Breve história do infinito, uma interpretação Marxista – Parte 2

As ideias materialistas de Lucrécio foram recuperadas no início do século XV pelo cardeal alemão, Nicolau de Cusa. Ele sustentou que o universo é infinito e, portanto, não tem centro, que a terra não ocupa o centro do cosmo e que é semelhante a outros planetas; desenvolveu uma filosofia panteísta – a ideia de que Deus e a natureza são o mesmo – precursora do materialismo moderno: “Deus está em todas as coisas, da mesma forma que todas elas estão nele.

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O martírio de Giordano Bruno e os infinitos mundos

As ideias materialistas de Lucrécio foram recuperadas no início do século XV pelo cardeal alemão, Nicolau de Cusa. Ele sustentou que o universo é infinito e, portanto, não tem centro, que a terra não ocupa o centro do cosmo e que é semelhante a outros planetas; desenvolveu uma filosofia panteísta – a ideia de que Deus e a natureza são o mesmo – precursora do materialismo moderno: “Deus está em todas as coisas, da mesma forma que todas elas estão nele” [1]. O bastão herdado por Lucrécio, Cusa e Copérnico foi retomado pelo frade dominicano Giordano Bruno no século XVI, mais de mil anos depois de Lucrécio. A irredutível convicção sobre a infinidade do universo e a infinidade de mundos – alguns deles habitados por animais e seres inteligentes – que adornavam o cosmo, custará a Giordano Bruno o desterro, oito anos de cárcere e, finalmente, morrer na fogueira da Inquisição por sua negativa a abjurar de suas ideias. Manteve-se firme até o heroísmo… depois de anos de martírio desafiou seus juízes dizendo “Tremei mais vós ao anunciar esta sentença que eu de escutá-la” [2] e se negou a beijar o crucifixo que os monges católicos lhe ofereceram. Em 17 de fevereiro de 1600 foi queimado vivo na Praça de Flores, em Roma. Sua morte e suas ideias nos abriram as portas de um universo infinito, portas que, durante mais de mil anos, haviam sido fechadas à humanidade pelo dogmatismo medieval. Mais outro dos crimes inenarráveis da Igreja Católica.

As primeiras rachaduras no mundo finito: Copérnico, Kepler, Galileu e Newton

“Se cheguei a ver mais longe que outros, é porque subi aos ombros de gigantes” (Newton)   

De acordo com a concepção de Ptolomeu, o universo tinha como centro a uma redonda mas corrupta terra – alguns clérigos sustentavam que a terra era plana; os planetas, o Sol e as estrelas giravam em torno da terra unidos a esferas perfeitas. “[Os planetas] não estavam sujeitos diretamente às esferas, mas indiretamente através de uma espécie de roda excêntrica. A esfera gira, a pequena roda entra em rotação, e Marte, visto da terra, vai ondulando sua onda” [3]. Este modelo permitia “explicar” o movimento estelar e o aparentemente caprichoso movimento excêntrico dos planetas. Mas os ventos frescos e revolucionários do Renascimento Europeu – impulsionados pela acumulação originária do capital, pelo desenvolvimento de novas e mais progressistas relações sociais – permitiram o acesso a fontes clássicas gregas, a velhas teses como a de Aristarco de Samos quem, pela primeira vez, sustentou que a terra girava em torno do Sol; Erastóstenes quem mil e duzentos anos antes do Renascimento – somente comparando o ângulo das sombras projetadas no solstício de verão por um poste em Alexandria e em um poço em Siena –, havia logrado a façanha de medir a circunferência terrestre; Apolônio de Pérgamo que antes de Kepler havia afirmado que os planetas giravam em torno do Sol seguindo a elipse. Para alguns filósofos gregos a terra era um planeta a mais em nosso sistema e não o centro do universo.

Em 1543, um clérigo polonês chamado Nicolau Copérnico recuperou a tese heliocêntrica dos antigos gregos – embora se saiba que consultou os antigos, não os cita em sua De Revolutionibus Orbium Coelestium. Se bem o modelo heliocêntrico permitisse explicar melhor o movimento dos seis planetas conhecidos, atentava contra os dogmas que haviam reinado por mais de mil anos. O texto de Copérnico foi incluído, pela Igreja Católica, nas listas dos livros proibidos, lugar que ocupou até 1835. Inclusive Martinho Lutero condenou de forma insultuosa a tese de Copérnico: “astrólogo adventício… Este estúpido quer transtornar a ciência astronômica. Mas a Sagrada Escritura nos diz que Josué ordenou que parasse o Sol, e não a terra” [4]. O debate sobre o lugar da terra no cosmo não era para a ordem estabelecida uma discussão científica, mas um tema político e ideológico em que não se podia ceder um palmo.

Kepler, um humilde professor provinciano, estudioso das matemáticas, se converteu – depois da morte do matemático Tycho Brahe, de quem havia sido ajudante – em matemático imperial de Rodolfo II em Praga. Com base nas observações legadas por Brahe dos planetas, Kepler tratou de explicar o movimento aparentemente inexplicável de Marte, incorporando a tese herética de Copérnico. No início, Kepler tentou teimosamente explicar o movimento de Marte mediante órbitas circulares já que “a mente estremece só de pensar em outra coisa […] seria indigno imaginar algo assim em uma criação organizada da melhor forma possível” [5]. Depois de meses de desespero e de haver tentado com órbitas ovaladas e com ângulos diferentes, descobriu que a elipse encaixava à perfeição com as observações de seu mestre. Kepler afirmou: “A verdade da natureza, que eu havia rejeitado e expulsado de casa, voltou sigilosamente pela porta traseira, e se apresentou disfarçada para que eu a aceitasse… ah, que pássaro mais néscio fui!” [6]. A descoberta de Kepler é ainda mais meritória quando se considera que tentou ser pastor protestante, era crente da astrologia e, inicialmente, fervoroso seguidor do sistema ptolomaico; mas pôde, apesar disso, remontar-se sobre seus próprios preconceitos e revelar a verdade, embora isso significasse – segundo suas próprias palavras – “um balde de esterco!”; um que abriria de par em par um universo fechado, mostrando que a terra não era mais que outro planeta girando em órbitas “imperfeitas” em torno do Sol.

Um mundo infinito se abria assim ante as futuras gerações. Galileu, inventor do telescópio, grande cientista e matemático, escudrinhou um universo assombroso com olhos novos pela primeira vez em séculos. O impacto de descobrir que a Lua e o Sol têm imperfeições – crateras, montanhas lunares; manchas solares, as luas de Júpiter etc. – foi tal que Galileu convidou um clérigo a que mirasse com seus próprios olhos, este disse que as manchas estavam em seus olhos, mas não no Sol. Encontrar novos objetos celestes em um mundo fechado removeu preconceitos antiquíssimos, algum dos detratores escreveu: “Os astrólogos fizeram seus horóscopos tendo em conta tudo aquilo que se move nos céus. Portanto, os astros mediceus [assim denominados em homenagem a Cósimo de Médici, grão-duque da Toscana – NDT] não servem para nada e Deus não cria coisas inúteis, estes astros não podem existir”; em 1616, o Santo Ofício declara a teoria de Galileu como “uma insensatez, um absurdo em filosofia e formalmente herética”. Não foi suficiente que os cegos olhos dos clérigos observassem o inegável, ainda assim Galileu foi obrigado – em dois processos, o primeiro firmado pelo Papa Paulo V, e o segundo pelo Papa Urbano VIII, impulsionados pelo mesmo cardeal que enviou Giordano Bruno à fogueira – a se retratar da tese de que a terra girava em torno do Sol ou a sofrer torturas e prisão perpétua. Ele se retratou, mas dizem que desafiadoramente afirmou à Inquisição no final do processo: “Eppur si muove” (no entanto, se move). O homem que havia se atrevido a mirar – em um mundo regido por cegos – as montanhas lunares e um Sol que gira sobre seu eixo ligeiramente inclinado, viveu seus últimos dias de velhice sob prisão domiciliar e completamente cego; pelo menos pôde se vingar da Inquisição publicando algumas de suas obras, passadas de contrabando, na França e em Estrasburgo. Embora cego, viu mais longe que qualquer outra pessoa em seu tempo. Inclusive Descartes renunciou a publicar suas ideias atomistas por medo de sofrer o destino de Galileu.

Kepler – apoiando-se em Galileu – formulou três leis que governavam a translação dos planetas em torno do Sol. Newton, elevando-se sobre os ombros de seus antecessores, vinculou essas leis a outras mais gerais que serão conhecidas como as três leis da gravitação universal e que colocariam as bases da ciência e da mecânica durante os seguintes duzentos e cinquenta anos. Graças ao conhecimento destas leis o homem pôde colocar seus pés na Lua, cujas crateras Galileu observou com seu telescópio pela primeira vez séculos atrás. Foi demonstrado que as mesmas leis que governam a queda de uma maçã no solo, governam o movimento dos infinitos corpos celestes do universo. O universo fechado do medievo se rompeu em pedaços para sempre, os céus já não eram mais o reino inacessível de Deus.

Contudo, todo avanço – dizia Engels – é ao mesmo tempo um recuo: embora novamente a terra fosse integrada a um universo que se apresentava infinito, a concepção mecânica verá no universo um simples mecanismo de relojoaria: rígido, repetitivo, sem vida e cujo movimento se tendia a explicar pela mão de um Deus que lhe deu corda.

O cálculo infinitesimal, o infinitamente pequeno contido no finito

Descartes, Leibniz e Newton – apesar do pensamento mecânico dominante – se encontraram com o infinito novamente e, ao mesmo tempo, com a dialética. O cálculo do movimento seguindo elipses que Kepler descobriu colocou estritamente a medição das curvas e suas tangentes. Descartes estudou o problema do cálculo de tangentes. O desenvolvimento de máquinas e a necessidade da medição mais exata do movimento mecânico impuseram a busca de novos sistemas matemáticos. A medição no tempo e no espaço mecânicos levou ao plano cartesiano idealizado por Descartes; a necessidade de medir a velocidade instantânea de um corpo, especialmente de um corpo seguindo uma trajetória curvilínea, levou à necessidade de desenvolver o cálculo diferencial e integral, problema proposto incialmente por Descartes.

Este novo tipo de cálculo opera com mudanças infinitamente pequenas representadas no plano cartesiano por funções que Newton chamou de “fluxões”, mas cuja argumentação era obscura. Leibniz criou – ao mesmo tempo que Newton – um método mais claro para medir a distância entre curvas e suas tangentes manejando quantidades mais pequenas que qualquer número, mas maiores que zero e, ao mesmo tempo, considerando essas pequenas magnitudes iguais a zero com relação à integral. Como isto era possível? Como pode haver quantidades menores que qualquer número, mas diferentes de zero? Como se pode considerar uma quantidade maior que zero como nula ou zero com respeito a sua integral?

Embora não seja exatamente como foi explicado por seus fundadores, a diferenciação e integração consistem em calcular, mediante funções, magnitudes infinitesimais, necessárias para medir a área infinitamente pequena por baixo de uma curva ou para medir qualquer mudança mínima com a maior precisão possível – tanto o cálculo de áreas como o de velocidades podem ser representados como o cálculo de áreas sob o gráfico de uma função, que é como se expressa graficamente o cálculo diferencial e integral. A integração consiste em somar esses infinitos mínimos para “integrá-los” dentro de uma magnitude infinitamente mais grande em relação a esses números infinitesimais considerados iguais a zero em relação ao seu limite. O cálculo diferencial e integral vai do infinito pequeno a um infinito maior e vice-versa; quando a função se integra já não nos encontramos com a função inicial, mas com uma qualitativamente nova que incorpora as mudanças infinitesimais – que paradoxalmente eram consideradas como zero. Implica o limite de uma função como a parte finita de uma relação, e a diferencial como a magnitude infinitamente pequena contida nessa magnitude finita. Assim, o cálculo infinitesimal leva implícita – desde o ponto de vista filosófico – a relação dialética – colocada no plano matemático – do finito e do infinito. Uma relação de opostos.

Atualmente, o conceito geométrico da derivada de uma função se define como a pendente da reta tangente ao gráfico da função em um ponto x, por outro lado a integral de uma função é o limite da soma infinita de áreas infinitamente pequenas. Se temos uma função de posição, fisicamente a derivada nos representa a velocidade de mudança na posição, se temos uma função que representa a velocidade e integramos obtemos a função de posição; ambas as operações são “opostas” mas complementares. Embora a definição possa parecer obscura e abstrata para aqueles que não estão relacionados com o cálculo, o que nos interessa aqui é explicitar as noções de finito e infinito implícitas ao cálculo diferencial e integral. A noção de infinitesimal – de números infinitamente pequenos – desconcertou os filósofos e matemáticos daqueles tempos e ainda hoje desafia o senso comum. Falamos de quantidades mais pequenas que qualquer número, mas maiores que zero; quantidades que tendem a um limite, mas nunca chegam a ele por ser infinitamente pequenas. Foi colocada a necessidade de se expressar de forma matemática rigorosa paradoxos que Zenon havia encontrado quase dois mil anos antes.

Como sempre acontece, as mentes dogmáticas desses tempos não puderam aceitar semelhante sacrilégio. O bispo Berkeley condenou azedamente o novo sistema matemático – escreveu que os infinitesimais não eram mais que absurdos, “fantasmas de quantidades que desaparecem” [7] – sua rotunda rejeição atrasou a ampla aceitação do novo cálculo necessário para a revolução industrial em desenvolvimento. Marx, em contraste, não somente se interessou pelo estudo do cálculo diferencial e integral, como também escreveu interessantes cadernos matemáticos onde concebia o cálculo infinitesimal como a medição de processos – não de simples soma de magnitudes invariáveis – e de saltos dialéticos onde uma quantidade finita é representada como somas infinitas, onde o limite de primeira ordem pode se apresentar como um diferencial infinitamente pequeno de um novo limite maior; isto é, um processo dialético que salta para novas magnitudes compostas de novos infinitos. Cada vez que se integra a função nos encontramos em um caso de “negação da negação”; isto é, com a mesma função inicial – anterior à diferenciação – que incorpora as pequenas mudanças e que, portanto, já não é a mesma, visto que se integra [8]. Marx, em seus cadernos matemáticos, já mencionava o conceito de limite que nem Newton nem Leibniz, mais de cem anos antes dele, compreenderam filosoficamente – conceito de limite que se desenvolvia quase ao mesmo tempo em que Marx escrevia tais cadernos, que não serão publicados até 1968. Marx – e seu companheiro de armas Engels – sempre teve uma atitude crítica e independente dos grandes descobrimentos científico de seu tempo, incluídas as matemáticas: “[…] começando com o método místico de Newton e Leibniz; passando logo ao método racionalista de D’Alembert e Euler; para terminar finalmente com o método estritamente algébrico (mas partindo sempre da mesma concepção fundamental própria de Newton e Leibniz) de Lagrange […]” [9].

Embora as contradições implícitas no cálculo diferencial e integral trataram de ser ocultas e ignoradas por formulações posteriores, como as do francês Louis de Cauchy, novas proposições, como as de Abraham Robinson – apresentadas em meados do século XX – trouxeram de novo à luz estas contradições, de acordo com sua abordagem: “cada número real, identificado com um ponto sobre uma reta, possui em torno dele uma espécie de nuvem eletrônica de infinitesimais mais pequenos que qualquer número” [10]. Estes números são chamados “números reais não padrão”, com suas leis e propriedades específicas.

Por acaso o cálculo diferencial e integral, e os infinitos que inclui, são apenas uma espécie de regras arbitrárias úteis para realizar operações, mas que não têm nada a ver com a realidade, uma espécie de regras em um jogo de mesa matemático? Se o cálculo diferencial e integral se aplica à realidade eficientemente é somente porque expressa algo dessa realidade. Engels explica que a diferenciação e a integração são processos que ocorrem na natureza, os quais foram abstraídos pelo cálculo e aplicados novamente à realidade, razão pela qual o cálculo se verifica nela. Engels escreve: “[…] de todos os processos teóricos não há seguramente nenhum que seja um triunfo tão elevado do espírito humano como o descobrimento do cálculo infinitesimal, na segunda metade do século XVII. Se existe uma proeza pura e exclusiva da inteligência humana, ei-la aqui. O mistério que ainda hoje rodeia as magnitudes empregadas no cálculo infinitesimal – as diferenciais e os infinitos de diversos graus – é a melhor prova de que ainda aqui temos que manejar com puras criações e imaginações livres do espírito humano, sem equivalente algum no mundo objetivo. E, no entanto, o inverso é que é verdade. A natureza nos oferece os protótipos de todas estas magnitudes imaginárias. Nossa geometria toma como ponto de partida as relações espaciais; nossa aritmética e álgebra, as magnitudes numéricas, que correspondem a nossas condições terrenas e, assim, às magnitudes dos corpos que a mecânica chama massas; massas, tal como se apresentam na terra e tal como são movidas pelos homens. Comparativamente a estas massas, a massa da terra parece ser infinitamente grande e, precisamente, é tratada como infinitamente grande pela mecânica terrestre. O raio terrestre = ∞ (infinito), este é o princípio fundamental de toda a mecânica na lei da gravidade. Mas não só a terra, como o sistema solar inteiro e as distâncias dadas nele, aparecem por sua vez como infinitamente pequenas assim que nos ocupamos das distâncias, estimáveis em anos-luz, que tenhamos visíveis para nós os sistemas estelares através do telescópio. De forma que já temos aqui um infinito não apenas de primeiro grau, mas de segundo, e deixamos à fantasia de nossos leitores a tarefa de construir no espaço sem fim sucessivos infinitos de grau superior, se se sentem inclinados a isso…” [11]. Embora o cálculo diferencial tenha integrado o infinito às matemáticas, este trabalha com funções regulares e contínuas, razão por que não são adequadas para descrever padrões onde não é possível traçar uma tangente à curva. Mais adiante falaremos das estruturas fractais que, além de ser não diferenciáveis, incorporam novamente a noção de infinito.

O hotel de Hilbert e os infinitos diversos de Cantor

A convicção dialética que sustentaram Engels e Marx no “Anti-Dühring”, de que o universo está repleto de infinitos de diversos graus, foi demonstrada matematicamente pelo matemático alemão Georg Cantor em 1870. Antes dele, Euclides já havia assinalado que há infinitos números primos, Galileu havia estabelecido um curioso paradoxo relativo ao infinito: existem tantos números pares como números naturais, visto que ambos são infinitos – é possível emparelhar ou relacionar entre si, um a um, cada um dos elementos que compõem ambos os conjuntos –, violando o princípio lógico formal que afirma que o todo é igual à soma de suas partes e que a parte é sempre menor que o todo.

Dizem os matemáticos que três maçãs e três pessoas têm a mesma cardinalidade porque é possível equiparar cada membro do conjunto das três maçãs com cada membro do conjunto das três pessoas. Em 1850, o teólogo alemão Bernhard Bolzano demonstrou que dois intervalos, independentemente de suas longitudes, sempre têm a mesma cardinalidade. Efetivamente, é possível encontrar para cada número de uma reta infinita outro ponto equivalente de uma reta finita, de tal forma que uma reta finita tem literalmente infinitos pontos, tantos quanto uma reta sem fim. O leitor pode fazer o experimento gráfico se o desejar: simplesmente – como se mostra na imagem – se traça uma linha tão longa quanto se queira (suponhamo-la infinita) de tal forma que seja tangente de um círculo finito. Com este esquema se pode traçar uma linha que parta da linha infinita e que, chegando ao ponto superior ao círculo, una outro ponto equivalente do perímetro do círculo; demonstrando com isso que no perímetro finito do círculo há tantos pontos como na reta infinita. Ambas têm a mesma cardinalidade, isto é, é possível emparelhar, um ao outro, tantos pontos distintos de um conjunto, com outros tantos pontos equivalentes de outro conjunto. Se não é possível fazer isto para dois conjuntos quaisquer, diz-se que ambos têm cardinalidade diferente, já seja maior ou menor segundo o caso.

        

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O paradoxo disto é que embora seja claro que uma reta infinita tem maior longitude que uma reta finita, ambas têm a mesma cardinalidade, a mesma quantidade de pontos. A matemática voltou a se encontrar com o paradoxo da dicotomia dos velhos Eleatas. Na realidade, a partir do ponto de vista dialético, não deveria surpreender-nos que em uma magnitude finita haja infinitos ocultos: se assumimos que uma magnitude é somente uma parte integrante do infinito, então qualquer segmento deve também ser infinito ou, do contrário, o infinito encontraria seu fim ou seu princípio. A conclusão é que o infinito está implícito no finito e, por sua vez – como reconheceu Engels –, o infinito está composto de inumeráveis magnitudes finitas: “A infinidade é uma contradição e está cheia de contradições. Já é uma contradição que uma infinidade tenha que estar composta de honradas finitudes, e, no entanto, este é o caso. A limitação do mundo material leva a não menos contradições que sua falta de limites, e toda tentativa de eliminar essas contradições leva a novas e piores contradições; precisamente porque a infinidade é uma contradição, é infinita, um processo que se desenvolve sem fim no espaço e no tempo. A superação da contradição seria o final da infinidade” [12].

Um exemplo clássico para demonstrar a cardinalidade de diferentes magnitudes em sua relação ao infinito – para demonstrar que existem infinitos maiores e menores – é o experimento mental idealizado pelo famoso matemático alemão do final do século XIX, David Hilbert. O experimento é conhecido como “O Hotel de Hilbert”. Com este, Hilbert exemplificou as propriedades paradoxais do infinito que Cantor havia estudado. Embora se trate de um exercício mental – exercício este do qual muitas vezes se abusa na ficção científica para sustentar todo tipo de hipóteses arbitrárias – é útil ao exemplificar, de forma mais acessível e intuitiva, os paradoxos e a dialética do infinito.

Supõe-se que na recepção de um hotel de infinitas habitações, que está em sua capacidade máxima, chega um indivíduo buscando hospedagem. O senso comum nos diz que é impossível encontrar habitação em um hotel absolutamente cheio, mas o infinito tem propriedades que violam a lógica formal: o recepcionista convida os hóspedes do hotel a somar a unidade ao número de sua habitação e que se mudem à habitação marcada com o número resultante: o hóspede da habitação 1 passará à 2, o da 2 à 3 e assim até o infinito. Como o infinito não tem fim, esta operação é possível e o novo hóspede encontra habitação. Quando um grupo de infinitos hóspedes se apresenta à recepção buscando hospedagem, um novo desafio se apresenta ao recepcionista do hotel de infinitas habitações. O recepcionista não vacila e convida os hóspedes que ocupam as infinitas habitações a que multipliquem por dois o número de sua habitação e que se mudem às novas habitações marcadas com o número resultante. É claro que todos os hóspedes se mudarão às habitações com números pares; dado que a quantidade de números pares é infinita, é possível fazer essa operação e os novos hóspedes ocuparão as habitações ímpares vazias sem problema algum dado que os números ímpares são também infinitos. Outro desafio ainda maior – um desafio infinito! – se apresentou ao recepcionista quando chegou à recepção um número infinito de camiões, cada um com um número infinito de pessoas buscando habitação. O recepcionista não ficou minimamente tenso. O que fez foi se comunicar com os hóspedes hospedados nas habitações com número primo (diferente de 1) e as habitações cujo número de habitação fosse resultado de uma potência de um número primo, pedindo-lhes que fizessem a operação consistente em elevar o número 2 à potência do número de sua habitação e que se mudassem à habitação numerada com o resultado dessa potência. Então, o recepcionista destinou a cada um dos infinitos camiões, cada um dos números primos (diferentes de 1); em seguida, destinou a cada uma das infinitas pessoas de cada um dos infinitos camiões um número ímpar diferente e lhes pediu para elevar esse número ímpar à potência do número primo que correspondeu a seu camião. Dado que existem infinitos números ímpares e infinitos números primos, é possível incluir infinitos grupos de infinitos membros dentro de um hotel infinito. O Hotel de Hilbert é um experimento que deixa claro que existem diversos graus de infinitos – maiores e menores, transfinitos de outros finitos menores – que, não obstante serem maiores ou menores, têm a mesma cardinalidade. O qual é uma contradição dialética tão certa quanto o é a reta dos números naturais.

Cantor, que inspirou “o Hotel de Hilbert”, e sistematizou as propriedades do infinito por meio da chamada “Teoria de conjuntos”, não só confirmou que diversos infinitos – apesar de ser maiores ou menores – têm a mesma cardinalidade (mostrou que os números inteiros têm a mesma cardinalidade que os naturais e que os racionais) – o que já é assombroso por si mesmo – como também demonstrou que há infinitos que não têm a mesma cardinalidade, que existem infinitos tipos de infinitos; de passagem, mostrou que as propriedades do infinito não se ajustam à lógica formal aristotélica. O fractal que leva seu nome – “A poeira de Cantor” (ao qual voltaremos mais adiante) – demonstra, por exemplo, não somente que as propriedades do infinito não satisfazem o axioma euclidiano e aristotélico de que o todo é maior que suas partes, como também que há casos concretos onde a parte é maior que o todo. Os fractais são estruturas geométricas que se repetem a si mesmas dentro de sua própria estrutura. No fractal descoberto por Cantor, o todo tende a zero enquanto que as partes são infinitas. É um fractal composto por uma linha tão infinitamente fragmentada que sua longitude tende a zero mas os pontos que a compõem são infinitos, isto é, que a parte é maior que o todo.

Cantor demonstrou – como assinalamos – que há infinitos com distinta cardinalidade. A forma como o fez é simples mas genial, é conhecida como raciocínio diagonal. Considerou o conjunto dos números reais – os números que têm uma expansão decimal racional e irracional – para fazer uma lista que se supõe completa e logo emparelhar um a um este conjunto com o dos números naturais. O professor Fausto Ongay explica o procedimento [13] que se ilustra mais abaixo: “Suponhamos que […] logramos estabelecer uma lista que inclua todas as expressões decimais [e que emparelhamos um a um todos os números desta lista com os infinitos números naturais; supondo assim, que possuem a mesma cardinalidade]. Então, podemos construir [infinitos dígitos com sua expansão decimal que não estejam incluídos nesta lista e, portanto, que não tenham sido considerados em seu emparelhamento com o conjunto dos números naturais] da forma seguinte: [traçamos uma diagonal qualquer na lista dos números reais que estabelecemos e com a ajuda dessa diagonal formamos um novo dígito com sua expressão decimal] para a primeira das expansões da lista escolhemos um dígito diferente de seu primeiro dígito; para a segunda um diferente do segundo dígito, para a terceira um diferente do terceiro, e assim ad infinito. É claro que escrevendo em ordem estes dígitos obtemos a expansão decimal de um número. Mas também é bastante claro que esta expansão não está na lista […] deste modo, o infinito dos números reais é maior que o dos naturais! [E, ademais, os números reais têm uma cardinalidade diferente que não é possível emparelhar com os números naturais já que sempre faltariam números à lista dos números reais]” [14]. Desta forma Cantor descobriu que existem diferentes e infinitos tipos de infinitos, com características e cardinalidades diversas. Isto é, em essência, o que sustentava Engels. 

 

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Cantor teve uma vida trágica, a partir de 1884 foi internado intermitentemente em instituições mentais, há quem assinale que isto foi resultado das contradições lógicas descobertas com seu estudo do infinito ou pelo fato de que seus resultados foram rejeitados pela ortodoxia matemática de seu tempo e que entravam em contradição com sua educação religiosa. No entanto, suas contradições são hoje amplamente reconhecidas pela matemática moderna, resultados que reivindicam e aprofundam a compreensão dialética do infinito.

 

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Notas:

[1] Dynnik, História de la filosofia, Tomo I, Grijalbo, 1962, p 265

[2] Dynnik, História de la filosofia, Tomo I, Grijalbo, 1962, p. 289

[3] Sagan, Carl; Cosmos, Planeta, Madri, 1985, p. 51

[4] Sagan, Carl; Cosmos, Planeta, Madri, 1985, p. 53

[5] Sagan, Carl; Cosmos, Planeta, Madri, 1985, p. 60

[6] Sagan, Carl; Cosmos, Planeta, Madri, 1985, p. 61

[7] Ongay, Fausto, Mathema, el arte del conocimiento, FCE, México, 2000, pp. 66-67

[8] Cf, Marx, Karl, “Sobre o conceito de derivada de uma função (manuscrito 4147)”, UAM, Méxido, 1997

[9] Carta de Marx a Engels, 22 de novembro de 1882

[10] Ongay, Fausto, Mathema, el arte del conocimiento, FCE, México, 2000, p. 67

[11] Engels, “Notas ao Anti-Dühring”, em A gênese do Anti-Dühring, Roca, México, p. 85

[12] Engels, Anti-Dühring, Grijalbo, México, 1975, p. 39

[13] Tomamos a licença de completar sua argumentação – entre colchetes – para fazê-la a mais clara possível já que pode resultar um tanto abstrata ou obscura para aqueles que não estamos relacionados com o tema, esperamos não haver violentado demasiado o texto.

[14] Ongay, Fausto, Mathema, el arte del conocimiento, FCE, México, 2000, pp. 77-78