O moderno Vaticano ideológico da burguesia

No dia do aniversário da morte do maior filósofo da história da humanidade (Karl Marx 1818-1883) publicamos este artigo que faz uma crítica marxista dos atuais ideólogos da classe burguesa.

A Intelligentsia [1], como camada social, é uma das principais agências de defesa e dominação ideológica da burguesia. Quanto mais decadente e corrompida se torna a burguesia, mais escatológica se torna esta sua agência de dominação; hoje mais que ontem e amanhã mais que hoje. A rigor, a própria burguesia não “pensa”; faz negócios. E até esta tarefa já delega há bastante tempo aos seus gerentes recrutados da classe média, este grande setor da Intelligentsia. Pode-se afirmar, com grandes margens de acerto, que a burguesia hoje nem “pensa”, nem faz negócios; apenas nutre e desenvolve a pança.

Essa delegação de poderes aos seus gerentes, não a faz a burguesia como opção programática. O processo é histórico, ou seja, objetivo, inelutável. Os velhos “capitães da indústria”, que tocavam ousadamente seus negócios de própria mão, fazem hoje parte de um passado remoto. Na verdade, quanto à burguesia, o tema que, hoje, pode despertar algum interesse é a classe como um todo e não os burgueses de carne e osso, cuja insignificância moral e espiritual é tão notável que até seus próprios ideólogos os desprezam intimamente.

Não são os gerentes recrutados que nos interessam aqui. Estes não fazem parte do núcleo central da agência de dominação ideológica da classe dominante. A rigor, apenas vendem sua força de trabalho altamente qualificada por suculentos salários, seus paraísos particulares. Sua única preocupação é a de se manter up to date [2] em suas especialidades e nas intrigas particulares de seu micro-cosmo particular trabalhista e social. Grande parte deles constitui a fonte de renda de psicólogos e psicanalistas, bem como de cartomantes, egiptólogos e de médicos neurologistas. Seus interesses intelectuais estão restritos aos limites de sua hipocondria. É desta camada que saem os direitos autorais de Paulo Coelho e as assinaturas anuais da revista semanal Veja. Votam sistematicamente em candidatos da direita e lêem a coluna de Miriam Leitão – e não conseguem entender porque ela ainda não ganhou o prêmio Nobel de economia! Enfim: essa gente é tão interessante quanto um sinal de trânsito.

Compondo a Intelligentsia, ao lado dos gerentes chapados, há diversas outras camadas, mas a que nos interessa é a dos ideólogos, a dos formadores de opinião, dos estrategistas mais “sérios” do capital. Seu santuário central, sua Roma pontifical, é o The Economist britânico, a fábrica do melhor cimento social que a burguesia pode produzir.

Aqui, cabe uma digressão. Já há um bom tempo, a dominação ideológica não mais se pode dar unicamente pela magia esotérica. Os feiticeiros estão naturalmente de plantão constante: o papa, o dalai lama, as igrejas evangélicas, as seitas espíritas etc. Sua função social é a de atender as questões menores. Mas o tempo histórico corre contra essa vertente de dominação.

O mundo mudou dramaticamente com a constituição do mercado mundial e o subseqüente gigantesco processo de urbanização. O público mais fiel da magia está se reduzindo dramaticamente: o campesinato está se diluindo vertiginosamente e migrando para as grandes cidades. E quando migra deixa grande parte de sua bagagem de escravo espiritual no local de origem.

Estas correntes são muito pesadas de carregar neste trânsito sócio-espacial; então, o migrante, de alguma forma, alivia seu peso somente pelo ato de deixar a senzala senhorial, para se tornar mais um proletário na cidade, onde irá alimentar a luta de classes.

Na cidade, as senzalas são de outra dimensão e qualidade para ele, o ex-camponês: os capitães do mato urbanos têm um trabalho danado para mantê-los em ordem. A burguesia necessita recrutar muitos capitães do mato (policiais, juízes, promotores, prisões, manicômios etc.) e isto custa caro – a manutenção do Estado burguês não é uma questão puramente orçamentária; é, também, a grande questão ideológica do momento histórico.

É em torno dessa questão da luta franca ou ainda encoberta entre a burguesia e o proletariado, particularmente nos centros urbanos, e da necessidade de se fortalecer cada vez mais o Estado para se manter o proletariado à raia, que se montam as “engenharias” ideológicas e políticas de toda ordem. É aqui que desempenha o seu papel a Intelligentsia como agência de controle social, de dominação ideológica. Pois é na cidade que eles encontram adversários ideológicos muitíssimo poderosos, mas muitíssimo poderosos mesmo. O proletariado urbano tem o péssimo hábito de se organizar como classe, nem que seja como um clube de gamão ou de futebol, para não falarmos de seus sindicatos profissionais e de seus partidos políticos. Mas, tão importante quanto, é também na cidade que se encontram as idéias heréticas: algumas delas muito elementares, outras não tão elementares e ainda outras já firmemente consolidadas política, conceitual ou organizativamente falando. Ah, os intelectuais da burguesia têm sim um indigesto trabalho a acometer! “Merecem” cada centavo que recebem!

Se pudesse optar, a burguesia não pagaria quaisquer impostos. Mas, em seus escalões mais altos, além da barriga proeminente, ainda resta um pouco de cérebro, o suficiente para dar uma olhada de esguelha a presente situação e ao futuro. E se assusta terrivelmente quando opera este pequeno exercício mental. Portanto, a contragosto, e sempre esperando resolver o problema da crescente carga tributária aos seus lucros, é forçada a subtrair um pouco de seus rendimentos para obter alguma proteção estatal, em todas as trincheiras existentes (o direito, a religião, os tribunais, as penitenciárias, os manicômios, a propaganda política e ideológica, a mendacidade pura e simples de suas mídias, sua calúnia insidiosa etc.). Hoje, o liberalismo econômico, que ela professava com tanto gosto, prazer estético e gasto de energia espiritual, se esconde em algum remoto escano de sua mente, como um poema de mau gosto que não pode mais recitar em público.

Hoje, ela é obrigada a professar um Frankenstein de liberalismo e keynesianismo. Sua “engenharia” política é a de repassar esta carga tributária no máximo possível para o restante da sociedade, inclusive para os seus aliados estratégicos, as classes médias. Como essa camada é muito heterogênea e ideologicamente dispersa, esta tarefa ainda é possível, ao prostituir sua camada superior. A maior carga sobra para os que vivem de seus salários, e que estão se tornando cada vez mais miseráveis. Espiritualmente, a burguesia já sente que vive no reino do absurdo e teme pensar nele, como o diabo teme a cruz. Não pode compartilhar todas as idéias de Keynes, quer viver também no longo prazo. Mas, como?

Quando surgiu no cenário da história, a burguesia não precisou pagar o serviço dos intelectuais e dos políticos que abriam – talvez inconscientemente – seu caminho. Estes constituíam uma plêiade de pensadores e dirigentes da mais alta envergadura moral e nível intelectual para a época. Não eram mercenários pagos. Recompensavam-se com o brilho de suas idéias precursoras e anunciadoras de uma nova era: a era da razão e da indústria. Mas, na verdade, apenas se estava abrindo caminho para um novo e mais poderoso sistema de opressão: o capitalismo.

Se sobrepusermos à curva real do desenvolvimento histórico do capitalismo a curva do desenvolvimento das idéias burguesas que captavam na abstração o movimento do capital desde sua gênese, verificaremos que a riqueza objetiva desse esforço intelectual se mantém praticamente justaposta (desde os fisiocratas, passando por Adam Smith e culminando com David Ricardo, com sua lei do valor) até o momento de sua crítica devastadora realizada por Marx. A crítica da economia política realizada tão magistralmente por Marx também não se deveu, unicamente, ao seu cérebro iluminado, mas à emergência no cenário social de um poderoso protagonista: a classe trabalhadora.

Depois da crítica da economia política por Marx, as duas curvas se separam drasticamente, em termos de objetividade teórica: o desenvolvimento do capitalismo continuou poderosamente até a I Guerra Mundial, mas seus ideólogos já estavam intelectualmente mortos muito antes. Passaram, definitivamente, da ciência à apologia. Temem mais que à peste o processo contraditório desse desenvolvimento.

Hoje em dia, esses intelectuais e políticos não podem ostentar, com honestidade e/ou com um mínimo de seriedade, aquele papel de arautos. Nada têm para anunciar. Pelo contrário: anunciam o fim da história! E, para isto, recebem belíssimas e substanciosas recompensas. Rigorosamente falando, a fábrica de cimento social da burguesia apenas produz uma argamassa bem inconsistente, cuja capacidade de liga é substituída pela propaganda de suas qualidades.

Vê-se isto continuamente. A Intelligentsia burguesa nunca acerta em seus prognósticos. Sempre é pega de surpresa. E, olimpicamente, ignora os erros cometidos. Como vai cair junto à burguesia que lhe paga, aproveita para retirar dela o máximo que pode, enquanto pode.

Por que é assim? Onde erram? O erro reside na gênese e no desdobramento de seu pensamento.

Um de seus produtos centrais, o discurso teórico, por mais tosco ou elaborado que seja, surge do movimento do fenômeno que se esforçam por apreender na consciência. O discurso surge, como um desafio, do turbilhão contraditório aparentemente indecifrável, mas profundamente perturbador, da matriz genética que poderíamos chamar de “Babel fenomênica”. O erro deriva daqui.

Como somente vêem apenas a superfície do fenômeno e, em decorrência, não conseguem penetrar o emaranhado de suas contradições, que temem mais que a qualquer outra coisa, a maioria dos intelectuais despreza o movimento do fenômeno e passa a achar que o discurso, sua obra, é o demiurgo [3]. Acham que o mesmo surge de forma independente de sua própria cabeça; quanto mais iluminada, mais eficaz. A maior preocupação desta maioria não é a objetividade de seu pensamento, mas a propriedade intelectual deste “tesouro”, a originalidade autônoma de seu pensamento. E não cede nunca esta posição; nunca se retira dela.

Hoje só lhes resta fazer da realidade a apologia: “Tudo que é real, é racional”. Ficam por aí, na superfície consoladora desta afirmação de Hegel, sem se permitir se aprofundar na lógica do discurso hegeliano – e este é um terreno minado para eles. Na verdade, o intelectual como casta gosta mesmo é de frases. Não percebe a decrepitude desta realidade e, naturalmente, quando a percebe, lança esta percepção nos arcanos do inconsciente e nunca a denuncia. Sua “respeitabilidade” e, mais importante, seu pagamento, depende desta postura. Se, ao contrário, lhe faz a crítica, somente ganhará o anátema [4] e a fome.

Quando emerge do caldeirão fenomênico, o produto da capacidade de pensar do intelectual burguês sofre, dessa forma, tais perturbações estruturais que, logo, perde sua inspiração e vigor inicial. Sua vida “útil” é diretamente proporcional ao esgarçamento de seu débil vínculo prévio com a realidade. Ao se tornar filistino, “respeitável”, seu pensamento teórico se prostitui. Isto também serve para caracterizar o pensamento teórico de certos “marxistas” que sucumbem à atração da “respeitabilidade” burguesa. Não se pense que constituem um pequeno grupo; pelo contrário, a burguesia os recruta aos montes para fazer parte de sua vanguarda teórica como contraponto muito produtivo. Trotsky, com sua aguçada acuidade, já observara que “o marxismo tornou o socialismo uma ciência. Isto não impede a certos marxistas fazer do marxismo uma utopia”. Estes tipos de “marxismo” são muito bem tolerados no Templo da ciência burguesa.

Não é ocioso reafirmar e enfatizar que, como tudo o mais, as idéias, diferentemente do que pretende a maioria dos intelectuais, têm origem terrena, vigorosa e ousada. A luz, definitivamente, não foi roubada do Olimpo por Prometeu – este é um mito grato aos intelectuais que se pretendem guardiões e/ou especialistas de algo de origem nobre, distinta, divina. Os verdadeiros Prometeu, os Prometeu materialistas, acenderam suas luzes de fogueiras terrenas, prosaicas, tentando e errando, queimando os dedos e as pestanas. Pagaram muito caro para avançar cada passo.

Ao emergirem, as idéias somente podem crescer e se desenvolver no seio do fenômeno, sem perder contato em nenhum momento com sua fonte de nutrição real, ou seja, o movimento real, conflituoso, contraditório, mas ascendente, do fenômeno. Pois, o pensamento teórico descolado do real e que se nutre de si próprio, de suas próprias articulações discursivas, sempre falhará. Nosso velho, competente e muito querido mestre, Lênin, já alertava: “A verdade é sempre concreta”. Apenas não devemos esquecer, como sugere esta sua idéia, que o concreto nunca pode ser definitivamente arrematado na consciência. Seu fluxo, seu devir, é que é o mais interessante.

Entretanto, uma vez “nascidas”, ao se articularem doutrinariamente à margem do movimento real do fenômeno, as idéias podem adquirir o caráter zumbi de demiurgos morto-vivos. E, assim, podem retroagir sobre si mesmas, declarando sua autonomia absoluta. O discurso se torna soberano e sem vínculos. O discurso é tudo e tudo o mais é nada. Em sua casca abstrata, pretendem aprisionar a realidade. E passa-se ao regozijo da posse de um cofre que não contém nenhum tesouro. O conhecimento é declarado divino e seus portadores creditam-se o papel de seus sacerdotes. Divergem entre si apenas formalmente, o que não impede que, muitas vezes, briguem como cães hidrófobos pela bolsa-prêmio.

Este é o papel social e político da casta intelectual nestes tempos de extrema decadência capitalista. Como nada tem de novo para afirmar, ela promove, por todos os meios, a confusão e o obscurantismo; a mentira e a calúnia. Pensa ela que as barreiras de defesa, que construíram em torno das idéias sufragadas por seu patrono, a burguesia, são suficientes para resistir ao impacto corrosivo e constante da realidade em seu processo de desenvolvimento vivo e ascendente. Sabe ela que a burguesia somente lhes pagará pela única tarefa real que lhes cabe, a de montar guarda; pela tarefa de sentinela dos bens patrimoniais já constituídos e sob risco constante de se perder, e não pela tarefa de arautos de alguma idéia nova.

10 de março de 2011.

Notas do editor:

1. A princípio, a palavra tinha um sentido restrito, baseado na auto-definição de uma certa categoria de intelectuais. Posteriormente, passou a ser empregada para designar coisas diferentes: tanto o conjunto dos intelectuais de um dado país, como os grupos mais restritos de intelectuais que se fazem notar por sua capacidade de “fornecer” uma visão compreensiva do mundo, por suas atividades direta ou indiretamente políticas.

2. “Up to date” é uma expressão em inglês que neste contexto quer dizer “atualizados”.

3. Deus criador, único, última palavra.

4. Excomunhão, exclusão do meio social onde se vive e trabalha.

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