Família – Crítica

Uma favela brasileira ou uma villa venezuelana podem falar idiomas diferentes, mas ambas entendem a linguagem da violência e conhecem as regras. Consequentemente, os espectadores brasileiros, mais sensíveis à realidade social do nosso continente não sentirão estranhamento ao assistir o filme Família.

O primeiro longa-metragem do cineasta venezuelano Gustavo Rondón trata sobre Andrés (35) e seu filho Peter (12), moradores de uma favela de Caracas. Andrés é um pai ausente devido aos vários empregos, enquanto Pedro fica jogado pelas ruas com os amigos. A vida dos dois, além de ter um grande distanciamento, fica complicada quando Pedro se envolve em uma confusão, a qual os obriga a fugir do bairro.

Os primeiros minutos, vistos pelo autor no Festival Olhar de Cinema de Curitiba, lembram muito um documentário. Pensei ser um filme hibrido ou ter me confundido quando li a sinopse, mas não. O cineasta constrói uma ficção buscando atingir a realidade, o elemento documental aparece primeiramente na forma do enquadramento. A câmera na mão e sempre próxima aos personagens parece nos colocar dentro da trama. Nosso olhar parece estar em uma posição de terceira pessoa, ao acompanhar pai e filho por toda a situação.

Isso fortalece o ponto de vista do cineasta sobre favela e seus personagens. Não há quase cenas em planos abertos, quase não vemos a dimensão do lugar, apenas os ambientes em relação aos personagens. Além da realidade, a preocupação de Rondón é criar uma ambientação pessoal, no qual o espectador esteja incluindo de forma intima e próxima aos personagens.  Outra característica importante são os cortes abruptos, vemos imagens do cotidiano como o menino brincando, jogando papo fora, observando uma festa e indo na casa do amigo. As cenas parecem “saltar” de um momento para o outro, a sensação produzida é de uma elipse, como se o cotidiano do menino fosse sempre instável.

Esse tom muda com a entrada do pai em cena. Enquanto estavam apenas as crianças, nossa impressão era de um documentário, mas com a entrada do ator adulto vemos a ficção. As crianças continuam nos convencendo como verdadeiros moradores da favela, mas o filme parece adquirir um tom diferente com o adulto. Isso não significa um demérito para o ator, mas é apenas uma constatação de como ele parece conduzir nosso olhar do documentário para a ficção.

De acordo com o cineasta, cerca de 300 meninos fizeram o teste para participar do filme, o qual foi coordenado por três pessoas. Os selecionados participaram de uma oficina, e entre esses foi escolhido o ator principal. Segundo Rodón, a decisão para escolha ocorreu após muita observação. Durante as oficinas ele trabalhava como câmera e nenhuma criança sabia ser ele o diretor, o que possibilitou uma aproximação sem qualquer pressão.

Todas essas características lembram muitos os filmes brasileiros como Cidade de Deus e Carandiru. A história na Venezuela poderia ser em uma favela no Rio de Janeiro ou em Buenos Aires, a realidade social parece encontrar na forma documental a melhor maneira para a expressão da ficção em nosso continente. Os custos motivam essas escolhas, mas não é o único motivo, as duas obras nacionais citadas tiveram altos custos para os padrões brasileiros e latinos.

Esse tipo de filme, semelhante a um documentário e com “atores” não profissionais ou que parecem pessoas da região buscam um realismo, que no Brasil e outros países latinos serve para contar histórias ancoradas em problemas sociais. O “realismo latino” não seria assim, talvez, um estilo ou um gênero? Isso é algo que precisamos refletir, pois nenhuma das características citadas é nova, a novidade aqui está no conteúdo proposto. As favelas, prisões, a periferia, a classe trabalhadora e as pessoas mais pobres ficam mais realistas quando mostradas na forma descrita.

Esse estilo, adequado a nossa realidade, pode servir para falar sobre a situação das milícias no Rio de Janeiro, como Tropa de Elite, ou relatar a crônica de um pai tentando proteger seu filho. As duas formas contribuem muito para o cinema social latino americano.

* João Diego Jornalista e especialista em cinema pela Universidade Tuiuti do Paraná