Em Defesa da Arte Soviética: Uma Resposta a Jonathan Jones

"Atinja os Brancos com a Cunha Vermelha", por El Lissitzky. Crédito: Public Domain

O centenário da Revolução Russa abriu-se de forma apropriadamente explosiva com a primeira leva das perversas ordens executivas de Donald Trump, provocando protestos internacionais em escala gigantesca. É justo dizer que as tensões estão altas, e que a ira generalizada está na ordem do dia. No entanto, toda esta ira empalidece em importância diante da fúria virtuosa de um solitário crítico de arte do Guardian, cuja resposta a uma amostra londrina de pinturas do período revolucionário da Rússia faz com que os protestos anti-Trump das últimas semanas pareçam, em comparação, positivamente otimistas. Mesmo pelos padrões duvidosos da crítica de arte pequeno-burguesa, a diatribe de Jonathan Jones contra a exibição da Arte Russa do período 1917-32 na Real Academia de Artes (RA) distingue-se por uma histeria que beira o cômico.

“É uma mentira indolente e imoral continuar fingindo que havia algo de glorioso na experiência brutal que Lênin impôs à Rússia”, opina Jones. “Ou qualquer coisa de inocente em sua demasiado brilhante arte-propaganda”.

Não se afobe, querido, são apenas pinturas.

De acordo com o site da RA, a próxima exibição (que será aberta em 11 de fevereiro) comemorará o centenário com uma celebração de renomados artistas russos, como Wassily Kandinsky, Kazimir Malevich, Marc Chagall e Alexander Rodchenko, cujas obras foram forjadas no fogo da revolução. “Em meio ao tumulto, as artes prosperaram, inicialmente, à medida em que os debates giravam sobre a forma que uma nova arte “popular” deveria tomar”, lê-se na descrição do site da RA. “Mas o otimismo não era para durar: no final de 1932, a brutal supressão de Stalin havia baixado a cortina sobre a liberdade criativa”.

Créditos a quem se deve: para uma galeria do tipo mais burguês possível, esse sumário é inteligente.

O triunfante período logo após 1917 foi de enorme otimismo cultural. Antes de 1917, a arte e a cultura eram domínios estritos da elite, grande parte delas encerrada em grandes galerias de arte: “campos de concentração da mente”, como disse Trotsky. Enquanto isto, experimentar o gênio musical de Modest Mussorgsky ou Pyotr Tchaikovsky em um concerto poderia significar o salário de um mês de um trabalhador médio. Depois da Revolução de Outubro, os Bolcheviques deram um fim imediato ao monopólio burguês e aristocrático sobre as artes. Os portões dourados das galerias da Rússia foram abertos às massas, exibindo pela primeira vez a rica herança artística da Rússia (em grande parte expropriada de coleções privadas) aos trabalhadores e camponeses.

Enquanto isto, os artistas radicais se inspiravam para situar um estilo digno do novo mundo, empurrando as fronteiras de cada meio: da pintura ao cinema, à música, à poesia e à arquitetura. Assim como o período inicial da revolução foi marcado por gigantes no palco político, da mesma forma produziu colossos culturais como Sergei Eisenstein, Alexandr Skriabin e Vladimir Tatlin.

As contribuições de Eisenstein ao cinema são internacionalmente aclamadas até hoje, particularmente sua inovação da “montagem dialética”, que aplica os princípios dialéticos ao processo de edição cinematográfica ao trazer imagens opostas que se chocam entre si para produzir impactos emocionais.

Ator representando Lenin no filme Outubro, de Sergei Eisenstein – Crédito: Fair Use/Wikipedia.org

Por exemplo, na obra-prima de Eisenstein Encouraçado Potemkin, mostram-se ao público imagens de marinheiros macilentos de Kronstadt entrecortadas por planos de rações apodrecidas e cheias de larvas, para demonstrar cuidadosamente as péssimas condições de vida dos marinheiros.

As experimentações radicais de Skriabin com a música atonal foram descritas por Leon Tolstoy como uma “expressão sincera de genialidade”, e o grande compositor modernista essencialmente reescreveu o léxico sonoro para toda uma geração de músicos.

Foto: Alexander Skrjabin. Crédito: Public Domain

Enquanto isto, Tatlin era uma figura importante do movimento Construtivista, cujo impressionante projeto para um Monumento à Terceira Internacional (que ele imaginou como uma redução das dimensões da Torre Eiffel) é considerado como uma maravilha da ambição arquitetônica, infelizmente nunca construído.

A exposição da RA é aparentemente inspirada por uma das maiores exposições russas antes que o ministro da cultura de Stalin, Andrei Zhdanov, apertasse os parafusos da expressão criativa, limitando toda arte ao estilo “aprovado” do “Realismo Socialista”.

O suave coquetel de Zhdanov da tradição Realista, misturado com alegres elogios ao regime estalinista talvez mereça a calúnia de Jones. O realismo soviético estava baseado no princípio da condescendência e que as massas russas não entenderiam obras demasiado “difíceis”, e, assim, evitavam a experimentação formal como “burguesa”.

O Realismo Soviético também exigia que toda arte cantasse elogios ao estado. Qualquer crítica perceptível do regime de Stalin era estritamente censurada e esperava-se dos artistas que retratassem os trabalhadores e camponeses russos caminhando otimistas na direção de um futuro brilhante e comunista: enquanto na realidade eles passavam fome devido à má administração estalinista da economia planificada.

Todos os três grandes artistas mencionados acima caíram em desgraça com o regime durante o período da contrarrevolução termidoriana. Sob Zhdanov, dezenas de criativos inovadores e experimentalistas, que se esforçavam por encontrar um novo e apropriado idioma artístico para o novo estado operário, de repente tiveram suas obras rotuladas como “burguesas” e “formalistas”. Muitos foram exilados, aprisionados, ou pior – um fato que Mr. Jones negligencia.

A exposição abrangerá um tesouro de obras-primas, desde as vibrantes composições abstratas de Kandinsky e Malevich a instalações cinematográficas exibindo o trabalho pioneiro de Eisenstein e Dziga Vertov. Para qualquer amante das artes, isto será imperdível.

Imagem: Composição 8, por Kandinsky – Crédito: Public Domain

Mas, apesar de redigir colunas para o principal jornal “esquerdista” da Grã-Bretanha, Mr. Jones está muito pouco interessado. Seu artigo está cheio com a indignação moral de que uma instituição venerável, como a RA, pudesse ter a temeridade de abrigar “projetos utópicos de uma era de luta e violência”.

Ele continua para dizer “que a forma como admiramos a arte russa da era de Lênin sentimentaliza um dos capítulos mais assassinos da história humana”.

Uma avaliação extremamente condenatória, tanto mais impressionante devido ao fato de que a exposição não abre sequer por mais de uma semana. Aparentemente, uma mente aberta não é uma virtude própria dos literatos culturais destes dias.

A hostilidade de Mr. Jones está baseada no chamado argumento da “ferradura”. Os fundamentos dessa falácia (apoiada por liberais imbecis de todos os lugares) é que ideologias “extremas” da direita e da esquerda são essencialmente indistinguíveis quando são promulgadas na cena política:

“A Academia Real está mostrando a arte russa desde a era de Lênin, mas não devemos esquecer que em seu regime totalitário a violência rivalizava com o nazismo… Se [eles] exibissem uma enorme exposição de arte da Alemanha de Hitler, seria certamente um clamor. No entanto, a arte da revolução russa está atolada nos massacres de massas do século XX”.

No clássico conceito de Jones da ferradura política, o regime de Hitler na Alemanha foi brutal e matou milhões, tanto quanto a União Soviética. Ergo, nazismo e socialismo (pelo menos o da variedade revolucionária) devem ser basicamente o mesmo. Celebrar a arte da Revolução Russa é, portanto, celebrar assassinatos em massa.

Ainda não contente com isto, Jones argumenta que a Revolução de Outubro e o governo Bolchevique na Rússia eram uma espécie de “caminho’ para o nazismo. Ele fala do “golpe” Bolchevique contra o governo provisório de Alexander Kerensky, e das táticas brutais e totalitárias empregadas por Lênin para consolidar o poder:

“Os Bolcheviques de Lênin utilizaram a tortura, a vigilância e as execuções para construir um estado de partido único. A sociedade rural foi destruída pelas campanhas Bolcheviques contra os ‘kulaks’, os chamados camponeses capitalistas – uma guerra contra um inimigo social irreal que antecipou o nazismo através da demonização de toda uma categoria de pessoas”.

Se Mr. Jones se preocupar em pagar uma visita à exposição quando ela abrir, esperemos que a loja de lembranças da RA tenha em estoque alguns livros sobre a história russa – ele certamente poderia se beneficiar disto.

Em fevereiro de 1917, o povo russo – empobrecido, faminto e cansado da guerra imperialista do czar – derrubou o regime czarista reacionário, eventos estes nos quais Lênin e os Bolcheviques desempenharam um papel menor.

Mas, ao terem deposto Nicolau II, um aliado próximo ao reino nativo de Mr. Jones, as massas logo perceberam que o poder tinha sido somente transferido para outra camarilha que estava ligada aos mesmos interesses do czar. O governo de Kerensky foi, dessa forma, desprezado pela população russa por manter o esforço de guerra que custou milhões de vidas e deixou mais alguns milhões na pobreza.

A alternativa apresentada por Lênin e os Bolcheviques era: “Não confiem nos políticos profissionais e nos governantes parasitas. Confiem somente em suas próprias forças, tomem o poder em suas próprias mãos”. Portanto, o regime que os Bolcheviques estabeleceram depois da Revolução de Outubro foi o mais democrático da história, sob o qual, pela primeira vez, as classes exploradas tiveram uma palavra direta sobre os seus destinos.

A prova disto veio depois que a Rússia foi atacada por 21 exércitos Brancos reacionários, muitos deles gozando do apoio da Grã-Bretanha, depois da revolução. O Partido Bolchevique, tendo recursos limitados e sem exército ou estrutura estatal apropriada em que confiar, conseguiu derrotar os Brancos apelando às massas russas – e às fileiras dos invasores.

Muitos desses soldados estrangeiros, como os oprimidos soldados indianos lutando em nome da Grã-Bretanha, estavam definitivamente se unindo aos Bolcheviques e virando suas armas contra seus próprios governantes, domésticos e coloniais.

Por sua vez, “os kulaks” formavam uma casta reacionária de camponeses ricos – “sugadores de sangue, vampiros, saqueadores do povo e especuladores, que engordam nos períodos de penúria”, como colocou Lênin. Esses traidores ameaçavam inteiramente a revolução e mantinham a população empobrecida e faminta como reféns, negando-se a ceder seus excedentes de grãos para alimentar as cidades e o Exército Vermelho durante a Guerra Civil, preferindo vendê-los com fins de lucro enquanto os trabalhadores passavam fome.

No entanto, mesmo quando houve expropriações forçadas dos kulaks sob os Bolcheviques, e que alguns deles fossem executados depois da revolta de 1918, não foram aterrorizados como grupo até 1929, bem depois da morte de Lênin e da ascensão de Stalin ao poder.

Mr. Jones dedica pouco tempo às afirmações trotskistas de que as atrocidades cometidas pela URSS eram distorções estalinistas: “Ver a revolução de Lênin através de óculos cor-de-rosa como uma Coisa Boa, um sonho ‘utópico’ que só deu errado porque o impiedoso Stalin estragou tudo, é acreditar em contos de fadas”.

E, no entanto, todos os crimes citados por Mr. Jones – coletivização forçada, a fome dos anos 1930, o número de vítimas da Guerra Civil – ocorreram ou sob as ordens de Stalin ou foram promulgados pelos Brancos pró-czaristas, apoiados pelos exércitos das nações imperialistas.

De fato, a Revolução de Outubro foi quase inteiramente incruenta. Segundo o anedotário corrente, mais pessoas morreram acidentalmente enquanto se filmava uma das cenas de Outubro de Eisenstein, a cena da tomada do Palácio de Inverno pelos trabalhadores, do que durante o verdadeiro assalto ao Palácio de Inverno. Visto que mencionou os contos de fadas, Mr. Jones, Pinóquio vem à mente.

Em uma diatribe particularmente absurda contra a “propaganda” Bolchevique”, Mr. Jones escolhe para escárnio o famoso pôster de 1919 de Lissitzky, Bata nos Brancos com o Porrete Vermelho. Nesta brilhante peça de arte abstrata, a heroica luta do Exército Vermelho contra a contrarrevolução czarista se reduz a algumas formas atrevidas e geométricas.

“De forma nauseante”, escreve Jones, “esquecemos dessa realidade quando celebramos o pôster de Lissitzky de forma política ou, ainda pior, quando o admiramos como chique radical sem colocar quaisquer questões sobre o que realmente representa. É um apelo à violência impiedosa – precisamos colocá-lo em seu verdadeiro contexto”.

Tudo bem, Mr. Jones, mas como é que é mesmo isto de contexto? Lissitzky também foi responsável por ingênuos cartazes de propaganda durante a II Guerra Mundial, animando o povo russo a construir tanques para se opor ao ataque do nazismo. Mas, naturalmente, comunismo e nazismo são a mesma coisa – por causa da ferradura.

Das duas, uma: ou Mr. Jones não têm a menor ideia do que realmente aconteceu na Rússia ou está revelando aqui suas verdadeiras cores. Embora, como crítico de arte, não mencione nada sobre os atos de barbárie realizados pelos exércitos Brancos pró-czaristas – que não gozavam de apoio algum entre o povo russo – dirige sua crítica contra a luta pela liberdade, organizadas nas mais difíceis condições, com virtualmente nenhum recurso, pelas heroicas massas russas.

Opor-se à luta contra os exércitos Brancos no terreno por ser “contra a violência” é se opor à luta contra a contrarrevolução fascista. É igual a opor-se à luta contra Franco pelas massas espanholas ou à resistência contra Hitler e Mussolini.

O mesmo crítico fica totalmente encantado em elogiar a arte produzida nos estados assassinos e fanaticamente religiosos durante a Inquisição Espanhola: “A verdade é que regimes e impérios brutais desde há muito contribuíram para um legado de realismo arrebatador na pintura e escultura religiosas”. Então, a arte da brutalidade é boa, desde que não seja feita por comunistas.

A arte de Lissitzky é um reflexo dessa luta de vida ou morte travada pelas massas russas. A crítica de Mr. Jones somente revela que a ideia de imparcialidade na arte é tão impotente quanto a ideia de imparcialidade na luta de classes.

De fato, apesar de sua oposição moralista à “propaganda”, o artigo de Mr. Jones é um exemplo clássico do tipo de propaganda anticomunista raivosa que não destoaria nas páginas do New York Post durante a Guerra Fria.

Além disso, o descaramento de “radical chique” por parte de Mr. Jones sublinha um disparo pouco sutil na juventude “idealista” que pode – pereça o pensamento – se inspirar no legado do Partido Bolchevique e em sua luta heroica de libertação da classe trabalhadora.

Talvez ele esconda um pouco de medo ao pensar que as brilhantes obras de arte que vão chegar à RA podem inspirar uma nova geração de radicais, para quem o capitalismo nada trouxe além de dívidas, desemprego e Donald Trump.

“O título dessa exposição que inicia o centenário de 1917 vai direto à jugular comercial – todos os jovens idealistas do país estarão clamando por um bilhete de entrada”. Nisso, Mr. Jones, estamos de acordo.


Artigo publicado originalmente em 6 de fevereiro de 2017, no site da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “In Defence of Soviet Art: A Reply to Jonathan Jones“.

Tradução Fabiano Leite.