A luta de classes e o Projeto de Lei Anticrime

Após o período de caça às bruxas da Lava Jato, com condenações midiáticas que remetem às execuções medievais em praça pública, o novo governo vem tentando recuperar o carisma das instituições da forma mais demagógica possível, em especial das judiciárias e policiais. A nomeação de Sérgio Moro ao Ministério da Justiça diz muito sobre isso.

É nessa força tarefa de salvar o que há de mais podre no Estado burguês que surge o “Projeto de Lei Anticrime”, publicado ao dia 4 de fevereiro pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro.

A ideia de combater o crime pela repressão é um recrudescimento da lei penal que retrocede alguns séculos na história. É socialmente ultrapassada e só gera audiência para programas de polícia ou bilheteria para filmes de ação policial. Mas, apesar dos memes nesse sentido, não se resume a “proibir os criminosos de cometerem crimes”. É uma reafirmação de características que precisam ser exauridas para melhor compreensão.

O que a medida representa, afinal? Para sabermos, é importante entender o que significam os crimes, o encarceramento em massa e o poder de polícia. Porém, passemos para a análise da proposta, por enquanto.

Atropelando garantias constitucionais

Os direitos arduamente arrancados pela organização popular estão elencados em um item de decoração que chamamos de Constituição Federal. Seu artigo 5º é uma longa lista de garantias onde se encontram o Princípio da Presunção de Inocência e o Direito ao Devido Processo Legal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
(…) LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

O artigo 283 do Código Processual Penal determina ocasiões em que o acusado pode ser preso, proibindo, em tese, as que não estiverem na lista. A mais importante é a necessidade da sentença ser transitada em julgado, situação em que as instâncias foram esgotadas e não é mais possível recorrer da decisão. Moro rasura grosseiramente o texto incluindo a frase “ou exarado por órgão colegiado” (segunda instância), o que anula o sentido e a necessidade de listar, também, o trânsito em julgado. É bem no sentido da alteração da lei de igualdade em A Revolução dos Bichos:

“Todos os animais são iguais… Mas alguns são mais iguais que outros”

Em resumo, um puxadinho jurídico, que ofende uma Constituição hierarquicamente superior, para antecipar a prisão presumindo a culpa antes do trânsito em julgado, o que tem sido aceito pelo Supremo Tribunal Federal. Mas, ainda que de acordo com o entendimento lunático do STF, a matéria não pode ser levantada em Projeto de Lei Ordinária.

Antes de continuar, ressalto que estamos analisando o plano teórico das leis, o “dever ser”. No plano real, quase metade da população carcerária não tem sequer uma condenação. Milhares sequer têm processo. Então para que serve a proposta? O que muda? Essas respostas virão mais adiante. Por enquanto, vejamos alguns outros pontos.

A ofensa à presunção de inocência atinge também o patrimônio quando prevê o pagamento prematuro de multa e o confisco/leilão de bens, o que atualmente só é possível após o trânsito em julgado (Art. 133 CPP). O confisco não afetará apenas os bens provenientes do crime mas qualquer valor que ultrapasse o “patrimônio presumido” pela atividade que exerce licitamente, e após sentença em segunda instância. Que critérios definirão esse “patrimônio presumido”?

A Lei das Execuções Penais também é alterada com a biometria compulsória, obrigando a fornecer características do rosto, da voz, das digitais e até de material genético para um banco de dados. Determina ainda que a recusa ao fornecimento genético implicará em falta grave durante o cumprimento da pena, o que traz duras consequências ao sentenciado durante doze meses. Além de perturbador, esse ponto rasga outra garantia do artigo 5º da CF/88 de que “ninguém será obrigado a fornecer prova contra si mesmo”.

Mexendo nos pesos da balança

Além disso, modifica vários termos que dão mais autonomia para interpretação subjetiva do aplicador. Uma das maiores polêmicas é no artigo 23 do Código Penal, onde estão previstas as excludentes de ilicitude: O estado de necessidade, a legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito (de agentes públicos como os da Polícia Militar).

Atualmente a lei responsabiliza qualquer excesso nessas ações. Legítima defesa não me permite torturar e tatuar testas com os dizeres “eu sou ladrão e vacilão”, por exemplo. A proposta de Moro é que, havendo esses excessos, o juiz possa reduzir à metade ou simplesmente deixar de aplicar a pena se o ato for decorrente de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Mais uma vez elementos subjetivos praticamente impossíveis de serem desmentidos em uma investigação, principalmente contra a fé pública que ostenta as alegações de agentes do Estado.

Moro sugere isso numa realidade onde há esquadrões da morte, milícias, policiais assassinando adultos e crianças por “confundir” saquinhos de pipoca, celulares, parafusadeiras ou guarda chuvas com drogas, pistolas e fuzis. No mesmo país onde o “Caveirão” da Polícia Militar mirou e atirou em Marcos Vinícius, de 14 anos, assassinado próximo a sua escola ainda de uniforme. Fake news logo surgiram para ratificar a ação policial pelo suposto envolvimento do garoto com o crime organizado. Ou seja, primeiro vem a sentença, depois a fase probatória. O processo de criminalização das ruas tramita na ordem inversa do devido processo legal.

A Chacina de Costa Barros, em novembro de 2015, entra nessa lista. A justificativa encontrada para os 111 tiros de fuzil e pistola num carro com 5 jovens, que comemoravam o primeiro emprego de um deles, foi o pretexto de que portavam um suposto revólver. Um revólver de 6 tiros contra 111 de fuzil. Curiosamente, 111 também foi o número de mortos no Massacre do Carandiru, que elegeu o Coronel Ubiratan com o número de campanha 14.111 para deputado federal.

“Somos matéria prima da mais produtiva estatal
Onde gambé põe armas no bar em fraude processual
50 mil defuntos só é a taxa apresentada
Porque homicídio no DATASUS é morte de causa ignorada
(…) Nem a criminalística do Sudão
Examina tantos jovens com sinais claros de execução.”
– A Fantástica Fábrica de Cadáver, Eduardo Taddeo

O massacre mais recente é o de 8 de fevereiro, no Rio de Janeiro. Uma operação conjunta da PM e BOPE resultou em 14 mortos dentre os 16 que a comunidade afirma já estarem rendidos no momento da execução. A população se mobilizou para que outros cinco pudessem se entregar com segurança às autoridades. Com a proposta, poderão escolher a excludente que mais se adequa à situação e seguirão mais à vontade para cometer seus crimes de sempre.

Jogando a chave fora

No melhor estilo Minority Report, o projeto condiciona a progressão de regime à “constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir”. Condições certamente determinadas por quiromancia e bola de cristal. Mais uma medida que depende da interpretação subjetiva do aplicador e seus peritos. Na prática, processos de execução penal já contém laudos psicossociais com parágrafos inteiramente idênticos, às vezes com trechos mencionando outros sentenciados, seguindo um modelo padrão que atropela qualquer individualização da execução.

Propõe também alterar a fração necessária para 3/5 e até vedar o benefício para condenados em crimes hediondos. Nesse rol está incluso o tráfico de drogas e o porte ilegal de armas (desde a Lei 13.497/2017). Aqui caberia outra excludente de ilicitude para filhos de desembargadores e políticos importantes, que não só seguem impunes com suas toneladas de cocaína como assumem cargos públicos, defendendo heroicamente o povo brasileiro no Estado Democrático de Direito. Que honra.

Falando em políticos, aqui está a criminalização do Caixa Dois, quem diria. Pretende migrar a conduta do Código Eleitoral para o Código Penal, aumentando e estendendo o alcance da pena ao agente passivo e ao ativo. O intuito é moralizar a política, impedindo que os acusados participem da política e sejam eleitos senadores e deputados, assim como (não) fez a Lava Jato. Falaremos dos “amigos do rei” mais adiante.

Na sequência, proíbe certos benefícios a quem mantém vínculos com organizações criminosas, cuja comprovação dependerá mais uma vez de elementos vagos e relativos. Mas esse ponto chamou atenção por outra razão. Cita explicitamente as principais organizações como se fosse um hall da fama de facções brasileiras, o que não costuma acontecer em ordenamentos. É comum, sim, em programas como Brasil Urgente e Cidade Alerta, o que dá evidências do caráter demagógico e midiático do projeto.

Art. 1º III – se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica, como o Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos, Milícias, ou outras associações como localmente denominadas.

Também importa alguns institutos estrangeiros como o acordo de Não Persecução Penal e o Informante do Bem (plea bargain e whistleblower nos EUA). O primeiro se resume a um acordo com o Ministério Público, de benefícios na pena mediante confissão e abandono das provas produzidas contra e a favor, evitando o processo de conhecimento. Ocorre que o caráter sigiloso das investigações impedem o pleno acesso às provas acusatórias e o investigado deverá confessar às cegas, o que pode tornar o blefe ou a pressão dos agentes o fator determinante.

Hoje, a confissão não pode ser usada como único meio de prova. Ainda que alguém confesse o assalto de 30 bancos, as provas ainda são necessárias. Havendo acordo por confissão coagida, o que garantirá seu direito à ampla defesa se não há o devido processo legal?

O whistleblower importado como “Informante do Bem” promete recompensas pela colaboração em casos de crimes ao patrimônio público, premiando o informante com até 5% do valor recuperado, como os cartazes de “procura-se, vivo ou morto” dos filmes de Hollywood. Se a delação premiada já sofria críticas por atestar a incompetência investigativa do Estado, essa medida “abraça o capeta” ao fazer do poder público uma verdadeira loteria do crime.

O que a medida representa?

Moro é uma das faces do bonapartismo desse governo. Se Bolsonaro se apresenta como Bonaparte, Moro assume um papel mal feito de xerife do Velho Oeste. São inúmeros os juristas que apontam o caráter político e amador de Moro desde sua atuação na Lava Jato. As medidas são juridicamente pobres e carecem de qualquer estudo que comprove sua eficácia. Não garantem outra coisa que não seja o encarceramento em massa e o aumento do número de mortes em completa demagogia que até dá prêmios em dinheiro para a população.

Não há sequer as tentativas de esconder os pregos do tacape com as teses esfarrapadas de “melhorar salário dos policiais” ou “aprimorar serviços de inteligência”. É mais um pacote de rasuras a giz de cera e canetinha do que um Projeto de Lei realmente programático. Mas isso não importa, o campo jurídico nunca foi sua prioridade. E nem a do próprio Direito burguês. São demandas políticas.

A novidade é “legitimar em cartório” o que já acontece diariamente nas ruas. As torturas e provas plantadas pela Polícia Militar nos becos das periferias já ofendem a Constituição em vários pontos. A punição de 12 meses por falta grave antes de sua apuração, permitida pela Lei de Execução Penal, significa presunção de culpa, não de inocência. A coleta compulsória de DNA não é nada perto do blindado grafitando o muro da escola com sangue jovem e pólvora quente. O trancafiamento em masmorras mofadas com HIV, hepatite e tuberculose junto a dezenas de ratos e outros presos está longe do conceito de ressocialização.

No outro lado, o Caixa Dois confesso de Onyx Lorenzoni é recebido a pétalas de rosas por Sérgio Moro. Ele admitiu e pediu desculpas, oras. Seu rigor moralista também amolece para Ricardo Salles que, pouco antes de assumir o Ministério, teve seus direitos políticos cassados por três anos por improbidade administrativa. De todos os parlamentares investigados pela Lava Jato, 90% concorreram às eleições de 2018 normalmente. A lei não era para todos, Sérgio Moro?

“Aos amigos, as regalias. Aos inimigos, a lei”

Nesse sentido, considerando o etiquetamento social e as “cifras negras” explicadas no outro texto, o público alvo dessas medidas são os selecionados de sempre pela Lei Penal: a população pobre. Nessa triagem, a espada da Justiça e o fuzil da polícia têm endereço e bairro certos, assim como em toda a história da luta de classes na humanidade.

“Henry Ford se curvaria à montadora
Que produz por hora cinco carros furados por metralhadora
Nem com Napalm e Sarin se alcança a produtividade
Da fantástica fábrica de cadáver.

Trá, trá, trá, trá O sistema vai modelar
Matéria-prima sem valor pra polícia desfigurar
Tabaco, álcool, crack, fuzil antiaéreo
A linha de montagem começa no berço e vai até o cemitério
(…) De vassoura ou M2, em trégua ou no embate
Todos sangram na fantástica fábrica de cadáver.”
Eduardo Taddeo

As leis e a própria existência do Estado são produtos do antagonismo inconciliável entre classes, e vemos isso escancarado pela crise econômica mundial. É nesse sentido que Engels pontua:

“O Estado não é, de forma alguma, uma força imposta, do exterior, à sociedade. Não é, tampouco, ‘a realidade da Ideia moral’, ‘a imagem e a realidade da Razão’ como pretende Hegel. É um produto da sociedade numa certa fase do seu desenvolvimento. É a confissão de que essa sociedade se embaraçou numa insolúvel contradição interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis de que não pode desvencilhar-se. Mas, para que essas classes antagônicas, com interesses econômicos contrários, não se entre devorassem e não devorassem a sociedade numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força que se colocasse aparentemente acima da sociedade, com o fim de atenuar o conflito nos limites da ‘ordem’. Essa força, que sai da sociedade, ficando, porém, por cima dela e dela se afastando cada vez mais, é o Estado.”
– Engels em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado.

São essas “demandas por ordem” que geram tais medidas, reciclando conceitos das Ordálias e Penitências da Idade Média, historicamente ultrapassados, mas social e economicamente convenientes no momento. Com a sensação de segurança pelos espetáculos repressivos, jogam cortina de fumaça, por exemplo, nos constantes saques aos serviços públicos que pavimentam largas estradas para as privatizações, como as que já ocorreram e as que pretende Paulo Guedes.

Nada impede, portanto, que essas medidas de Moro também intensifiquem a repressão aos protestos e greves, que já vêm tingindo os tons de cinza da farda policial com o vermelho-sangue de professores e demais trabalhadores da rede pública em atos contra o SampaPrev.