Delcídio e as relações perigosas

Por trás da operação Lava Jato e da prisão ilegal de Delcídio do Amaral, existem grandes interesses da burguesia. A podridão do poder indigna todos. Mas não devemos permitir que com o pretexto do combate à corrupção, eleve-se o autoritarismo do estado burguês e que o judiciário cada vez mais deixe de lado o formalismo legal, para em seguida aumentar a repressão contra os trabalhadores e a juventude.

O jornal O Estado de São Paulo do dia 26 de novembro de 2015 publicou na página A8 uma declaração de Gilmar Mendes que deixa transparecer como funciona o “poder” na capital desta nossa República:

Os ministros do Supremo se incomodaram com a sugestão de Delcídio de que poderia influir politicamente dentro da Corte a favor de habeas corpus para o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró. Gilmar Mendes disse não ter recebido pedidos sobre Cerveró e afirmou que os ministros “tem contatos inevitáveis com parlamentares, uma marca da vida, da convivência em Brasília”.

Para mais de dois milhões de brasileiros que moram em Brasília, que trabalham na indústria, no comércio, nos bancos e no serviço público, esta não é uma “marca” de Brasília. Pelo contrário, para os que labutam no dia a dia e sofrem nos ônibus e trens cheios da capital, que demoram mais de uma hora para ir ao trabalho, que pagam uma das passagens mais altas do País, encontros com parlamentares são raros (a não ser que você seja faxineiro no Congresso ou no STF, mas aí os parlamentares e ministros raramente vão te notar). Esta “marca” da vida é na verdade a “marca” dos poderosos que representam a burguesia nacional e internacional que se interessa pelos destinos “do Brasil”.

Sim, os ministros citados por Delcídio ficaram muito incomodados e isto pesou e muito para sua prisão, conforme podemos ler em todos os jornais e principalmente nas declarações de Carmem Lúcia. Agora, uma pergunta deveria ser feita: porque Delcídio mostrou-se nas gravações tão certo de conversas e contatos com ministros do STF?

A verdade é que Delcídio, assim como outros parlamentares, participa e tem as “marcas da vida” que se leva nesta “Brasília” dos três poderes, do qual o povo tem tão poucas notícias reais, das festas, jantares, encontros, casamentos, que saem às vezes nas colunas sociais.

A gravação feita pelo filho de Cerveró e repetida nos jornais deixa poucas dúvidas sobre como funciona esta “vida”. Nos corredores de hotéis, nos bares e restaurantes, são discutidas contas na Suíça, alianças, candidaturas. E, agora o Senador Delcídio introduziu um novo negócio: fugas cinematográficas. Pelas transcrições, ao que parece, todos tinham visto muitos filmes de James Bond, com planos geniais dos criminosos, discutindo aviões, barcos a vela e viagens ao Paraguai e Venezuela. Faltou só uma apresentação em Power Point onde seria marcado quem conversaria com quem, qual político com qual ministro do STF e as fotos de hotéis e barcos, evidentemente de luxo, que conduziriam o fugitivo. Ah, é claro, faltou a disposição também de Cerveró e de seu filho de entrarem por este caminho. Mas sobrou ao filho de Cerveró a disposição de gravar a reunião para esclarecer tudo tintin por tintin. E não é que a coisa ficou feia, é que um pequeno pedaço dos tapetes de luxo que encobrem a lama e a sujeira dos “altos negócios” foi levantada e a cara de pau de um senador muito simpático, que transitou do PSDB ao PT, assim que este chegou ao poder, foi mostrada.

Sim, a se julgar pelas gravações, Delcídio se dispôs a fazer uma série de atos ilegais para livrar da prisão um possível criminoso que poderia incriminá-lo, sem contar que este (Cerveró) era seu amigo pessoal. Mas, e esta é outra pergunta, a partir da descoberta dos fatos, poderia e deveria o Supremo Tribunal determinar a prisão de Delcídio?

O Jornal Folha de São Paulo (25/11/15, pag. A12) mostrou que esta não foi uma situação inédita: a primeira vez em que um senador foi preso sem que antes o Senado aprovasse tal medida foi no governo ditatorial de Getúlio Vargas. O Senador Abel Chermont foi preso em 1936, sob a acusação de “estar a serviço de Luis Carlos Prestes” por ter montado um grupo contrário às medidas repressivas do governo contra a Aliança Libertadora Nacional.

Ouvindo os discursos feitos, o único Senador que apresentou uma proposta que preservaria a independência dos três poderes e a soberania do Senado, foi do Senador pelo Rio, Marcelo Crivela, que declarou que o Senado deveria mandar soltar Delcídio e depois submetê-lo ao Conselho de Ética do Senado. Mas Crivela não foi até o final em sua proposta e votou pela manutenção da prisão. Os outros Senadores, sob a desculpa de “não entrar no mérito” simplesmente ressaltaram a sua “amizade” com Delcídio, provavelmente uma das “marcas da vida” em Brasília, sua tolerância e cordialidade, mas que ele deveria ficar preso porque precisamos todos nos livrar deste incômodo o mais rápido possível.

O que eles fizeram, 80 anos depois da prisão de Abel Chermont, é preparar o terreno para novas prisões de parlamentares eleitos. Abrindo o caminho para que parlamentares de esquerda entrem na mira da crescente criminalização, que tem na nova “Lei antiterrorista” mais uma base jurídica para ser aprofundada.

Qualquer socialista, qualquer comunista, qualquer um que seja democrata está, e com razão, incomodado e com vontade de levar toda esta gente à prisão o mais rápido possível. Agora, fazer isso de uma forma que o autoritarismo do estado burguês seja aumentado e que o judiciário cada vez mais deixe de lado o formalismo legal, só vai aumentar a repressão contra os trabalhadores e a juventude. O formalismo legal está sendo preparado e a prisão de um simples sem teto que portava uma garrafa de Pinho Sol no Rio, durante as manifestações de 2013, condenado a 5 anos de regime fechado, mostra a que serve estas “indignações” do Supremo e a fala de que serão todos esmagados pelo império da Lei.

Aliás, esta “lei” é sempre decidida de forma política, como está claro na entrevista feita com o ministro Dias Toffoli no Jornal o Globo de 29/11/15 (http://oglobo.globo.com/brasil/e-grave-voce-se-intrometer-atrapalhar-uma-investigacao-diz-toffoli-18173338) :

Qual ponto impressionou mais os ministros do STF?

Impactou o fato de que o (banqueiro) André Esteves tinha um rascunho com as anotações pessoais de Cerveró sobre o que ele falaria na delação premiada. Ou seja, ele teve acesso à cela onde está o Cerveró. Isso é uma intimidação para a Justiça. Como ressaltou o procurador-geral da República, esse tipo de vazamento tem que ser apurado.

Sim, durante todo o período que durou a operação “lava jato” os vazamentos, sempre seletivos, foram constantes. E nunca a Justiça se impressionou com estes vazamentos e com os seus resultados, inclusive trechos bem escolhidos que eram e são dirigidos contra o PT e as empreiteiras nacionais (nenhum vazamento, nenhuma pergunta, nenhum questionamento sobre empreiteiras ou firmas internacionais com as quais a Petrobras tem contratos; nenhum vazamento, nenhum questionamento sobre os políticos do PSDB; aliás, o episódio do banqueiro preso junto com Delcídio, que pagou a Lua de Mel de Aécio nos EUA, desaparece como por encanto dos jornais). Mas o motivo maior da indignação dos Ministros é também revelado de outra forma nesta mesma entrevista, com a devida vênia e desculpas ao nosso douto Ministro:

Na sessão da Segunda Turma, que referendou as prisões, ficou clara a indignação dos ministros diante das declarações de Delcídio de que teria acesso aos ministros do STF e poderia garantir um habeas corpus a Cerveró. Qual a sua avaliação?

Todos nós estamos sujeitos a isso. Eu, por exemplo, recebo advogados, recebo partes, recebo parlamentares. Faz parte da convivência. É bom lembrar também que o juiz do interior convive com réus em uma cidade pequena. Ele pode ir a uma cerimônia religiosa, e o padre ou o pastor ter algum problema com a Justiça. Ou ele vai à padaria, e o padeiro está sendo despejado e tem uma ação com ele. O importante é saber que o juiz é formado e talhado para ouvir pedidos. Tanto quem entra com uma ação, quanto quem responde a uma ação pede algo ao juiz. E o juiz decide de acordo com o ordenamento jurídico.

Mas há diferença entre fazer um pedido e contar vantagem por ter influência sobre os ministros…

Esse é o ônus do cargo, infelizmente. É triste ver isso. É isso que choca. O ministro Teori, o ministro Gilmar e eu não conversamos com a pessoa sobre esse tema. Nunca o senador Delcídio abordou eventual habeas corpus comigo. Mas nas gravações ele falava: “olha, possivelmente vamos conseguir”.

Sim, todos ficamos sabendo na entrevista que a burguesia, inclusive a pequena burguesia e seus agentes religiosos nas pequenas cidades tem acesso aos juízes. E, é claro, nunca é citado o varredor de rua, o trabalhador rural, o ajudante de pedreiro, etc. A estes, como sempre cabe o “rigor da lei”. Também ficamos sabendo na entrevista, que Delcídio conversou com pelo menos três ministros e nunca, nunca, foi tratado das operações, investigações ou processos envolvendo os nomes do próprio e de seus amigos mais chegados. Delcídio, na gravação que não foi contestada, conta uma história diferente. Ora, se Delcídio mentia sobre isso, então não tinha motivo algum para ser preso. Mas é claro que nem Delcídio, nem ninguém vai seguir por este caminho.

O caminho a ser seguido é de um servilismo cada vez maior do PT, que se dobra cada vez mais aos desejos da burguesia e do verdadeiro terremoto que a burguesia provoca ao tentar forçar de qualquer maneira o ajuste fiscal, destruindo direitos e aumentando o autoritarismo, forçando a barra para termos um estado “mais forte” em termos repressivos.

Por isso a polícia de Alckmin reprime os estudantes que ocupam escolas, apesar da ordem judicial contra a desocupação (mostrando que não é exatamente o “poder judiciário” que está sendo fortalecido, é a repressão no geral).

As decisões do STF passam por cima da lei (existem diversos artigos em fóruns jurídicos questionando a decisão de prender Delcídio, desde o problema do “flagrante” até a questão de “crime inafiançável”). Mas o congresso, ora o congresso, este se dobra de maneira vil, com o presidente da Câmara e do Senado ameaçados de processo.

Marx, num livro genial, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, explica como um congresso pode, em nome da legalidade, perder rapidamente o poder que ele deveria deter:

Obtivera-se do tribunal um julgamento por dívidas contra Mauguin, um dos representantes do povo. Em resposta à solicitação do presidente do Tribunal, o ministro da Justiça, Rouher, declarou que deveria ser emitido o capias (mandado de prisão) contra o devedor, sem mais delongas. Mauguin foi, assim, atirado à prisão de devedores. A Assembléia Nacional inflamou-se ao tomar conhecimento do atentado. Não só ordenou que o preso fosse imediatamente posto em liberdade, como enviou seu greffier para que o retirasse à força de Clichy naquela mesma noite. Entretanto, a fim de confirmar sua fé na santidade da propriedade privada e com a intenção oculta de abrir, em caso de necessidade, um abrigo para os montagnards que se tornassem difíceis, declarou permissível a prisão por dívidas de representantes do povo desde que fosse previamente obtido o seu consentimento. Esqueceu-se de decretar que também o presidente poderia ser encarcerado por dívidas. Destruiu a última aparência da imunidade que envolvia os membros de seu próprio organismo.

É neste livro que Marx escreve uma frase que sempre é lembrada:

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

Durante a ditadura militar instaurada após o golpe de 1964 vários parlamentares foram processados e presos, alguns deles como Rubens Paiva foram mortos ou “desaparecidos”. Foi a tragédia.

Agora, no episódio de Delcídio, depois da prisão do senador por Getúlio e das condenações, cassações e prisões durante a ditadura militar, a prisão de Delcídio foi a farsa da qual falava Marx. E, sobre ela, pesam as palavras escritas há mais de 150 anos, que parece tão bem descrever a situação atual em que vivem a Presidência da República e este Congresso Nacional:

Uma vez abandonados os aspectos principais do problema em causa, o Poder Executivo espera calmamente a oportunidade de levantá-lo outra vez por motivos mesquinhos e insignificantes, quando não apresente, por assim dizer, senão um interesse parlamentar estreito e puramente local. Só aí estoura o ódio contido do partido da ordem, só aí ele arranca a cortina dos bastidores, acusa o presidente, declara a república em perigo; mas, então, também o seu furor parece absurdo e o motivo da luta parece um pretexto hipócrita, inteiramente desprovido de sentido. A tempestade parlamentar transforma-se em uma tempestade em copo de água, a luta em intriga, o conflito em escândalo. Enquanto as classes revolucionárias se deleitam em um prazer malévolo em face da humilhação da Assembléia Nacional, pois se entusiasmam pelas prerrogativas parlamentares dessa Assembléia tanto quanto esta se entusiasma pelas liberdades públicas, a burguesia de fora do Parlamento não compreende como a burguesia de dentro do Parlamento pode perder tanto tempo com disputas tão mesquinhas e comprometer a tranqüilidade pública com rivalidades tão tolas com o presidente. 

Sim, os trabalhadores estão irritados com este governo, com este congresso e provavelmente estariam mais irritados ainda com esta “justiça” se tivessem a oportunidade de conhecer um pouco mais os meandros e caminhos por onde andam estas decisões.

A operação lava-jato e agora uma nova onda de investigação sobre o “minha casa, minha vida” vão mostrar o que todos sabiam: que toda obra grande é antes acertada com as grandes empreiteiras. E o TCU e o STF, que nunca questionaram o fato de na venda do maior campo do pré-sal só ter um consórcio habilitado (isso sim é exemplo prático de acerto anterior) debruça-se sobre pequenas obras que continuam a dar lucros aos capitalistas a custa do erário público e se esquecem que o patrimônio nacional e todo o lucro deste foi vendido a preço de banana, como o escandaloso caso da Vale do Rio Doce.

Eles desmontam todas as empreiteiras nacionais e abrem caminho para novas licitações tipo a do Pré-Sal. Um exemplo disso é que as empresas de auditoria que a Petrobras contratou foram todas multinacionais. Nenhuma empresa brasileira foi mencionada. Isso tem motivo? Nem a velhinha de Taubaté acreditaria que nisto não existe dedo do capital internacional.

Qual a resposta para isso? A resposta da CUT é que precisamos acabar logo com isso e o país voltar a trabalhar, as empresas contratarem e os trabalhadores receberem seus salários. Pobres sindicalistas, que não veem que este processo tem um nome, é a crise do capitalismo que estourou em 2008 e o fato da burguesia jogar para cima dos trabalhadores a conta da crise.

É preciso acabar com tudo isso? Sim, mas a única solução é dar a palavra ao povo, é lutar para estatizar todas as grandes empresas, todos os grandes bancos, todas as grandes empreiteiras, todas as multinacionais, sob controle operário, abrindo caminho para o socialismo. Politicamente, isso significa que a podridão das instituições, que se revela em cada fato e cada entrevista, seja de políticos, seja de juízes, a única saída é dar poder ao povo, através de uma Assembleia Popular Constituinte que varra tudo e todos e abra caminho para um novo porvir.