A renúncia de Fidel e as ameaças à Revolução

Sem qualquer escrúpulo ou compromisso com a verdade, por parte dos senhores que escrevem nos meios de comunicação, somos obrigados a presenciar um festival de ataques não apenas a Fidel, mas também a Cuba e ao socialismo.

Daniel Feldmann

A mesma imprensa que tem elogiado a “estabilidade financeira” e a “blindagem” do Brasil frente à crise da economia mundial, a mesma imprensa que tem defendido a reforma trabalhista e previdenciária no Brasil, “demoniza” Cuba e atribui todo o tipo de problema que ocorre na ilha à planificação econômica e à expropriação da burguesia, justamente as marcas deixadas pela Revolução. O jornal Estado de São Paulo, para ficarmos em apenas um exemplo, afirma que Cuba sob Fidel se transformou num “fracasso e numa tragédia”. Cuba é o “fracasso e a tragédia”? Mas, então, quem é o “sucesso”?

Peguemos o caso do Brasil, para não falar do “sucesso” dos vizinhos mais próximos de Cuba que se mantiveram sob o capitalismo como o Haiti, Honduras etc.. Num país de dimensões continentais como o nosso, industrializado e com bom desenvolvimento das forças produtivas, inesgotáveis fontes de recursos naturais e terras férteis, temos cerca de 20 milhões de analfabetos (sem contar os semi-analfabetos), milhares de crianças que dormem nas ruas, milhões que têm problemas de saúde em função da fome e má-alimentação, um incontável número de brasileiros que anualmente morre nas filas dos hospitais públicos sem qualquer atendimento, doenças outrora erradicadas como a febre amarela que voltam a nos atormentar. Bom, se isso é o “sucesso”, melhor então, o “fracasso” cubano. Em Cuba, país de fraco desenvolvimento das forças produtivas, isolado economicamente pelo embargo americano, não há crianças de rua e a saúde, educação, expectativa de vida são as melhores de nossa sofrida América Latina.

A hipocrisia da burguesia e de seus representantes não pode esconder o óbvio. Se uma pequena ilha é tão “fracassada” por que então, fazem tanto alarde, dedicando páginas e páginas de seus jornais para tentar convencer-nos da “tragédia” cubana? O óbvio é que mesmo Cuba sendo uma ilha com pouca importância econômica, tem uma importância política gigantesca. Ainda mais num momento em que a Revolução Venezuelana está em curso e, que as massas se mobilizam contra o imperialismo em outros países latino americanos como a Bolívia e Equador. O alarde em torno de Cuba reside no fato de que o Davi cubano derrotou sua burguesia e o Golias imperialista americano. É uma derrota engasgada há quase 50 anos…

Cuba e a Revolução Permanente

A história da Revolução Cubana confirma as idéias da Teoria da Revolução Permanente formulado por Trotsky. Na etapa do imperialismo que vivemos, desde os princípios do século 20, as burguesias nacionais de países atrasados, de países como Cuba, não podem encampar um papel progressivo rumo a conquistas democráticas e sociais, tal qual as burguesias dos países desenvolvidos cumpriram num determinado momento histórico. As burguesias dos países menos desenvolvidos, dependentes e submissas ao imperialismo, são além de tudo covardes e temem profundamente as massas. Apenas a Revolução Proletária pode de fato trazer um verdadeiro progresso social nesses países, realizando inclusive as tarefas que a burguesia foi incapaz de realizar como a reforma agrária, generalização da saúde e educação pública etc.. Este é o conteúdo da Revolução Permanente. Não cabe aos países atrasados esperar que suas elites desenvolvam seus países. Elas conscientemente mantêm as massas num regime de exploração e pobreza. Exatamente o contrário. O proletariado deve lutar diretamente pelo poder, apoiado pelo restante do povo explorado, num processo permanente rumo ao socialismo, até que este se generalize mundialmente. Trotsky partia desta análise como pano de fundo contra a absurda posição de Stálin de defesa do socialismo num país só.

Tal posição justificou, durante décadas, a política de alianças com a burguesia nacional nos países atrasados com o intuito de “desenvolver as forças produtivas” deixando a questão da luta pela revolução socialista para um futuro indeterminado. Na verdade tratava-se de uma traição à revolução por parte da burocracia stalinista. Nos anos 50 Cuba vivia sob a assassina ditadura de Fulgêncio Batista, apoiado pelos EUA. O Movimento 26 de julho (M26), de onde saíram os principais dirigentes da Revolução, foi originalmente composto por antigos militantes do Partido Ortodoxo, partido burguês nacionalista. As ações guerrilheiras do M26 em oposição a Batista atraíam as simpatias das massas que odiavam o ditador. Além disso, o M26 ocupava um espaço vazio deixado pelo PSP, o partido stalinista, que tivera muito prestígio em décadas anteriores. Na medida em que os stalinistas do PSP apoiaram Batista, perderam quase todo o crédito junto à classe trabalhadora.

A despeito da força adquirida pelos guerrilheiros, não se pode creditar a vitória da Revolução apenas à coragem e heroísmo dos militantes do M26. Um profundo movimento de massas criou o clima que possibilitou a vitória do M-26. As eleições convocadas pro Batista em 1958 foram boicotadas por 80% dos eleitores. Quando em primeiro de janeiro de 1959, Batista era obrigado a fugir, uma greve geral sustentava a vitória da Revolução. E, é justamente a profundidade da Revolução Cubana, diga-se, o fato de ter sido uma Revolução encarnada nas massas, que explica seu desenrolar subseqüente. Em abril de 1959, Fidel declarava num discurso proferido em Nova Iorque: “Não somos comunistas… As portas estão abertas para investimentos privados que contribuam para o desenvolvimento de Cuba… É absolutamente impossível que nós possamos progredir se não nos entendermos com os EUA”. Entretanto, a dinâmica da Revolução não permitia que ela se encerasse apenas na sua etapa democrático-burguesa.

Para as massas cubanas, a vitória sobre Batista impulsionou enormemente a luta pelas suas reivindicações bem como o aumento da participação na vida política. A reforma agrária, aceita inicialmente com certos limites pela burguesia, seria radicalizada, assustando deste modo a elite cubana. E, é justamente quando terras americanas ligadas à produção de açúcar são expropriadas que o choque com os EUA se torna inevitável. Em 1960, o governo americano suspende a compra do açúcar cubano. O governo revolucionário responde nacionalizando toda a grande propriedade americana na ilha. É o início das hostilidades que levaria à frustrada tentativa do “democrata” Kennedy de invadir Cuba em 1961, no episódio da Baía dos Porcos.

A vitória do povo armado contra o imperialismo americano resulta em ainda maior aprofundamento da revolução. Os grandes meios de produção são totalmente nacionalizados. A maior parte da antiga burguesia foge. A economia começa a ser planificada, fato que permitiu as já citadas conquistas sociais de Cuba. Neste ponto, é útil uma comparação de Cuba com os países do Leste Europeu no Pós-Guerra. Em ambos os casos a burguesia foi expropriada e foram constituídos Estados Operários. Todavia, no Leste Europeu, o fator decisivo para tanto foi o avanço do Exército Vermelho, enquanto que em Cuba houve uma profunda Revolução que chacoalhou as bases sociais. Isso criou uma dinâmica diferente para a sociedade cubana, e também uma diferente relação entre os dirigentes e o povo. Não custa lembrar que os burocratas stalinistas que dirigiam os governos do Leste Europeu eram profundamente hostilizados pelo povo. Ceaucescu, por exemplo, o corrupto líder stalinista romeno, seria morto em 1989 com apoio da maioria da população.

Por outro lado, mesmo se o processo cubano teve suas particularidades, é preciso dizer que Cuba também sofreu as contradições de sua aproximação com a burocracia do Kremlin. Se de um lado, foi muito proveitoso para Cuba contar com a ajuda técnica e financeira da URSS e do Leste Europeu, por outro lado não foi nada proveitosa a aproximação política com a burocracia do Kremlin. O Partido Comunista Cubano foi fundado a partir da fusão do M26 com antigo partido stalinista PSP, que só deixara de apoiar Batista às vésperas da Revolução. Vários stalinistas foram então promovidos a dirigentes de Estado. E, sobretudo, a perspectiva do Kremlin como salientara Trotsky no livro “Revolução Traída”, estava a anos-luz da vitória da Revolução em escala mundial. Pelo contrário, como Trotsky previra já nos anos 30, a burocracia soviética era uma casta com interesses materiais próprios que jogaria um papel contra-revolucionário em todo o mundo e prepararia a restauração do capitalismo na URSS.

Como sabemos, a previsão de Trotsky estava certa, pois no início dos anos 90 os burocratas do Kremlin foram os agentes da privatização e do desmoronamento do Estado soviético. Cuba sentiu então pesadamente o fim da ajuda econômica da URSS. Mesmo que em Cuba a propriedade privada não foi restaurada, foi justamente nos anos 90 que o Estado cubano promoveria algumas aberturas ao mercado no turismo, na produção de tabaco, minérios e outros setores. Um dos principais motivos que levaria ainda nos anos 60 Che Guevara a abandonar o governo cubano e ir lutar em outros países, foi a sua percepção de que a política que a burocracia do Kremlin queria impor a Cuba era contrária aos interesses do socialismo internacional. Che desenvolveria críticas à burocratização imposta pelos stalinistas, bem, como tomaria consciência dos problemas oriundos do isolamento da Revolução. Consta que no fim de sua vida, Che tomou contato com alguns dos escritos de Trotsky. Che Guevara foi um grande revolucionário e podemos dizer que na sua tomada de consciência contra o stalinismo se aproximava das teses da Revolução Permanente. Dizemos isso, sem deixar ao mesmo tempo de afirmar nossa posição contrária ao “guerrilheirismo” inspirado por Che. O heroísmo, de muitos jovens que morreram na América Latina inspirados por Guevara, não pode ocultar o fato de que a guerrilha foi uma política errada, na medida em que buscava fazer a Revolução via ações de uma vanguarda apartada do real movimento e consciência das massas.

As ameaças à Revolução

A Revolução Cubana precisa ser destruída pelo imperialismo. Seu exemplo insuflou e continua insuflando a esperança socialista de milhões e milhões ao redor do mundo. A Revolução foi e é tão forte que a renúncia de Fidel invadiu os debates das eleições presidenciais nos EUA. O republicano e ultra-reacionário McCain fez questão de frisar que deseja a morte de Fidel e que ele deveria “se unir a Marx”. Mas os democratas teriam algo melhor a oferecer? Obama declarou que a renúncia de Fidel foi o fim de um “período sombrio na história de Cuba”. Hillary Clinton por sua vez disse que “A saída de Fidel Castro é um primeiro passo essencial, embora tristemente insuficiente para devolver a liberdade a Cuba”. Tanto Obama quanto Hillary se apressam em defender mudanças que visam trazer de volta a “liberdade” a Cuba. Mas, a “liberdade” que eles pregam é a liberdade do mercado, do capitalismo, logo desejam acabar com a Revolução Cubana.

A diferença entre republicanos e democratas é meramente tática. Ambos querem que Cuba volte a ser um quintal americano. A diferença é que os democratas, assim como a burguesia européia, conscientes de que é muito difícil derrubar a Revolução à força, buscam fazê-lo através de um processo mais longo de introdução de “reformas” que visem reconstituir a propriedade privada na ilha. Trata-se de uma estratégia talvez ainda mais perigosa para Revolução do que a estúpida hostilidade dos republicanos. Tal estratégia é reforçada pela imprensa burguesa internacional que tem proposto a adoção do “modelo chinês” por parte de Cuba. Mas o que seria o tal “modelo chinês”?

Trata-se do processo de reintrodução do capitalismo na China, que vem ocorrendo nos últimos anos, sob a mão de ferro da burocracia chinesa que proíbe sindicatos e impõe à classe operária uma brutal exploração. Vale lembrar que foi justamente após o Massacre da Praça da Paz Celestial em 1989, que o PC Chinês se viu livre para acelerar tais “reformas”. Ademais, temos de levar em consideração que a China é um país gigantesco, com indústrias e recursos naturais abundantes. Isto, aliado à ultra-exploração dos trabalhadores, é o que explica o elevado crescimento do PIB chinês. Crescimento que, diga-se de passagem, tem permitido o enriquecimento de um punhado de bilionários em aliança com a burocracia, enquanto que a maioria do povo permanece recebendo salários de fome. Desta forma, a aplicação do modelo chinês em Cuba não apenas seria acelerar uma restauração capitalista. Seria uma restauração que jogaria Cuba décadas atrás na história, que faria o país voltar a ser como seus vizinhos na América Central: países marcados pela desigualdade e dominados por uma elite subserviente ao imperialismo americano.

E as ameaças à Revolução vêm tanto de fora como de dentro de Cuba. É inegável que hoje existem setores na ilha que defendem o fortalecimento da economia de mercado e a restauração capitalista. O próprio Fidel alertou para isso em discursos recentes. E esses setores integram inclusive parte da burocracia estatal. O fato é que hoje existem duas Cubas. Existe a Cuba daqueles poucos que obtém os pesos conversíveis em dólares, obtidos justamente com o turismo e em atividades em que o capital externo tem penetração. Por outro lado, a maioria dos cubanos vive com o peso comum, não conversível em dólares, cujo valor de compra é 24 vezes menor. Esta situação caso prossiga só pode levar à corrupção da sociedade, na medida em que se desenvolve uma camada privilegiada, com aspirações burguesas, que passa a defender seus interesses pessoais em detrimento dos ideais coletivos da Revolução.

Como defender a Revolução?

Como marxistas, acreditamos que é necessário o mais incondicional apoio à Revolução e o mais impetuoso combate às tentativas de restauração capitalista propostas pelo imperialismo, tentativas estas que também têm eco numa minoria em Cuba. É certo que o avanço da Revolução na América Latina é decisivo para a defesa de Cuba e sua Revolução. Em especial a Revolução Venezuelana, caso tenha um desenlace positivo, trará energias políticas e econômicas espetaculares para Cuba. É por isso que a campanha “Tirem as Mãos da Venezuela” evidentemente deve abordar a defesa da Revolução Cubana no próximo período. O novo chefe do governo, Raul Castro, declarou que pretende “rever o tamanho do Estado Cubano”. Entretanto, Raul não deixa claro em suas declarações o que quer dizer com isto. Se isso significa aumentar a participação de empreendimentos econômicos privados em detrimento do Estado, acreditamos ser este um caminho perigoso para a Revolução.

É certo que a história mostra que em determinados momentos é necessário se “dar um passo atrás, para depois dar dois passos à frente” como foi o caso da Nova Política Econômica (NEP), nos anos 20, na URSS. A NEP, defendida por Lênin e Trotsky, foi um período de abertura ao capital, em certos setores, principalmente na agricultura, dadas as terríveis condições herdadas pela URSS depois da guerra civil em que os camponeses não estavam convencidos da necessidade da coletivização das terras. Mas a NEP foi algo provisório, um fenômeno logo após a Revolução Russa, que permitiu uma relativa acumulação de riqueza, que logo depois deu lugar à plena planificação da economia e controle do Estado Operário sobre a produção. No caso de Cuba uma “NEP” hoje só tenderia a acirrar as tendências pró-burguesas que mencionamos. Ainda mais com as pressões de fora e de dentro de Cuba no sentido de solapar a Revolução. Seria “um passo atrás, mas sem dois passos à frente”…

Por outro lado, se “rever o tamanho do Estado”, significa tirar poder da burocracia e passar cada vez mais o poder decisório ao povo, aí sim poderíamos ver algo de positivo. Sim, pois é no povo que reside a principal força pró Revolução! O que significa o Primeiro de Maio em Havana, onde 5 milhões de pessoas (quase metade da população) participam? São jovens, velhos, homens e mulheres que mesmo com todas as dificuldades estão pelo socialismo!

Não é à toa que o lançamento do livro de Trotsky “Revolução Traída” pela Fundação Frederico Engels atraiu grande interesse por parte de muitos cubanos (ver link http://www.marxist.com/america-latina/lanzamiento-la-revolucion-traicionada-cuba.htm). Para o bem da Revolução é preciso que se amplie o espaço ao povo, para que ele tome ainda mais as rédeas da Revolução, e possa assim combater os desvios burocráticos, a nova classe de privilegiados e os ataques do imperialismo. Essa é a verdadeira liberdade de que Cuba necessita, e não a “liberdade” de mercado defendida pelos Obama, Hillary e McCain! Um dos maiores orgulhos e prova da força da Revolução Cubana está estampada numa frase escrita no Aeroporto de Havana “Há no mundo cerca de 2 milhões de crianças sem lar. Nenhuma delas é cubana”. A defesa da Revolução Cubana é uma premissa decisiva para que um dia possamos dizer, numa sociedade socialista, que nenhuma criança dorme na rua em todo o mundo!

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