A Revolução Russa sob o olhar de uma jovem comunista – O prólogo

Passaram-se 100 anos. E, assim como eu, tantos outros são influenciados pela grande marca impressa no século XX, por milhares de operários, camponeses e soldados russos, em sua marcha pela emancipação da autocracia e do capital. Fruto das experiências, dos erros e acertos, e do acúmulo das lutas dos anos anteriores, foi vitorioso o assalto aos céus naquele inverno de guerra. A revolução Bolchevique de Outubro de 1917 teve seus antecedentes. Vamos a eles.

A velha sociedade russa era a terceira maior potência demográfica no século XIX, atrás apenas do Império das Índias e da China. Essa imensa população, cerca de 132 milhões de habitantes para o recenseamentos da época, se dividia em diversos povos com suas religiões, costumes e línguas.

Não é por acaso que lituanos, poloneses, estonianos, letões e finlandeses, alemães e judeus, não aceitavam a autoridade do czar, que queria “homogeneizar” os povos com suas regras.

O lema era um Czar, uma Nação, uma Fé. E através dessa concepção, a igreja católica ortodoxa funcionava como mais uma das instituições de repressão e opressão do Estado imperial russo.

E este com mãos de ferro, por um lado pela burocracia civil (cerca de 500 mil funcionários no final do século XIX) e seu braço repressivo, a polícia política, e pelo outro, através das Forças Armadas, impunham, respectivamente, um regime interno onde não existiam liberdades democráticas (expressão, manifestação e organização) e uma política externa de permanente expansão do império. Além do mais, as Forças Armadas eram sempre acionadas para conter manifestações opositoras no interior da potência.

Até a Guerra da Crimeia (1853 a 1856 contra a aliança anglo-francesa) este gigante, ainda não aparecia com seus pés de barro. Nesta guerra, ficou evidente a desmoralização dos soldados, que mal equipados e com a oficialidade mal preparada, somando-se os sofríveis meios de comunicação e as dificuldades da linha de abastecimento, amargaram uma derrota que fez o império recuar de suas pretensões na área de domínio do Império Otomano.

Mesmo sendo uma potência demográfica e militar, que servia de polícia do mundo para esmagar processos revolucionários em todo o mundo e onde os conservadores se apoiavam, a Rússia imperial guardava suas contradições.

Era uma nação econômica e socialmente atrasada. Encontrava uma gigantesca pressão do Ocidente para novas formas de produção, através da introdução do capitalismo e da mão de obra assalariada já existente nas economias avançadas da Europa, e também para a renovação das instituições políticas do Estado pela via das Repúblicas Democráticas, herança da Revolução Francesa de 1789. Pelo outro lado, pressionada pelas velhas formas de produção e do autoritarismo presente no Oriente.

A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado explica que as nações e povos atrasados experimentam desenvolvimentos por saltos, combinando elementos arcaicos e elementos modernos no seu interior, devido a força que a pressão dos povos e nações desenvolvidos os impõe a assimilar. Tais desenvolvimentos por saltos estão condicionados, porém, pelas condições econômicas e culturais que os povos e nações acumulam ou não.

No processo de assimilação dessas pressões surgem os grandes conflitos e contradições vividas no seio da águia de duas cabeças.

Conflitos com outros países desde o grão-ducado até o final do Império fizeram com que  a nobreza (autocracia) aumentasse sempre o Estado, no sentido de seu papel nas relações de produção, para os fins bélicos que a política de expansão territorial necessitava. Com isso o Estado bloqueava o desenvolvimento da burguesia enquanto classe e, portanto, a enfraquecia do ponto de vista da reprodução de capital e de seu papel histórico, já ultrapassado hoje, como classe revolucionária. Ao mesmo tempo, a introdução do capital, principalmente via os financiamentos, fazia desta burguesia uma classe socialmente dependente do exterior.

Processo muito diferente se operou com o restante da Europa, que através do enfraquecimento das relações feudais e do nascimento de uma classe social e econômica que não suportava seu bloqueio frente às limitações do modo de produção baseado nas terras comunais e servidão, decepou as velhas formas de produzir e instalou um novo sistema político compatível com suas necessidades econômicas.

Assim era o Estado russo: semi feudal e semi colonial. Semi feudal porque ainda possuía o sistema de terras comunais, o modo de produção ainda estava baseado na servidão, e convivendo com essas formas arcaicas, existiam fábricas, comandadas por nobres convertidos aos negócios, e cidades urbanas, mesmo que pouco desenvolvidas, abrigava uma numerosa classe operária. O embrião do capitalismo estava instalado, porém ainda não havia germinado. Era semi colonial pelo caráter intermediário do comerciante russo, que fazia negócios com o Ocidente e comercializava novamente com as aldeias, funcionando como um mediador entre as relações de produção e circulação das mercadorias. Além disso, era marcante o caráter de submissão do capital financeiro russo, subordinado ao mercado financeiro Ocidental.

O campesinato, mesmo sendo a principal força produtiva até então, não era desenvolvido. Utilizavam seus braços e instrumentos rudimentares para a produção. Por esse motivo, a produtividade do campo russo era baixíssima se comparado com o restante da Europa. Além do mais eram privados do acesso à terra, e mesmo depois da abolição da servidão e da redistribuição das terras comunais, em 1861, pela pressão exercida por eles reivindicando terra e liberdade, ainda tinham que pagar caro para trabalhar nas terras que lhes haviam sido atribuídas, e não haviam conquistado todas as terras, como era sua reivindicação histórica.

Foi a autocracia que criou as bases para o desenvolvimento das relações de produção capitalistas e de seu produto direto, a classe operária. Não era sua intenção. Mas operou-se desta forma pelo desenvolvimento das áreas estratégicas para os interesses bélicos e imperialistas (do velho regime). Com o desenvolvimento das linhas de ferro, dos telégrafos e sustentando um poderoso exército, mantido com as reservas do campesinato, chegamos à Rússia imperial do início do século XX, a guerra Russo-Japonesa de (1904-1905) e ao Domingo Sangrento.

Dos fatos históricos já conhecemos bastante. E aqui nos interessa um mergulho nas duas tendências que irão confrontar-se no período: Bolcheviques e Mencheviques. Fruto de análises diferentes acerca do caráter da revolução, a cisão entre a social-democracia e as posições dos diversos grupos atuantes nos processos revolucionários de 1905, nos ajudam a compreender mais de perto as contradições do processo. Lembramos que o II Congresso, que fundou efetivamente o partido e aonde esta divisão começou, foi realizado em 1903, dois anos antes da revolução de 1905. E quando a revolução estalou em 1905 as posições políticas das duas frações que se construíam eram diferentes.

Para os Mencheviques, a revolução teria um caráter essencialmente burguês e que a passagem do poder cairia nas mãos da burguesia, que então criaria as bases para uma democracia burguesa, baseada no parlamentarismo. Os Bolcheviques, pelo contrário, entendiam que a revolução teria um caráter democrático burguês, porém, limitado ao conteúdo de suas reivindicações, que em suma, reunia diversas petições democráticas acrescidas de demandas trabalhistas, mas apontavam como tarefa da revolução a instauração de uma República Democrática por meio da ditadura do proletariado e do campesinato.

Importante dizer que os Bolcheviques, nesta altura, conferiam um caráter democrático burguês à revolução, dado o papel dos camponeses  nos processos revolucionários e no processo de produção: era impossível fazer a revolução sem os camponeses ou contra eles. Contudo, a Revolução Russa de 1905 também continha um caráter proletário, uma vez que a força dirigente do processo era o proletariado e o método para se chegar à revolução era um método genuinamente operário: a greve. Falaremos dela mais adiante.

Trotsky e Parvus, por outro lado, admitiam um outro ponto de vista, diferente dos que foram apresentados. Para eles, a revolução que começaria, em suas primeiras tarefas, a aplicar um programa democrático burguês, logo, enfrentando as classes hostis, não seria  vitoriosa se não entregasse o poder à classe que pode se colocar à cabeça das massas: o proletariado. Com o poder nas mãos do proletariado, este não poderia se limitar à aplicação de um programa democrático burguês (a começar pela revolução agrária) e só poderá levar a revolução russa ao nível do socialismo se esta ultrapassasse os limites nacionais, transformando-se na revolução do proletariado Europeu e Mundial. A tática no proletariado deveria ser a tática da Revolução Permanente, superando o programa mínimo e o programa máximo e encontrando apoio na revolução do proletariado da Europa Ocidental.

Neste sentido, a grande diferença entre as posições de Trotsky e Parvus em relação aos Bolcheviques era a questão da composição do governo após a derrubada da autocracia.

Seria um governo democrático burguês, com a fórmula da ditadura do proletariado e campesinato ou uma revolução que superaria o programa democrático burguês à medida que a classe dirigente, a vanguarda proletária, estabelecesse a ditadura do proletariado? Doze anos mais tarde a história nos deu os elementos para responder a essa questão.

Ao longo do ano de 1905 ondas sucessivas de mobilização tomaram o país. E dois poderosos instrumentos foram colocados em uso pelos trabalhadores: a greve política de massas e os Sovietes.

As greves políticas de massas na Rússia marcavam as reivindicações da social-democracia na Europa Ocidental: liberdades políticas e sindicais, aumento de salário, condições dignas de vida e de trabalho. Entre as lutas urbanas, com influência das correntes liberais, também estava presente a reivindicação de uma Assembleia Constituinte com base no sufrágio universal.  No campo, a radicalização encontrou sua forma nos saques, invasões, protestos e depredações em que eram organizadas cooperativas, associações, comitês. Os questionamentos estavam ligados ao recrutamento militar compulsório para as Forças Armadas e a cobrança de impostos. Entre os soldados, os motins eram a expressão da radicalização, executados principalmente pelos militares de baixa patente. Foi neste contexto que ocorreu a revolta no Encouraçado Potemkin.  Por sua vez, as nações não russas, reivindicavam a autonomia cultural e política. Os estudantes nas escolas, queimavam livros e quadros, tal como o retrato do czar!

A greve de massas era essencial. E continua sendo. Uma arma genuinamente operária que encontrou sua maior expressão na Rússia daquela época, combinando elementos econômicos e políticos. Assim, o movimento grevista russo de 1905 superou as demonstrações do mesmo tipo de todos o proletariado dos países de capitalismo adiantado, em que a classe operária era mais experimentada. Mas não poderia ser diferente, tamanha a repressão promovida pela autocracia que de um lado massacrava o povo atacando brutalmente qualquer expressão das liberdades democráticas e, por outro, os submetia a uma exploração combinada de elementos feudais como as altas cargas de impostos e uma semi servidão, por exemplo, com elementos capitalistas de jornadas de trabalho exaustivas e salários irrisórios, além de submeter todo o povo por séculos em guerras que sempre aumentavam o custo de vida e os levava à carestias desumanas.

Depois de ter assinado o tratado de paz com o Japão, as tropas voltaram-se para os conflitos internos e sob a pressão do movimento grevista, o czar propôs um manifesto, que prometia questões inéditas na Rússia: liberdade de expressão e de organização, partidária e sindical, e a convocação de uma Assembleia Constituinte, a Duma. Era o Manifesto de Outubro. Este foi aceito por alguns setores, principalmente as correntes liberais. Porém, alguns dos Sovietes mais radicalizados rejeitavam o Manifesto, achavam-no insuficiente e impreciso. O Soviete de Petrogrado convocou o povo para uma nova greve geral e a não pagar os impostos. Com as Forças Armadas atuando nos conflitos internos a correlação de forças se alterou, o Soviete foi fechado e a maioria de seus dirigentes presos. O Soviete de Moscou, recém fundado, veio em socorro e conclamou o povo a se insurgir. O povo saiu às ruas, respondendo ao chamado e em Dezembro de 1905, conseguiu controlar algumas partes da cidade. Era tarde, estavam isolados em todo o império e as tropas, em ação fulminante, massacrou os insurgentes. 1000 mortes marcaram o início da reação autocrática, que iria durar deste episódio até  1916, com as indigestas carestias promovidas pela participação da Rússia na 1ª Guerra Mundial, a reativação do movimento grevista e uma luta encarniçada para derrubar a autocracia.

Contudo, o prólogo foi extremamente importante para a luta dos trabalhadores rumo ao começo de sua emancipação em Outubro de 1917. Foi dessa experiência na luta viva das classes que foram extraídas as lições que levaram aos acertos do futuro. A independência política do proletariado e a sua luta revolucionária foram os elementos para educá-los e experimentá-los. Tal como naquela época, os povos no mundo inteiro ensaiam o momento de parir uma nova sociedade. Da nossa geração sairão as parteiras! Preparemo-nos!