Grã-Bretanha: o assassinato de Jo Cox – uma ação da direita racista

Análise de Alan Woods sobre o assassinato da deputada trabalhista em meio às campanhas para o referendo sobre a adesão da Grã-Bretanha à União Europeia (UE).

Ao meio-dia de ontem, Jo Cox, uma jovem deputada trabalhista, encontrava-se do lado de fora de uma biblioteca municipal, como fazia todas as semanas, em um encontro com os residentes de sua circunscrição eleitoral. Era um dia normal e corrente na pequena cidade de Birstall, próxima a Leeds, em Yorkshire. Não havia nada que indicasse os horríveis eventos que estavam para acontecer.

A deputada foi subitamente atacada por um homem armado com pistola e faca. Ela foi atingida por dois a três tiros e em seguida foi repetidamente esfaqueada. Seu agressor, que gritava algo parecido a “Britain First” (A Grã-Bretanha em Primeiro Lugar), deixou sua vítima ensanguentada no chão. A polícia disse que a parlamentar tinha sofrido sérios ferimentos e, às 1,48 horas da tarde, foi declarada morta. Ela era mãe de dois filhos.

Este brutal assassinato de uma jovem mulher, parlamentar trabalhista, enviou ondas de choque e repulsa por toda a sociedade britânica. O assassinato de um parlamentar é algo muito raro na Grã-Bretanha e abalou o establishment político do país.

A campanha cada vez mais acalorada do referendo sobre a adesão da Grã-Bretanha à União Europeia (UE) se deteve abruptamente. O Primeiro-Ministro David Cameron deixou de comparecer a um comício em defesa da Permanência [da Grã-Bretanha na UE – NDT], em Gibraltar, dizendo o seguinte: “É justo que suspendamos as atividades de campanha neste referendo e os pensamentos de todos estarão com a família de Jo e de seus eleitores neste momento terrível”.

Houve motivação política?

Teve este assassinato motivação política? É muito cedo para se dar uma resposta definitiva a esta questão. Algumas pessoas se apressaram a descartar esta possibilidade. Rachel Reeves, outra parlamentar trabalhista, não perdeu tempo em afirmar que o assassinato nada tinha a ver com o Referendo da UE. No entanto, a despeito de seu tom confiante, esta afirmação parece altamente improvável.

Tanto o lado que defende a Permanência quanto o que defende a Saída da UE condenaram imediatamente o assassinato e emitiram declarações abominando a violência. Não duvidamos da sinceridade destas declarações. Mas elas levantam a questão. Que papel desempenhou em tudo isto a propaganda anti-imigrante e xenofóbica da Brexit [Saída da Grã-Bretanha da UE -NDT]? Essa pergunta não vai sumir e terá que ser encarada.

As negativas precipitadas de uma vinculação política estão em contradição com os fatos conhecidos do caso. Tanto o alvo do assassino quanto o calendário de suas ações não são certamente uma coincidência. Jo Cox, que foi eleita ao parlamento como deputada trabalhista pelas circunscrições de Batley e Spen no ano passado, como quase todos os parlamentares trabalhistas, apoiava a campanha pela permanência da Grã-Bretanha na UE. Seu marido Brendan e os dois filhos pequenos participaram do desfile de uma flotilha de barcos pró-UE no Tâmisa no dia anterior aos disparos.

Seu agressor foi ouvido gritando duas vezes “Britain First” ou “Put Britain First” (Ponham a Grã-Bretanha em primeiro lugar), enquanto atirava e esfaqueava sua vítima. Isto não pode ser um acidente.

Quem é Thomas Mair?

O suspeito detido pela polícia em conexão com o assassinato é um homem de 52 anos de idade, desempregado, de nome Thomas Mair. Ele mora em um imóvel do Conselho local [Câmara de Vereadores – NDT] e é descrito pela vizinhança como um homem quieto e amigável, com gosto pela jardinagem. Em outras palavras, era visto como algo parecido a um zero à esquerda. Ele também tem um histórico de doença mental.

Em 2010, Mair se colocou voluntariamente no parque campestre de Oakwell Hall, em Birstall, depois de ser paciente do Pathways Day Centre, uma instituição para adultos com doenças mentais, baseada em Mirfield. Ele disse para o médico inspetor naquele momento: “Posso dizer sinceramente que isto me fez mais bem do que toda a fisioterapia e medicações do mundo. Muitas pessoas que sofrem de doenças mentais são isoladas socialmente e desvinculadas da sociedade, sentimentos de inutilidade também são comuns, principalmente causados pelo desemprego prolongado”.

Assim, o quadro que emerge é o de um solitário com problemas mentais. Estes fatos de alguma forma fornecem uma base psicológica geral para suas ações. Mas, seja como for, não esgotam a questão de sua motivação específica neste caso. De acordo com o Independent de hoje [17 de junho], Thomas Mair tinha vínculos antigos com um grupo de extrema-direita baseado em Londres. Ele foi identificado como “um dos primeiros subscritores e apoiadores de ‘SA Patriot’”, uma publicação on-line do Springbok Club, uma organização que defende os suprematistas brancos do regime do Apartheid da África do Sul.

Este grupo se descreve em seu site como defensor do livre mercado capitalista, do patriotismo e da correção antipolítica. E tem feito campanha durante muitos anos para que a Grã-Bretanha saia da União Europeia. O editorial de junho de 2016 do Springbok Cyber Newsletter, que foi dedicado à Grã-Bretanha e ao referendo abre assim:

“Na quinta-feira, 23 de junho de 2016, todos os eleitores britânicos terão a oportunidade de votar pelo futuro de seu país. Eles podem votar ou por permanecer aprisionados na artificial e retrógada União Europeia, ou por recuperar sua independência soberana…”.

O artigo termina com a seguinte declaração:

“Mas não devemos nos concentrar unicamente nos aspectos negativos da permanência na UE. Nossa campanha deve ser principalmente positiva e otimista por um futuro fora da UE. O lema do Fórum Patriótico (uma agrupação que congrega organizações patrióticas da qual o Springbok Club faz parte) é ‘Fora da Europa e dentro do Mundo’. Há um futuro dourado à espera da Grã-Bretanha quando o país retornar a sua visão tradicional de olhar através dos Mares Abertos e de seus irmãos e irmãs étnicos da Commonwealth [refere-se à Commonwealth britânica – uma organização intergovernamental composta por países membros independentes – NDT] de todo o mundo. Os próximos dias nos inspirarão! ”.

Há, de fato, uma outra organização de extrema-direita chamada Britain First, uma dissidência do BNP fundada há cinco anos, que deliberadamente cultivou uma imagem paramilitar com campos de treinamento para seus membros e que se compromete a adotar “ação direta” contra a ‘jihad islâmica global”. Ela apelou a ex-soldados a se juntar – com imagens em seu site de armas de fogo e crâneos e o slogan “clube de caçadores de ISIS”. O site é de teor anti-imigrante e está cheio de narrativas negativas sobre Muçulmanos.

Este grupo negou qualquer conexão com o assassinato, que eles consideram “absolutamente intolerável”. E o fato de que Mair gritou “Britain First”, quando esfaqueou e atirou em sua vítima, pode ser uma coincidência. A extensão das ligações de Mair com o Springbok Club não é conhecida. Sequer sabemos se ele leu este editorial.

Além disto, o Southern Poverty Law Centre dos EUA informou que Thomas Mair era um comprador ávido de literatura neonazista do grupo estadunidense National Alliance. Apresentaram recibos mostrando que Mair subscrevia o “National Vanguard” e que também comprou livros e panfletos no valor de mais de 600 dólares. Alguns desses recibos datam de 1999 e 2003. Em meio à literatura que ele comprou deste grupo neonazista havia manuais sobre fabricação de bombas e armas de fogo. Isto é relevante, visto que uma testemunha disse a Sky News que Mair portava uma arma de fogo que mais parecia ser “dos tempos da I Guerra Mundial ou improvisada”.                  

Pode muito bem ser o caso de que suas ligações com este, ou qualquer outro grupo de extrema-direita, fossem muito frouxas. Mas este também é frequentemente o caso de indivíduos que saem e assassinam pessoas porque estão “inspirados” por alguma propaganda jihadista na internet. Mentes desequilibradas podem ser facilmente empurradas para o abismo através de mensagens extremistas. Em qualquer caso, parece muito claro que o veneno reacionário do chauvinismo teve um impacto em sua mente já perturbada.

A pergunta deve ser feita: até que ponto sua ação foi influenciada pelo sentimento geral de xenofobia anti-imigrante, que chegou a se tornar uma característica dominante da campanha do referendo e, de fato, da política britânica em geral nos últimos meses e anos?

“Put Britain First”

À medida em que a campanha do referendo se arrasta, com as pesquisas de opinião mostrando uma margem muito estreita entre os “dentro” e os “fora”, o tom se tornou mais agudo, os ataques pessoais se tornaram mais virulentos. Em uma tentativa de responder ao argumento de que a Brexit seria um desastre econômico, o outro lado intensificou a propaganda anti-imigração. O estado de ânimo se torna cada vez mais feio e envenenado.

O UKIP de direita é que está tocando mais forte o tambor anti-imigrante. Seu líder Nigel Farage mostrou espalhafatosamente um enorme cartaz com a imagem de uma longa fila de imigrantes, sugerindo que a Grã-Bretanha está a ponto de ser invadida por estrangeiros. E embora o cartaz tenha sido criticado pelos principais líderes da Brexit, todos eles avançaram rapidamente na direção das políticas anti-imigrante e xenofóbicas de Farage.

Não há nada de novo sobre a mensagem racista velada divulgada por UKIP, é claro. Mas há algo novo sobre a forma como este veneno, que até então era considerado inaceitável pelos principais partidos políticos, se tornou aceitável.

As tensões na sociedade, que agora irromperam abertamente, são o resultado de anos de agitação xenofóbica da liderança Tory, incluindo Cameron e Osborne, que de forma constante trataram de vender o mito de que os imigrantes são os culpados pelos resultados de suas políticas de austeridade. A ala direita trabalhista também deve assumir a culpa por favorecer esta retórica anti-imigrante. A esse respeito, muitos políticos de direita do campo da Permanência [permanência da Grã-Bretanha na UE – NDT] também são responsáveis pela atmosfera venenosa que envolveu a sociedade britânica.

Em uma tentativa de desviar a atenção dos trabalhadores das causas reais por trás do desemprego e da crise da habitação, setores da classe dominante terminaram por criar um monstro Frankenstein de racismo e xenofobia que agora está fora do controle. Os políticos de direita e a imprensa Tory agora agem horrorizados em resposta ao assassinato de Jo Cox e ao comportamento de Nigel Farage, mas foram eles que fertilizaram o terreno para criaturas como UKIP, Britain First e fascistas como Mair prosperar.

A este respeito, o assassinato de Jo Cox é o outro lado da moeda do tiroteio em Orlando, Florida, na semana passada. A mídia acusa o Islã e os imigrantes por todos os males da sociedade, e isto, por sua vez, alimenta o fogo dos vigilantes fascistas e de direita, que veem como seu dever fazer “justiça”. As vítimas, enquanto isto, são as comunidades da classe trabalhadora e os que estão no movimento dos trabalhadores lutando por justiça real.

Quando Farage foi entrevistado no noticiário do Canal 4 recentemente, foi-lhe perguntado o que pensava do fato de que parlamentares conservadores, como Michael Gove e Boris Johnson, que anteriormente o consideravam com desprezo, estivessem agora repetindo sua mensagem anti-imigração palavra por palavra, ele abriu um sorriso de orelha a orelha e respondeu que isto o deixava muito feliz. Sem dúvida que sim.

Michael Gove e Boris Johnson não são racistas por princípio. São políticos oportunistas que se agarram com ansiedade a qualquer mensagem, racista ou não, que ajude sua campanha. Nigel Farage lhes está muito grato por isto. Há inclusive rumores de que se Boris Johnson se tornar o líder do Partido Tory [Partido Conservador – NDT], estaria preparado para oferece a Mr. Farage uma posição em seu governo. Quando isto foi lembrado a Farage, ele sorriu ainda mais, enquanto dizia que não sabia de nada de qualquer proposta como esta – o que não significa que a proposta não exista.

A guinada à direita no topo teve efeitos ainda mais sérios na base. Repete-se constantemente a mensagem de que todos os nossos problemas seriam resolvidos somente se a Grã-Bretanha sair da UE: haveria abundância de moradias e de empregos e que o NHS [Serviço Nacional de Saúde – NDT] iria florescer – somente se não houvesse imigrantes.

Naturalmente, esta mensagem é expressa da forma mais sutil possível. Inclusive Farage disse que ele é “pró-europeu, mas anti-UE” (ele é casado com uma alemã). Mas esta mensagem, quando é filtrada às profundezas da sociedade, perde toda pretensão de sutileza. Nos bares e paradas de ônibus, nas ruas sujas das grandes cidades com alto desemprego, a mensagem é alta e clara: “Abandonar a Europa! Expulsar os imigrantes! ”.

Há abundância de evidências anedóticas de uma crescente agressão verbal contra os imigrantes. O bêbado dentro de um ônibus dá voz a todas as suas frustrações e raiva insultando um estrangeiro, encorajado pelo fato de que ele só está dizendo em linguagem clara o que os políticos lhes disseram que é bom dizer: “Put Britain First! ”.

É uma sorte que, na maioria dos casos, esta xenofobia não vá além do abuso verbal. Mas quando o seu veneno funciona em mentes desequilibradas, o resultado pode ser um assassinato. É difícil resistir à conclusão de que o assassinato de Jo Cox foi o resultado desta combinação tóxica.

O veneno da xenofobia

A questão da futura relação da Grã-Bretanha com a União Europeia polarizou a nação antes do referendo de 23 de junho, com as paixões voando alto em ambos os lados. As pesquisas de opinião sugerem que a campanha pelo abandono da União Europeia ganhou apoio nos últimos dias. E conseguiu isto apenas jogando a carta anti-imigrante.

A campanha do referendo está empurrando, assim, a política britânica no sentido de um completo rompimento. As cisões no Partido Conservador entre Cameron e a fração Pró-União Europeia, de um lado, e os apoiadores de direita da Brexit, por outro, não serão emendadas facilmente. Boris Johnson, um dos principais líderes da campanha pelo Brexit, está se preparando para ser o próximo líder do Partido Conservador, se a Brexit ganhar o referendo.

Johnson também disse que o assassinato foi “absolutamente terrível”. E foi mesmo. Mas foi somente a ponta de um iceberg grande e feio. Esta demagogia de direita dos líderes da campanha pelo Brexit – precedida por anos de xenofobia e racismo por setores da classe dominante – está conjurando forças que não podem ser facilmente controladas. Está jogando com os piores instintos das pessoas: o medo de estrangeiros, a xenofobia que raia as fronteiras do racismo e que, em ocasiões, o expressa abertamente.

Isto coloca um sério risco para o movimento dos trabalhadores. É divisionista e reacionário. E está nas mãos dos piores inimigos da classe trabalhadora. Mesmo o mais cego dos cegos pode ver que a campanha da Brexit representa o “Little Englander” [nacionalismo exclusivista inglês – NDT], a ala mais reacionária da classe dominante britânica, os thatcheristas do livre mercado que agora são indistinguíveis dos xenófobos de UKIP. Não há um só átomo de conteúdo progressista, seja na campanha pela Brexit ou na campanha pela Permanência. Representam os interesses das duas alas da classe dominante e do Partido Conservador. E não têm nada em comum com a classe trabalhadora. Não podemos ter nada a ver com qualquer uma delas. De fato, os líderes da campanha pela Permanência estão adaptando sua mensagem à dos apoiadores anti-imigração da Brexit, ao dizer que “mesmo que permaneçamos na União Europeia, teremos que limitar o livre movimento das pessoas”.

O assassinato de Jo Cox é uma advertência para o movimento dos trabalhadores. Também é uma advertência para aqueles na esquerda que apoiam a campanha da Brexit, na crença equivocada de que ela contenha algum tipo de conteúdo progressista. Não há dúvida de que esta visão é sincera. Mas o caminho para o inferno está pavimentado de boas intenções. Não veem que a campanha pela Brexit está provocando a xenofobia mais venenosa? Não podem ver para onde tudo isto está levando? E como se pode defender uma campanha contra o racismo enquanto se continua a participar em uma campanha que está fomentando ativamente o racismo?

Está na hora de se pensar novamente! O movimento dos trabalhadores deve se levantar e lutar contra o flagelo do racismo e da xenofobia que está sendo propagado pela direita para dividir a classe trabalhadora e desviar a atenção da austeridade e dos ataques que estão sendo realizados contra os trabalhadores e a juventude. Mas também deve se distanciar da campanha pela Permanência, que apresenta a permanência na União Europeia como uma melhor opção, porque de alguma forma “defende os direitos dos trabalhadores”.

É hora de se colocar corajosamente à frente uma resposta socialista às questões da moradia, dos empregos e dos serviços públicos. Isto significa que o movimento dos trabalhadores deve se opor tanto à União Europeia dos capitalistas, à União Europeia dos banqueiros e dos monopólios capitalistas, quanto à ideia de “soberania britânica sobre bases capitalistas”. Somente uma genuína posição socialista internacionalista pode extrair o veneno da xenofobia das feridas da sociedade.

17 de junho de 2016.

Artigo publicado originalmente em 17 de junho de 2016, no site da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “Britain: The murder of Jo Cox – a product of the racist right wing.

Tradução de Fabiano Leite.