ganhar as eleições ganhando votos tanto da direita como da esquerda, eles encaminharam o chamado “socialismo do povo nacional e cristão”. Foi uma tentativa demagógica de retratar o conservadorismo e o socialismo como tendências irmãs: uma tentativa de mostrar que os interesses da classe dominante e dos trabalhadores podem ser reconciliáveis.

Porém, como sempre, este tipo de ‘terceira via’ ou ‘união nacional’ se mostra como uma mera tentativa de preservar o status quo por meio de regulação estatal, suprimento de subsídios e um sistema autoritário de seguridade social.

Bandeira dos Motoneros. Foto: Faleristico

Na Argentina, a regulação do capital, do crédito e da tecnologia inibiu a classe capitalista até um certo grau, enquanto ao mesmo tempo garantia uma proteção dos privilégios da classe ao adquirir uma paz social. Ao mesmo tempo, ao chamar a iniciativa privada e a propriedade como garantias que “cumpriam uma função social”, o programa poderia incentivar o exercício do empreendedorismo sem sacudir o quadro básico da sociedade capitalista. Com efeito, este era um programa da direita coberto por uma terminologia da esquerda.

Com as aspirações da classe trabalhadora ainda não satisfeitas, a frustração tomou conta do país, em particular entre a vanguarda do movimento. A extrema-esquerda, peronistas, montoneros e outros grupos de guerrilha que emergiram da frustração com a falta de chances reais multiplicaram seus esforços. Furiosos com a impotência e a traição da esquerda argentina e dos líderes sindicais peronistas, eles tomaram a questão às próprias mãos por meio de esporádicos episódios de violência armada. Suas ações, entretanto, estavam isoladas das massas e somente foram adicionadas à desordem geral, mais uma vez apontando para a necessidade de um partido organizado para oferecer aos trabalhadores uma alternativa revolucionária e mobilizar as massas para a sua própria emancipação.

A ascensão da extrema-direita

O peronismo, exatamente por ter como base o capitalismo, não poderia resolver a crise econômica dos anos 1970, aquietar a inflação ou providenciar um crescimento econômico. Ao mesmo tempo, Perón não apaziguava mais os trabalhadores com esquemas de seguridade social que exploravam um grupo de condições econômicas favoráveis. Como a história tem demonstrado vez por vez por meio de experiências de países como a Venezuela, Cuba e Nicarágua, as reformas sociais e os ganhos de seguridade são insustentáveis sem um sistema completamente socialista de fundo.

Como Ted Grant explica: “o meio termo entre o socialismo e o capitalismo nunca existiu e nunca existirá. Ou um governo reflete os interesses dos trabalhadores, e neste caso, ele deve expropriar os capitalistas, ou deve refletir os interesses dos capitalistas e atacar os direitos dos trabalhadores” (A Revolução da Argentina, Ted Grant, 13 de julho de 1973). Tão logo as condições econômicas favoráveis findem, a aparência ‘socialista’ é removida e as contradições ocultas reais existentes das reformas são expostas.

Na Argentina, estas contradições políticas criaram uma situação política instável marcada pela polarização social e uma rejeição ao status quo. Os peronistas de extrema-direita ficaram horrorizados com a crescente influência dos montoneros e ressentiram ter de dividir poder com a ala esquerda do movimento peronista, que incluía grupos de guerrilha, acadêmicos, a juventude e outros recém-chegados ao peronismo.

Em junho de 1973, ocorreu o infame massacre de Ezeiza (próximo do Aeroporto Internacional Ezeiza, em Buenos Aires). A estimativa da política é que três milhões e meio de pessoas tenham se reunido para recepcionar a volta de Peron depois de um longo período de exílio. No entanto, da plataforma, atiradores escondidos, organizados pela ala direita do peronismo, começaram a disparar sobre a massa de pessoas. A ala esquerda da Juventude Peronista e os Motoneros foram os alvos dos atiradores. Encurralados e incapazes de se defender, 13 foram mortos, e mais 365 foram feridos. De acordo com o jornal Clarín, muitos outros foram mortos, mas nenhuma investigação oficial jamais foi realizada para confirmar isso.

Jose Lopez Rega (right). Foto: Liepaja1941

Quando Juan Perón morreu em 1974, o país estava lutando contra uma crise econômica, social e política. Estava claro que sua sucessora, Isabel Martínez de Perón, não tinha a autoridade ou agilidade na política de andar sob cordas bambas que o seu marido tinha. Ao contrário, Isabel Perón tinha uma posição incrivelmente pró-capitalismo que só acelerou o processo de diferenciação de classe. Não muito tempo depois, os Montoneros declararam guerra ao governo. Em retorno, o ministro da seguridade social, José Lopes Ortega, fundou os esquadrões da morte do triplo A (Aliança Argentina Anticomunista). O terror se espalhou por todo o país na forma de bombas, sequestros e assassinatos. Enquanto as divisões e conflitos se aprofundavam no movimento peronista, a esquerda argentina, fragmentada e mal dirigida, não conseguia preencher o vácuo deixado pela morte de Peron. Dessa forma, as reações tomaram corpo.

Esmagados pelo medo, desemprego, inflação e medidas repressivas, as massas pequeno burguesas foram em direção à direita na busca por estabilidade e folga das pressões da crise. Enquanto isso, os proprietários de terra e os capitalistas procuravam um fim para as greves, protestos, rompimentos, repentinos aumentos de salários e regulações. Lutando para resgatar a sua competitividade nos mercados externos, eles demandaram ordem dentro e fora das fábricas e das propriedades. Eles queriam um fim das guerrilhas para reestabelecer a ordem e para calar os trabalhadores para defender os seus lucros. Eles encontraram nos militares a mais efetiva força para executar uma contrarrevolução. O fermento revolucionário tinha tornado a democracia burguesa uma ferramenta instável e agora a classe dominante procurava retomar a influência e controle sobre a sociedade. Uma ditadura de uma junta militar providenciaria uma melhor ferramenta que as democráticas e imprevisíveis eleições burguesas.

Entretanto, quando Isabel Peron assumiu o governo, os militares viram uma oportunidade de poder, formando uma relação apertada com o governo no interesse da “segurança pública’. Tendo ocupado os vácuos de poder, com Isabel Peron como sua marionete, a junta começou a quebrar os movimentos das guerrilhas e dos sindicados de classe. O objetivo dos militares era restaurar a ordem pública, combater a inflação e erradicar todas as formas de subversão comunista, tudo isso feito em nome dos ‘valores cristãos’.

Em 1976, com a inflação em 600%, as camadas da pequena burguesia clamavam por um salvador para trazer a ordem de volta à Argentina: as condições para um golpe militar estavam prontas.  Em 24 de março, os militares tomaram o poder com Jorge Rafael Videla e terminou com o reino constitucional do peronismo. Imediatamente, os generais lançaram um esquema draconiano chamado El Proceso de Reorganización Nacional (O processo de reorganização nacional) para lutar pela ‘civilização’ e deixar a população livre de todos os elementos considerados incompatíveis com os interesses da junta, na realidade, os interesses da burguesia argentina e seus apoiadores imperialistas.

O que se seguiu foi uma ditadura militar que durou sete anos caracterizada por um intenso nacionalismo, xenofobia e um fervoroso e intolerante catolicismo. Mais de trinta mil indivíduos desapareceram ou foram mortos e de 100.000 a 150.000 pessoas foram sequestradas e torturadas. Os desaparecimentos foram os meios de semear pânico e terror por toda a população, pois não há nada mais horripilante que a ideia de que o estado pode fazer alguém sumir do nada. Vendo o poder da onda revolucionária no país e por todo o continente, a Junta, apoiada pelo imperialismo norte-americano e pelas classes dominantes da América Latina, estava determinada a quebrar as massas revolucionárias e varrer a própria ideia de revolução. Fabricar uma utopia, livre do conflito de classe e dissidência política, requer se livrar de qualquer elemento que contradiz a vontade dos círculos dominantes.

Para a burguesia argentina era a chance de concentrar ainda mais o capital e quebrar com o capitalismo de estado da era Peron. A economia foi aberta ao capital estrangeiro, privatizações foram colocadas na agenda, e o estado de bem-estar, bem como a regulação econômica, foram desmantelados. A riqueza rapidamente se concentrou nas mãos de uma pequena elite enquanto que as condições de vida e de trabalho deterioraram para a vasta maioria da população. O declínio nas condições de vida e de trabalho nas empresas pressionaram os sindicatos e a classe trabalhadora no geral. Percebendo que o caminho revolucionário estava fechado, a classe trabalhadora recuou e os trabalhadores procuraram soluções individuais para os seus problemas. A confiança da classe em seu próprio poder declinou juntamente com a cultura de solidariedade e movimentos populares. Nos seus lugares, o individualismo e o liberalismo promovidos pelo regime temporariamente ganharam proeminência.

A ‘guerra suja’

Quando a junta militar se organizou para destruir o que era essencialmente uma economia capitalista de estado paternalista, os efeitos imediatos da ditadura foram agravar a desigualdade social e destruir os programas públicos que aumentavam os padrões de vida das famílias argentinas mais pobres. Como sempre, liberdade econômica para os ricos e provações para a maioria foram os dois lados da moeda. Esta moeda teria provocado grandes repercussões sem um sistema formada para eliminar as resistências.

O primeiro objetivo do regime era, portanto, aniquilar o movimento trabalhista organizado. A junta entendeu que para maximizar sua agenda, ela teria que varrer toda a oposição existente. Para justificar a transformação da Argentina em uma utopia capitalista, a junta fabricou ameaças para justificar a repressão usada para roubar as vidas dignas de milhões de pessoas. A ameaça se tornou a crescente esquerda e “sua subversão contra o estado”. O inimigo real era o marxismo e a ideia de uma Argentina socialista que só poderia ser contida sob o cano de uma arma.

Jorge Rafael Videla e a junta militar. Foto: domínio público

Dessa forma, a ‘Guerra Suja’ foi muito mais ‘suja’ que guerra. De fato, foi uma guerra unilateral de aniquilação da esquerda. A junta apresentava as guerrilhas de esquerda como uma violenta ameaça à segurança nacional. Na realidade, existiam somente dois grupos principais que eram coordenados o suficiente para realizar os ataques: 1) os Montoneros, peronistas de extrema esquerda e 2) o Ejercito Revolucionario del Pueblo (ERP) que eram trotskistas, porém se moveram em direção ao maoísmo.

O ERP foi montado para ser o braço armado do PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores), um grupo que aderiu à organização internacional Mandelite, mas que também foi fortemente influenciado pelo maoísmo e pela Revolução Cubana, acreditando que a tática de guerrilha era o caminho para chegar ao socialismo na Argentina. Na realidade, dadas as condições argentinas, isso se traduziu em uma prática de guerrilha urbana: terrorismo individual, com assassinatos de sequestros de oficiais do governo, executivos de empresas estrangeiras, oficiais das forças armadas e por aí vai.

Considerando que os membros de ambos os grupos mal totalizavam cerca de dois mil indivíduos, não havia ameaça real à segurança nacional. Entretanto, os métodos equivocados de um terrorismo individual caíram nas graças da junta militar, que usou os ataques como uma desculpa para reprimir fortemente toda a esquerda e o movimento trabalhista organizado em geral.

Em todo caso, quando a junta chegou ao poder, somente quatrocentos membros destas guerrilhas tinham aceso a armas, e os Montoneros foram varridos do mapa nos primeiros seis meses da ditadura. Documentos secretos do Departamento de Estado norte-americano mostram que em outubro de 1976, o ministro do exterior argentino Guzzetti declarou que “as organizações terroristas foram desmanteladas”. Mesmo assim as matanças e os desaparecimentos se alongaram por mais sete anos em um plano cruelmente calculado para aleijar todos aquelas que se recusavam a aceitar as injustiças de uma sociedade capitalista.

Isso confirma que a guerra contra as guerrilhas foi uma desculpa para outras intenções. A violência do estado tinha pouco a ver com a insurgência, pois a maioria das pessoas assassinadas não era terroristas ou guerrilheiras, mas pessoas identificadas como obstáculos à contrarrevolução. Qualquer um que representasse a ideia de uma sociedade de colocar as pessoas antes dos lucros deveria ser considerada subversiva. Uma vez varridos os ‘terroristas’, os militares se viraram contra os estudantes, professores, jornalistas, sindicalistas, artistas, cantores, pintores, escritores ou qualquer um que se opusesse de qualquer forma ao regime. A junta conseguiu aniquilar fisicamente a esquerda argentina.

Capitalismo na prática

A ‘Guerra Suja’ se esmerou em destruir as fortes tradições esquerdistas e revolucionárias argentinas. Por isso ela não se contentou na mera eliminação das guerrilhas. Videla declarou: “morrerão tantas pessoas quantas forem necessárias para restaurar a ordem”. O obstáculo real à nova ordem era o coletivismo dentro da esfera pública. Portanto, a ‘guerra’ foi montada para desmantelar todas as formas de organização de massa e qualquer senso de solidariedade. Ela baniu espetáculos públicos, encontros políticos, greves, teatros, festas e encontros não-militares em largos ou praças. As fontes da mídia independente foram fechadas e a educação ficou sob estrito controle. Os militares aprovaram uma sentença de prisão de dez anos para qualquer mídia que propagasse histórias ou imagens que tentassem desacreditar as forças armadas. Livros de Marx, Lenin, Engels, Sartre, Neruda e, até mesmo, Freud foram proibidos e queimados. Uma completa limpeza ideológica foi o mais claro indicador de um projeto econômico que foi estendido a cada lar e afetou cada indivíduo mesmo com a negação pública da junta militar de que usava violência em massa com fins econômicos. A ‘suja’ cultura esquerdista foi, portanto, exterminada pela ação de ‘água e sabão’ e substituída pela purificada e esterilizada cultura do capitalismo. O principal condutor dessa nova ‘cultura’ foi Jose Martínez de Hoz, um economista treinado em Harvard encarregado da política fiscal. Ele cuidou para que o capital se concentrasse em conglomerados e desregulou toda a economia argentina. Além disso, ele a abriu para uma enormidade de produtos importados removendo os antigos controles de importações. A enorme redução da regulação estatal argentina gerou o que o historiador econômico André Gunder Frank chamou de “um inflação desvariada e sem controle cujas consequências e efeitos pretendidos são transferir a renda e a riqueza do trabalho para o capital e do pequeno para o grande capital.

Jose Martínez de Hoz. Foto: domínio público

No seu primeiro ano de serviço, De Hoz vendeu centenas de companhias estatais, permitiu aos empregadores a livre demissão de trabalhadores e baniu todas as formas de greves e ocupações. Entraram as motos Kawasaki, os televisores coloridos e o automóveis Honda. Saíram os controles de preços, os pequenos negócios, a habitação pública e os gastos públicos. Naturalmente, os alvos destas políticas foram os trabalhadores e os setores mais pobres da população que testemunharam o crescimento do desemprego, a elevação constante dos preços dos alimentos e o desmantelamento do estado de bem-estar pelo capitalismo.

A Junta produziu uma miséria espalhada por todos os lugares. Enquanto a economia transformava Buenos Aires em uma favela de dez milhões de habitantes, o impacto da desregulação capitalista era inconfundível. Em um ano de governo militar, a pobreza aumento em espiral, fábricas fecharam, bairros ficaram sem água, doenças e má nutrição tornaram-se comuns e os salários perderam 40% de seu valor.

Antes da Junta tomar o poder, a Argentina tinha um nível de pobreza (4,7%) menor que os Estados Unidos e a França. Em 1983, esta taxa estava em 19,1%. O custo de vida subiu 140% somente em 1977, o que criou uma nova camada pauperizada de indivíduos cuja renda era insuficiente para comprar apenas o básico. As políticas econômicas agravaram a situação aumentando o desemprego, a desnutrição, surtos de febre tifoide, e mortes em geral causadas pela quebra do antigo estado de bem estar. Na prática, as pessoas não estavam somente sendo mortas diretamente pela ‘Guerra Suja’, mas também diariamente por meio do declínio das condições de vida, um tipo de assassinato que é bem menos direto e visível. Na Argentina, a conexão entre as práticas econômicas capitalistas e as mortes foi inegável. A questão é porque estas práticas foram executadas e a favor de quem.

Os Estados Unidos e o envolvimento das corporações: tornando o planeta seguro para o capital

O sistema econômico ao qual a Junta jurou proteger penetrou na Argentina por meio da determinação dos Estados Unidos em aumentar a sua hegemonia no hemisfério ocidental e tornar o ambiente seguro para a lucratividade. As contrarreformas econômicas na Argentina sustentadas por este objetivo último, foram uma espécie de benção para os proprietários de terra locais e para as elites financeiras nacionais e internacionais. S fortunas das corporações multinacionais mudaram dramaticamente quando eles foram libertados das regulações e ficaram livres para pagar baixos salários ou inundar o mercado com produtos importados. Muitas firmas expressaram sua gratidão participando ativamente na campanha contra o terror: a Ford Motor Company forneceu aos militares os veículos que seriam conhecidos com ‘morte ambulante’ e permitiu a montagem de centros de tortura dentro das suas fábricas. Em conjunto com Acindar, Astarsa, Chrysler, Dalmine Siderca, Fiat Concord, Mercedes Benz e Ledesma, a Ford participou ativamente da política de ‘vistas grossas’ ao desaparecimento de delegados de chão de fábrica, dessa forma limpando a linha de montagem de sindicalistas.

Por estas razões, para os Estados Unidos, a Junta funcionou como um tampão contra a expansão do comunismo e como uma cobaia para ‘os livres mercados no terceiro mundo’. Muitos dos economistas que conduziam o país durante a ditadura foram educados nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, documentos que vieram a público, revelaram a relação íntima entre de Hoz e o Secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, que deu a luz verde para a ‘Guerra Suja’ em junho de 1976 quando falou ao ministro argentino do Exterior: “Nós compreendemos que vocês devem impor autoridade. Façam o que tiver de ser feito e rápido.”

Secretário Henry Kissinger apoiou a “Guerra Suja”. Foto: Departamento de Estado dos EUA

Por outro lado, para a junta militar, os Estados Unidos eram mentores de métodos anti-subversivos que forneceram apoio ao combate ao comunismo. A Escola das Américas[1], em Fort Benning, na Geórgia, onde os alunos aprendem como implementar torturas e assassinatos para fins políticos, graduou os generais Jorge Rafael Videla, Roberto Viola e Leopoldo Galtieri entre outros membros da junta militar. Por meio da Doutrina de Segurança Nacional, os Estados Unidos basicamente estabeleceram uma agenda para os militares argentinos, e da qual dependia a promoção dos interesses capitalistas na região.

Construindo silêncio

O terror na Argentina foi constituído para aterrorizar a população em geral, particularmente porque não existiam limites, tudo poderia ser justificado. Essa foi a forma mais efetiva de conseguir o silêncio de cidades inteiras. Quando um alvo era identificado, os famosos Ford Falcons apareciam na residência da pessoa e a vítima era morta ou levada para um dos muitos campos de tortura. Existem milhares de testemunhos que descrevem como eram acorrentados, a agonia do isolamento, a fome sensorial e o processo de interrogatório. Os métodos mais comuns de tortura[2] eram choques elétricos aplicados no corpo geralmente imerso em água ou em feridas abertas; o submarino, ou a imersão da cabeça na água; espancamentos com os punhos, rifles ou pedaços de pau; abusos sexuais e estupro; privação do sono, alimento, água e atiçar cachorros ferozes contra os presos. A tortura foi fundamentada na desumanização, em fazer os prisioneiros esquecerem seus passados, seus valores, princípios e o senso de si mesmo. Mais uma vez, a proposta foi de curar a doença da solidariedade e assegurar um mundo onde todos associam quaisquer impulsos em direção ao socialismo com dor.

Na Argentina, ser esquerdista era motivo para ser assombrado; ser testemunha era pedir para ser enforcado, ignorar e manter-se desinformado eram as formas de sobreviver. O uso do terror em tal escala era a forma de assegurar o silêncio da maioria, de criar condições para que ninguém ousasse falar. Os massacres eram encobertos o suficiente para serem negados. Por outro lado, a Junta fez questão de abertamente deixar evidências de seu terror para garantir que as pessoas tivessem consciência da sua perpetuação.

Nomes das pessoas desaparecidas na “Guerra Suja”. Foto: domínio público

Tanto estavam na base deste terror que os dizeres “por algo sera” (por alguma razão) e “no se meta” (não se meta) se tornaram muito populares. Optar por não saber era parte do pensamento coercitivo imposto por um regime metódico, violento e ditatorial. A imprensa argentina foi parte de toda uma campanha contrarrevolucionária: os únicos jornais que tentaram divulgar a ‘Guerra Suja’ foram o The Buenos Aires Herald e o La Opinión of Jacobo Timerman. O resto da imprensa burguesa fez o papel de encobrir os crimes da burguesia, principalmente ao ignorar o massacre. Eles preferiram fingir que “uma andorinha não fez um verão”, não importando o quão devastadora sua atitude de ignorar a realidade era. Na verdade, a imprensa foi uma importante ferramenta na campanha burguesa de vilanizar a esquerda e espalhar terror. E isso era perfeitamente lógico, pois os principais jornais pertenciam à burguesia e sempre seguiram a linha que os mestres mandavam.

A violenta imposição de silêncio e passividade na Argentina foi tão efetiva que deixou suas marcas por muitos anos. A população argentina ficou paralisada, mas uma hora o regime tinha que entrar em colapso e isso aconteceu em abril de 1983 quando foi derrotado na Guerra das Malvinas: uma guerra provocada para exterminar os movimentos de massa que estavam acontecendo no momento. Entretanto, antes de deixar o poder, o regime proclamou a sua vitória na ‘Guerra Suja’ e se perdoou de todos os seus abusos ou mau comportamento durante o seu período no poder.

A Argentina hoje

Atualmente, as fontes oficiais nunca admitiram a real extensão da ‘Guerra Suja’, que ela foi economicamente motivada. A maioria dos verdadeiros perpetuadores da ditadura escapou intocados. Kissinger conseguiu escapar do julgamento pelo seu envolvimento e continuou a apoiar abusos no exterior. As corporações que participaram no terror enfrentaram acusações que caducaram por que os tempos para condenação caducaram.

Na Argentina, os remanescentes da ditadura ainda operam às claras, pois são parte integrante do Estado. Os reformismo continua a desapontar as massas trabalhadoras, contribuindo para estreitar a extrema direita. A preservação dos interesses econômicos por meio dos militares ainda é um método considerado legítimo em algumas circunstâncias e o capitalismo continua a condenar uma vasta parte da população a uma pobreza tenebrosa.

As consequências políticas do peronismo e da ditadura de 1976 definiram amplamente a sociedade argentina e o passado ressurge de várias maneiras. Na Argentina, uma ditadura militar brutal e bárbara conseguiu chegar ao poder pois o peronismo não era mais capaz de conciliar os interesses de duas classes fundamentalmente opostas: os capitalistas e a classe trabalhadora. A burguesia precisava destruir o movimento trabalhista argentino e se livrar das limitações impostas pela democracia burguesa. E, por sua vez, quando a indistinguível face brutal do capitalismo não foi mais capaz de segurar as massas, a classe dominante argentina foi forçada a conceder formalmente à democracia burguesa novamente sem qualquer reais mudanças fundamentais de como a sociedade era governada. Como resultado, a Argentina atualmente (juntamente com a vasta maioria da América Latina) permanece vítima do capitalismo patrocinado pelo imperialismo norte-americano. Por sete décadas, o peronismo, e depois a ditadura de 1976 seguidos pelo atual regime democrático burguês mantiveram as desigualdades sociais, a divisão de classes e o predomínio do capital.

Protesto recente na Argentina. Nas placas lê-se: “Liberdade para Cesar Arakaki, abaixo a repressão, fim das perseguições”. Foto: Prensa Obrera

A crise na Argentina atual é parte da crise do mundo capitalista. A classe dominante argentina pode mudar da ditadura militar à democracia tão facilmente quanto trocar de camisa. A razão de que eles não podem isso no curto prazo é que o atual balanço de forças das classes sociais é enormemente favorável à classe trabalhadora. Existe um elemento adicional que é a memória da classe trabalhadora. Os trabalhadores não se esqueceram do período do regime militar e que ele significou. Portanto, a classe dominante argentina arrasta-se com a democracia burguesa. Mas isso não significa que sempre será assim. Temos na nossa frente um período de intensificação da luta de classes, mas no longo prazo, se a classe trabalhadora chegar ao poder, os monstros do passado poderão retornar.

Descarrilhar a roda argentina do capitalismo requer um movimento político que é independente de qualquer força capitalista e que mostra seu poder pela organização da classe trabalhadora. Devemos permanecer solidários com o povo argentino e liberar os processos sociais que podem levar a uma ruptura radical com o sistema capitalista e à política que o serve. Somente assim o povo argentino poderá dizer adeus às condições que determinam suas vidas e se libertar das sombras do peronismo e da ditadura militar.

O ativista anti-ditadura Rodolfo Walsh escreveu “Nada poderá nos impedir. Nem mesmo a prisão ou a morte, pois você não pode prender ou matar a imensa maioria de argentinos que sabem que somente o povo poderá salvar o povo”.

[1] N.T. – Não somente os militares argentinos receberam treinamento em Fort Benning, mas todos os componentes das ditaduras militares que existiram na América Latina naquele momento. Para constar: os militares brasileiros também receberam este treinamento. Veja também Operação Condor.

[2] N.T. – Como o treinamento era igual aos militares sul-americanos, estas formas de tortura também forma muito populares entre os brasileiros.

Artigo publicado originalmente em 30 de janeiro de 2018, no site da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “Argentina’s past: Peronism, revolution and counter-revolution”.

Tradução Ivison Poleto.