20 anos do Massacre em Ruanda: A divisão racial que sangrou a história

Após 20 anos do massacre em Ruanda, na África, que exterminou milhão de pessoas em seis semanas de genocídio amparado pelo Estado, as políticas racialistas ainda são utilizadas como instrumento de divisão dos povos.

Após 20 anos do massacre em Ruanda, na África, que exterminou 1 milhão de pessoas em seis semanas de genocídio amparado pelo Estado, as políticas racialistas ainda são utilizadas como instrumento de divisão dos povos.

A trágica matança foi consequência da dominação capitalista do imperialismo belga sobre Ruanda, que impôs a partir de alegadas diferenças físicas entre os Tutsis e os Hutus (mas que realmente são inexistentes), uma política de diferença “racial”, “étnica”, criando e desenvolvendo um ódio racial entre uma população que históricamente tem uma origem comum, os banyaruandas. Tutsis e Hutus eram denominações relativas ao lugar social ocupado por cada um. Tutsis eram os proprietários de rebanhos, e Hutus eram os camponeses.  Se um Hutu conseguia comprar um rebanho virava Tutsi e se um Tutsi perdia seu rebanho e se dedicava a trabalhar a terra, virava Hutu. O imperialismo belga inventou as “etnias” Tutsi e Hutu para melhor dominar e impôs uma carteira de identidade “étnica”, em 1933. Essa foi uma política internacional dirigida e impulsionada pelo imperialismo e durante um largo período apareceu como leis segregacionais, em vários países: nos EUA as Leis Jim Crow, na África do Sul o Apharteid, na Alemanha, sob o regime nazista, o extermínio de judeus, foram as expressões mais conhecidas.

Em 6 de abril de 1994, com a derrubada do avião presidencial, eclodiu uma guerra civil que foi o estopim para o início da matança de Tutsi e Hutus. Forças armadas da Guarda Presidencial e as milícias ” Interahamwe e Impuzamugambi” matavam deliberadamente Tutsi e Hutus removendo os corpos com caminhões, manejando e controlando os bloqueios de entrada, estuprando mulheres e saqueando as vítimas assassinadas.

A elite hutu que incitava a população contra os Tutsis, tinha alvo certeiro e lutava contra o poder da burguesia tutsi. Armas e listas de alvos foram entregues a grupos locais, que sabiam exatamente onde encontrar suas vítimas. Porém, o ódio instalado com a disseminação do terror colocou toda população no campo de guerrilha.

Muitas vítimas eram forçadas ao suicídio e obrigadas a matar parentes ou queimadas vivas até a morte. Casas e estabelecimentos públicos eram incendiados ou bombardeados com granadas e as vítimas encurraladas fuziladas. Os soldados estavam ordenados à pedir as carteiras de identidade e matar os Tutsi. Os aparatos burgueses reforçavam a ação genocida de extermínio racista. Os bispos afirmavam apoio ao governo interino, legitimando a morte da população e atrasando a evacuação ou mesmo atraindo vítimas para os locais onde seriam encurraladas ou mortas. Os teóricos burgueses nas academias disseminavam desinformação e os médicos franqueavam o acesso às milícias nos hospitais. Jornalistas na mídia escrita e no rádio se regozijavam da morte de Tutsis.

A classe dominante insuflava o ódio racial sem quaisquer limites. A Rádio RTLM operada por Ferdinand Nahimana- parlamentar burguês do Movimento Nacional Revolucionário para o Desenvolvimento (MNRD), propagandeou o genocídio e retratava para a maioria da população analfabeta os “Tutsis invasores” como seres demoníacos (com chifres, cascos, olhos que brilhavam no escuro e orelhas pontudas). Uma política de desumanização não muito diferente daquela utilizada para sustentar as atrocidades no holocausto nazista. Os genocídios locais eram conduzidos por agentes estatais políticos e militares. A operação assassina contava com cerca de 50 mil agentes sob o comando do Coronel Théoneste Bagosora, apoiado massivamente pela burguesia.

Os genocidas contavam com a passividade da ONU, que como braço da burguesia internacional e dos EUA, recusou denominar ‘genocídio’ para não atuar na matança, alegando (como sempre) ter feito tudo o que pode. Entretanto, a carnificina cheou  al ponto que a ONU no dia 22 de junho de 1994 aprovou resolução mandatando a França, por dois meses, para invadir Ruanda com cerca de 3 mil homens reforçados por todo o aparato repressivo do exército francês.

A chamada “Operation Turquiose” protegeu os genocidas e garantiu a matança de Tutsis por mais um mês, além de amparar o comando genocida em travessia segura para o Zaire, com grande parte de suas armas e assim, passando a comandar os campos de refugiados.

Com apoio das tropas francesas, em 16 de julho, o presidente do governo provisório e parte de seu gabinete fugiam para a zona controlada pela França enquanto os milhares de corpos amontoados de Tutsis e Hutus sangravam Ruanda. Mais de 1,8 milhões de genocidas foragidos foram amparados pelas tropas francesas e abençoados pela ONU sob vigilância dos EUA.

Em 100 dias de guerra civil a taxa diária de mortos era maior que a dos campos de concentração nazistas. A geografia de Ruanda, país pequeno e montanhoso, e onde praticamente inexistm as áreas selvagens,  colaboraram com o massacre. As vítimas das zonas rurais não tinham muito esconderijos.  Porém, a matança não se limitou ao massacre de 1994 (de 07 de abril a 21 de julho), pois desde 1994 no leste do Congo, estima-se que pelo menos 5 milhões de pessoas teriam morrido, seja pelo resquício do ódio racial instalado ou pelas epidemias causadas pela falta de água limpa ou comida. A barbárie prolongou-se por anos já que os rios que cercavam Ruanda ficaram repletos de corpos (mais de 40 mil recolhidos no Lago Vitória).

Este retrato recente de Ruanda, fruto de uma política planejada para dividir os trabalhadores, revela que as atrocidades causada pelas políticas sustentadas no conceito de raças humanas não tem limites e confirma o quanto podem servir para exploração e domínio dos capitalistas. 

 A institucionalização do ódio racial

 A política de segregação institucionalizada pelo Estado se efetivou em 1933, após o domínio belga nos territórios da África Central, Ruanda e Burundi, quando sob o manto civilizatório da “Liga das Nações” a população de Ruanda foi arbitrariamente classificada em Hutu (84%), Tutsi (15%) ou Twa (1%). Cada habitante recebeu uma carteira de identidade com indicação expressa da “raça” diferenciada pela altura e as feições angulosas. Porém, um Tutsi o seria porque nasceu de um Tutsi e um Hutu da mesma forma. Essa profecia autorrealizável que autorizava a divisão racial servia à classe dominante que quando convinha discriminava como Tutsis alguns abastados possuidores de terras e gados e outros favorecidos na hierarquia do governo. Os Tutsis eram mais favorecidos desde a colonização e os exploradores dos Grandes Lagos (John S. Speke) enxergavam os Tutsi, como ‘raça’ superior. 

A burguesia imperialista, sob o infame discurso de estar carregando “o fardo do homem branco” de “civilizar os selvagens” buscava a divisão, a dominação sem limites, e não hesitava em instrumentalizar o racismo para dividir a população em Ruanda. Marx ao falar da dominação britânica sobre a Índia escreveu: “Os hindus não poderão colher os frutos dos novos elementos da sociedade, que semeou entre eles a burguesia britânica, enquanto na própria Grã-Bretanha as atuais classes governantes não forem desalojadas pelo proletariado industrial, ou enquanto os próprios hindus não forem bastante fortes para acabar de uma vez para sempre com o jugo britânico”. Entretanto, o ódio semeado pelos capitalistas no povo banto de Ruanda serviu para o quase extermínio de toda a nação.

Os colonizadores atribuíram privilégios e cargos de comando apenas para a elite dos tutsis, despertando o ódio crescente nos hutus. As divisões raciais inventadas mostraram-se mais perigosas quando a crise econômica em 1989 pesou sobre os trabalhadores com a súbita queda em 50% nos preços de café (principal produto de exportação). E como toda crise econômica no sistema capitalista, o colapso recaiu na prestação de serviços públicos que em Ruanda já eram precários. A população empobrecida se tornou miserável e ainda mais carente dos serviços básicos de saúde e educação.

O ódio racial instaurado e institucionalizado pelo governo belga revelou-se a armadilha mais criminosa da burguesia em Ruanda, que fortalecida pelo empobrecimento da maioria da população sustentou a formação de grupos extremistas em defesa de sua ‘raça’. Organizações criminosas de massacres bloqueavam estradas com livre uso de armas brancas. Com o terror instalado os perseguidos se refugiavam em países vizinhos e alguns recebiam ‘reforço militar’ inclusive com ‘estreita cooperação’ dos EUA.

Uma crise se estabelecia e desenhava o cenário de uma guerra civil de negros contra negros, permitindo atrocidades absurdas em conivência com o imperialismo e as ditas “instituições internacionais”. A luta racial imposta pelos capitalistas sempre desviou as necessidades mais sentidas da população em Ruanda, pois a política que enraizou o ódio racial entre trabalhadores da mesma cor reflete a mais pura degeneração do sistema capitalista.

Racismo e Capitalismo são duas faces da mesma moeda”

Marx já constatou na obra O Capital: “o sistema capitalista nasce exalando sangue pelos poros”. Embora a ciência já tenha comprovado que as diferenças icônicas das chamadas “raças” humanas são características físicas superficiais, que dependem de parcela ínfima dos genes humanos, a burguesia sempre resgata e recria o racismo para instrumentalizar sua política de divisão e opressão da classe trabalhadora.

O conceito de raça institucionalizado pelo Estado já pautou discussões no Brasil através do Estatuto de Igualdade Racial, com a proposta de divisão da nação de forma similar à criação artificial das “etnias” Tutsis e Hutus. Durante seus combates contra as políticas racialistas (cotas e outras) que se busca implantar no Brasil, o Movimento Negro Socialista (MNS), mostrou que estas políticas estavam na base do recente e trágico genocídio em Ruanda através da assassina divisão do povo em ‘raças’. Com a aprovação do Estatuto de Igualdade Racial as políticas de cotas se efetivam em todo país e o conceito de raça vai sendo imposto, mesmo com o exemplo catastrófico da história e o derramamento de sangue resultante das políticas raciais que dividiram da nações.

Nosso combate é na luta de classes, na defesa das conquistas históricas de todos os trabalhadores e contra toda e qualquer divisão racial de massas, que a exemplo de Ruanda, somente servirá para destroçar o país e seu povo. A matança generalizada em Ruanda que manchou de sangue a história da humanidade não deve ser esquecida. Tampouco pode servir de moeda de troca entre os governos em nome de acordos econômicos, como sugere o atual presidente Paul Kagame. Os ensaios pintados pela ONU nos Tribunais Internacionais não poderão condenar aqueles que outrora foram protegidos e vigiados pelo imperialismo.

O combate que está dado é contra o capitalismo e suas mazelas, contra toda forma de opressão e exploração do homem pelo homem. Como explica Marx: “Somente quando uma grande revolução social se apropriar das conquistas burguesas, o mercado mundial e as modernas forças produtivas (…) somente então o progresso humano terá deixado de assemelhar-se a esse horrível ídolo pagão que só bebia o néctar no crânio do sacrificado”. É para este combate que convocamos todos os movimentos a lutar lado a lado com a classe trabalhadora, contra toda forma de racismo e discriminação, pois como dizia Steve Biko: “Racismo e capitalismo são faces da mesma moeda”.

Convidamos os interessados a assistir alguns filmes sobre a questão:

– Hotel Ruanda (2004) dirigido por Terry Jorge

– A história de um massacre (2007) direção Roger Spottiwoode

– Abril sangrento (2005) HBO direção Raol Peck

– Tiros em Ruanda (2005) direção Michael Caton-Jones