A Renúncia do Papa exibe a crise do catolicismo romano

Em um período de crise e declínio do capitalismo, a religião é a única ‘certeza’ na qual muitas pessoas se agarram. Mas se o próprio Papa já não está convencido que ele pode manter-se em seu posto até sua morte, esta ilusão de solidez começa a quebrar-se. Na consciência de mais de um bilhão de católicos, o efeito do surpreendente anúncio da sua aposentadoria pelo Papa Bento XVI será como um terremoto espiritual, e, sem dúvida, também terá consequências políticas.

A última vez que um Papa renunciou antes de Bento XVI foi em 1415, quando Gregório XII se aposentou com o objetivo de superar o Cisma do Ocidente, uma divisão entre a Igreja de Roma e a Igreja de Avignon que durou 40 anos. O porta-voz papal descartou a possibilidade de sérios problemas de saúde por trás da abdicação de 2013. Parece que a demissão deste pontífice também tem como origem uma divisão profunda dentro da Igreja Católica e particularmente dentro da Cúria Romana, ou seja, no governo da Igreja e no aparelho administrativo da sua teocracia em miniatura.

A base material da Igreja

A organização da Igreja Católica lembra uma combinação entre uma velha monarquia feudal e um moderno partido político. Na época do predomínio global do modo de produção capitalista, a Igreja Católica desempenha o papel de ideólogo coletivo a serviço da burguesia, influenciando 1,2 bilhão de pessoas em todos os continentes. Para levar a cabo essa tarefa reacionária, além do pessoal leigo que trabalha em seus órgãos e nas estruturas que ela controla, ela emprega um aparelho de mais de 400.000 sacerdotes (metade deles concentrada na Europa), 750.000 freiras, etc. Só nos EUA mais de um milhão de homens e mulheres trabalham para a Igreja Católica Romana, de uma forma ou de outra.

Este imensa máquina de propaganda é financiada principalmente de três formas: a) com doações em dinheiro, doações de bens e através do trabalho voluntário (incluindo o trabalho de monges e monjas, que – pelo menos no papel – não têm o direito de possuir nada pessoalmente); b) com o aluguel das enormes fazendas que possui; c) e através do parasitismo sobre as finanças de alguns estados, particularmente a República Italiana. Mas essas fontes de financiamento estão se tornando mais e mais obstruídas.

O declínio no número de “vocações” forçou a Igreja Europeia a importar em massa membros do clero do Terceiro Mundo. O contingente de católicos na população mundial está estagnado em 17%, porém este percentual esconde a acentuada redução qualitativa da adesão aos preceitos religiosos e à liturgia, o que se traduz em doações escassas e num enfraquecimento da transmissão da fé através das gerações.

Os dados estatísticos mostram que a maioria dos católicos não comparece à Santa Missa semanal, e em muitos países a proporção de comparecimento está encolhendo. Na Itália em 1995-2000, 48% dos católicos adultos declararam que estavam seguindo este preceito fundamental, e em 2005-2008 apenas 36% o seguiam. Esses dados também não refletem a situação real. Por exemplo, uma pesquisa encomendada pelo próprio Vaticano em uma diocese na região central da Sicília, realizou uma contagem física, entre aqueles que disseram que iam à igreja todos os domingos (30%), de quantos iam na prática. O resultado mostrou que apenas cerca de metade deles (18%) iam realmente assistir à missa.

Entre 1990 e 2010, o número de crianças batizadas caiu 18% na Europa, embora esta queda tenha sido compensada por um aumento no Terceiro Mundo. A quantidade de primeiras comunhões diminuiu tão drasticamente nos países avançados que levou a uma queda global de 5% no mesmo período de tempo.

O relativo crescimento da Igreja em algumas áreas subdesenvolvidas do mundo não consegue cobrir os custos do seu enfraquecimento no Ocidente. Nos países que são economicamente decisivos para a Igreja, os próprios fiéis não parecem particularmente vinculados a ela. De acordo com uma pesquisa de opinião de 2005, 44% dos católicos italianos são da opinião de que a Igreja não dá respostas adequadas para os problemas da vida familiar. No norte da Itália, em 2011 o casamento civil já tinha ultrapassado os casamentos religiosos. Estatísticas semelhantes podem ser encontradas para a população católica da maioria dos países ocidentais, incluindo Espanha e Irlanda.

Há também uma crescente hostilidade da opinião pública contra os privilégios eclesiásticos, especialmente escandalosos em tempos de crise e nos países de maioria católica, mas essa hostilidade também é significativa em países como os EUA, onde tais privilégios são compartilhados por uma grande variedade de denominações cristãs e outras organizações religiosas.

Combine tudo isso com a concorrência de Igrejas mais modernas e agressivas e então as ameaças à estabilidade do fluxo de caixa do Vaticano podem ser facilmente compreendidas. Isso tornou o Vaticano cada vez mais dependente do reinvestimento de seus recursos de capital em operações financeiras, explorando a possibilidade de usar o seu pequeno estado em Roma como um paraíso fiscal e como um lavador internacional de dinheiro. O instrumento para tais transações de risco é o IOR, um banco privado com sede na Santa Sé sob o controle direto do Papa. Este banco foi criado em 1929, a fim de gerir de forma eficiente os recursos vindos do Estado fascista depois dos Pactos Lateranenses entre o Estado italiano e o Vaticano, que foram assinados por Mussolini e o primeiro-ministro do Papa. Não poderia haver melhor ilustração da estreita ligação entre os “cambistas no templo” e os aspectos mais reacionários do capitalismo. (Pacto Lateranense foi realizado em 1929 para estabelecer relacionamento mútuo e separado entre o Reino da Itália e a Santa Sé. Nota do editor)

Intrigas da corte

Em 2006, Joseph Ratzinger (nome real do Papa Bento XVI) escolheu o cardeal Tarcisio Bertone como seu novo secretário de Estado, ou seja, como seu primeiro-ministro. Bertone já tinha “trabalhado” com Ratzinger na Inquisição Romana, e eles foram aliados no conclave de 2005 (o conclave papal é o congresso de cardeais que elege o Papa). A partir dessa posição, ao longo dos anos ele acumulou notável poder que ele tem usado da forma mais imprudente contra as crescentes fileiras de seus inimigos dentro da corte papal.

É no contexto de um forte conflito entre a facção de Bertone e os seus adversários na Cúria (como o Cardeal Sodano, o Cardeal Ruini e outros “Wojtylians” – Karol Wojtyla era o nome do Papa João Paulo II) que estourou o escândalo ‘Vatileaks’ (vazamento de documentos secretos do Vaticano). Este escândalo consistia em uma série de vazamentos sobre duas questões principais: a sujeira das finanças do Vaticano e a iminência de uma sucessão pontifícia.

Desde 2008 o Cardeal Bertone é o chefe do órgão dirigente do banco IOR. De lá, ele fez oposição a todas as tentativas por parte do banco central italiano e do Conselho da Europa para fazer o funcionamento da IOR menos opaco. Basicamente, no momento, qualquer um pode anonimamente abrir uma conta bancária lá usando um cúmplice clérigo como um procurador. Desde 2010 uma série de escândalos surgiu, expondo o IOR como um parceiro preferido de vários grandes bancos italianos e europeus em transações obscuras. Em dezembro de 2010, 23 milhões de euros pertencentes a um cliente anônimo do IOR foram congelados pelas autoridades italianas.

O desdobramento da crise econômica fez com que as autoridades bancárias ficassem menos dispostas a serem tolerantes com o modo de operação do IOR, que atuava com absoluta desregulamentação papal, livre de impostos e em total desrespeito às normas internacionais. A situação ficou tão ruim que levou as autoridades italianas a impor o desligamento de todos os caixas eletrônicos na Cidade do Vaticano. Rumores originados da Cúria Romana, e relatados pelo jornal diário La Repubblica, dizem que o bloqueio dos caixas eletrônicos e a renúncia de Bento XVI estão intimamente ligados.

Em 2009, Ratzinger e Bertone nomearam como presidente do IOR Ettore Gotti Tedeschi, um banqueiro que apoia a “teoria católica de livre mercado”, uma teoria que defende que a crise econômica atual é causada pelo aborto e pela contracepção. No entanto, quando Gotti Tedeschi tentou interferir com as operações do banco, a fim de torná-las um pouco mais transparentes, ele veio de encontro a uma parede de tijolos. É a mesma parede que barrou o arcebispo Viganò, quando, depois de ter sido encarregado de equacionar o enorme déficit orçamentário da Santa Sé, ele acabou pisando os dedos de muitos sacerdotes corruptos do alto escalão. O nome desta parede de tijolos é Marco Simeão. Ele é um servo do Cardeal Bertone (boatos dizem que ele é seu filho!) que tramou a demissão de Viganò e, mais tarde, de Gotti Tedeschi.

Os vazamentos provavelmente começaram como uma represália contra o “partido Bertoniano”. Cartas de Viganò, contendo referências explícitas, foram divulgadas para a imprensa, e informações detalhadas sobre o conflito que desdobrava-se no IOR foram reveladas. Alguns jornalistas tiveram acesso a um documento reservado escrito para o papa Bento XVI, no qual é relatado que um cardeal siciliano tinha falado com alguns eclesiásticos chineses prevendo um novo Papa antes de 2013. Os chineses entenderam isso como uma ameaça de assassinato, mas, em retrospectiva, parece muito provável que fosse uma referência à abdicação iminente. Neste documento, o cardeal Angelo Scola, arcebispo de Milão e inimigo jurado de Bertone, também é indicado como o sucessor designado de Ratzinger. O autor deste vazamento também foi identificado: por mais ridículo que pareça, o culpado acabou sendo o mordomo! O mordomo pessoal do papa foi preso pela Guarda do Vaticano – um evento por si mesmo sem precedentes – em 24 de maio. No mesmo dia, Gotti Tedeschi foi demitido.

O mordomo defendeu-se dizendo que ele teria provocado o Vatileaks com o objetivo de proteger a Igreja e o próprio Papa do inimigo interno: a ganância e a corrupção … e seu secretário de Estado. Vale a pena notar que o julgamento terminou com uma condenação, mas o pontífice perdoou o mordomo. Alguns explicam a abdicação de Ratzinger como uma medida extrema para desembaraçar a Cúria do aperto sufocante de Bertone. Não seria fácil demitir o secretário de Estado, e Ratzinger não parecia disposto a tanto, mas se o Papa sai então seu primeiro-ministro tem que sair junto, e ele pode não ser confirmado se o conclave instaurar um novo equilíbrio de poder. Aparentemente, Bertone está usando esses últimos dias antes de 28 de fevereiro – a data anunciada da abdicação – para colocar seus asseclas em posições-chave. E o que é bastante significativo, ele não perdeu tempo para conseguir que um novo grupo de Bertonianos obedientes assumissem a gestão do IOR. Tudo indica uma exacerbação da luta interna.

Muda o Papa, os problemas continuam

A eleição de Joseph Ratzinger representou um afastamento da linha de João Paulo II, que era baseada no ecumenismo, universalismo e uma tentativa de apelar mais para a juventude. Como marxistas, sabemos que a política de Karol Wojtyla não foi menos reacionária: o papa polonês abriu seu reinado sob a bandeira de um flagrante anticomunismo e da intolerância, e a falsa postura anticapitalista e anti-imperialista adotada após o colapso da URSS e durante a guerra no Iraque foi realmente utilizada para ocupar o espaço político à esquerda e atrair milhões de jovens para o solo estéril das manifestações de massa no Dia Mundial da Juventude, puxando-os para longe da luta contra o capitalismo. Esta manobra, no entanto, revelou seus limites com o chamado movimento antiglobalização, quando a tentativa católica de sequestrar o movimento produziu resultados muito escassos. Na realidade, o falso anticapitalismo de Wojtyla nem sequer conseguiu impedir o deslocamento para a esquerda na América Latina, e o ecumenismo não conseguiu desacelerar significativamente o avanço de outras religiões e seitas novas. Apesar das intenções de Wojtyla, sua alegada abertura não reverteu efetivamente a enfraquecida influência do dogma católico, e no final das contas ela simplesmente fez com que as numerosas ovelhas negras no rebanho católico seguissem as tendências predominantes. Para os cardeais presentes naquele conclave, a eleição de Ratzinger deve ter tido o gosto de café preto após uma noite de bebedeira.

A eleição deste teólogo alemão foi uma escolha obscurantista que implicava uma mudança de foco de volta para o núcleo duro dos verdadeiros crentes conservadores. Foi uma escolha provinciana destinada a cuidar dos gananciosos interesses da Igreja na Itália e das intrigas dentro da Cúria de Roma. Como podemos observar, esta linha também enfrentou grandes problemas e agora foi derrotada. Seu papado viu um fluxo interminável de escândalos vergonhosos, divisões dramáticas, e declarações reacionárias.

Já em seu sermão como Decano do conclave dos cardeais, antes de ser eleito, ele atacou a ” ditadura do relativismo “, listando os inimigos ideológicos da fé cristã escondidos atrás da ameaça relativista, entre os quais o marxismo merecia ser mencionado em primeiro lugar. Com a palestra de Regensburg de 2006, além de lançar uma provocação contra os muçulmanos dando uma piscada para a intolerância religiosa, ele reviveu sua cruzada contra o relativismo, pregando a oposição medieval entre a razão da ciência e a razão da fé. Ele tentou enfraquecer ou até mesmo revogar as inovações introduzidas pelo Concílio Vaticano II e readmitiu quatro bispos tradicionalistas ultraconservadores cristãos, incluindo um que acabou por negar o Holocausto.

Ele herdou do papa anterior o enorme escândalo dos encobrimentos e da cumplicidade das chancelarias diocesanas e do Vaticano nos casos de estupros cometidos por sacerdotes, particularmente em crianças, e ele tratou esses casos com reticências e uma conspiração de silêncio (tudo isso está agora de novo pegando fogo com protestos em muitos países contra os cardeais passíveis de condenação ​​sendo admitidos no novo conclave). Ele confirmou a postura clerical mais obstinada sobre a contracepção, a prevenção da AIDS, o direito ao aborto, a eutanásia e a homossexualidade. Ele dogmaticamente rejeitou qualquer pedido de inovação na estrutura eclesiástica proveniente da periferia do clero mais preocupado com a crise de confiabilidade e a escassez de vocações.

O conclave de 2005 descobriu uma forma de sair do impasse entre Ratzinger e o jesuíta argentino Bergoglio graças a “traição” de alguns cardeais latino-americanos que optaram por mudar de lado e apoiar Ratzinger, quem sabe em troca de quê. A composição da casta dos cardeais é largamente favorável aos países que são financeiramente decisivos para a Igreja Católica. Apesar da proclamada visão global do cristianismo, 49 cardeais de um total de 209 são da Itália. A segunda nação mais representada é a dos EUA, apesar de ter apenas 19. O conjunto da América Latina só tem 30. Os consistórios realizados por Bento XVI reforçaram a alocação ítalo-cêntrica e eurocêntrica de cardeais. Este papa nomeou tantos cardeais que o próximo conclave terá uma maioria de cardeais escolhidos por ele. Qualquer tentativa de eleger um papa não europeu, para ser usado em países mais pobres com a mesma função política que Karol Wojtyla teve no leste europeu, vai enfrentar a oposição feroz dos poderosos lobbies italianos no Colégio Cardinalício.

Muito provavelmente, a disputa principal será entre um dos homens de Bertone, como o Cardeal Gianfranco Ravasi e um membro da frente anti-Bertoniana, como Angelo Scola, o Arcebispo de Milão. O Cardeal Scola é um membro da Comunhão e Libertação (CL), um movimento ultrarreacionário agindo como uma facção organizada dentro da Igreja Católica. A CL ansiosamente recruta seus membros na juventude, educa-os em escolas da CL, os envia para universidades e depois tenta encontrar posições importantes para eles no ambiente dos Grandes Negócios – como empresários ou gerentes, ou apenas como funcionários de membros da CL – no qual a CL funciona como um lobby econômico com conhecidas ligações com políticos de direita e a máfia. Este grupo foi fundado nos anos da década de 1950 com o claro objetivo de impedir a influência de ideias de esquerda entre os alunos, e mostra traços distintivos de obsessões ‘Red Scare’ (pânico vermelho, ou anticomunismo) e ativismo político intenso. Eles têm a sua própria teologia especial construída com métodos sectários, com todo o jargão pseudo-filosófico obscurantista de seu falecido guru Dom Giussani. Eleger um papa pertencente a sua própria tendência é um dos principais objetivos deste grupo “entrista”, e pela primeira vez isso agora parece ao alcance, uma possibilidade agora incorporada no potencial pontífice Angelo Scola. Membros da CL não esconderam o seu entusiasmo e foram para a Praça de São Pedro, poucos dias após a abdicação ser anunciada, com uma grande faixa onde se lia “Obrigado, Sua Santidade!” A presença incômoda da CL por trás de Scola pode, contudo, afastar muitos anti-Bertonianos, vários deles pertencentes a movimentos rivais e facções como a Opus Dei. A CL irá formar uma coalizão de seitas católicas de apoio à Scola, com base em algum tipo de acordo de partilha de poder? Veremos.

Um sistema em crise

A crise do capitalismo é também a crise dos seus pilares ideológicos. Nenhum novo papa poderá encontrar uma maneira de sair deste beco sem saída. A Igreja Católica Romana, um fator formidável de estabilidade para o capitalismo mundial, pode se transformar em seu contrário e se tornar um elemento de instabilidade. O banco da Igreja pode falir como às vezes acontece com os bancos. Uma Igreja que fala uma linguagem anacrônica quando se trata de direitos civis e da igualdade social, mas que, ao mesmo tempo, entende muito bem a linguagem do poder e dos derivativos financeiros pode rapidamente perder o amplo apoio que ainda goza. Divisões no alto escalão sobre obscuras lutas pelo poder vão minar a sua credibilidade e anunciam cismas, tanto à direita, como os Católicos Tradicionais, e à esquerda, como a Teologia da Libertação.

O Papa/Rei está despido. Exigências como a completa abolição do financiamento estatal de Igrejas, estatização das suas propriedades, expulsão dos sacerdotes das escolas públicas, etc, vão se tornar cada vez mais populares. Os trabalhadores e jovens vão procurar uma forma mais radical de expressar seu ódio contra os cambistas no templo. E isso só pode encontrar uma expressão progressiva em uma luta mundial contra todos os cambistas e todos os templos: a luta pelo socialismo internacional.

Traduzido por Ruy Penna