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Comunidades terapêuticas: a (re)manicomialização privada da saúde mental com dinheiro público

As comunidades terapêuticas (CTs) surgem na década de 1950 na Inglaterra, inspiradas no modelo concebido pelo psiquiatra sul-africano Maxwell Jones que viveu em um período de intensas transformações político-sociais após a II Guerra Mundial. Foi um período em que se experimentou a pressão da classe trabalhadora europeia que obrigou os capitalistas a cederem direitos para não perderem o controle total do sistema. Essa pressão contribuiu para o contraponto ao modelo hospitalar existente na época para tratamento em saúde mental.

O início das CTs na Inglaterra foi marcado pelo fim da Segunda Guerra, por estatizações de empresas e pelo espírito de solidariedade entre os trabalhadores. No Brasil, as comunidades terapêuticas chegaram nas décadas de 1960 e 1970, ou seja, em meio à Ditadura Militar e no início dos anos de chumbo, período de grande avanço da abertura à iniciativa privada. Esse breve histórico demarca pontos de partida diferentes e nos ajuda a compreender o caráter das CTs no Brasil.

Basicamente o perfil de tratamento das CTs hoje segue o tripé ( I ) laborterapia – trabalho forçado -, ( II ) disciplina – rotina massificada e enrijecida – e ( III ) espiritualidade – imposição de práticas religiosas unilaterais que excluem ou abominam outras denominações. São instituições orientadas pela lógica do isolamento total nos parâmetros dos antigos manicômios.

Em geral, são espaços sem a obrigatoriedade de profissionais com formação técnica e equipe multiprofissional, com uma rotina de castigos, de repressão à orientação sexual, de violações dos direitos humanos, pautadas por uma visão moral do sujeito usuário de drogas e o total desprezo pela ciência. São inúmeras as denúncias de torturas, restrição de alimentação e medicalização como forma de punição e controle.

Observa-se, ainda, as contradições: a política de abstinência total ao passo que as pessoas são dopadas de medicamentos indiscriminadamente de modo que muitas pessoas se tornam dependentes de remédios; condições análogas ao trabalho escravo vendidas como processo terapêutico; o financiamento público à instituições de cunho religiosos – em sua maioria católicas e evangélicas – financiadas por um Estado laico. Em 2020, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) apontou diversos casos similares aos citados acima.

Se não fosse bizarro o suficiente, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) se embasou na Lei de Drogas 11.343/2006 do governo Lula para instituir a Resolução 1/2015. Sob os desmandos do governo Bolsonaro, o CONAD instituiu a Resolução 3/2020, que atribuiu ilegalmente ao próprio CONAD a competência de regulamentar o acolhimento de adolescentes, de 12 a 18 anos de idade, em comunidades terapêuticas, desrespeitando as diretrizes do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). A medida claramente representa uma estratégia das CTs de abocanhar mais recursos públicos à custa do aprisionamento da adolescência com roupagem de proteção e tratamento de adolescentes com problemas decorrentes do uso, abuso ou dependência do álcool e outras drogas. A ilegal Resolução 3/2020 previa “acolhimento/internação” de 12 meses durante o período de 24 meses, o que se configura mais em cumprimento de pena que um tratamento.

A guerra às drogas no Brasil

A guerra às drogas no Brasil é um fator importante para compreender a força que as comunidades terapêuticas ganharam no país. Cabe destacar que ambas – Guerra às Drogas e as Comunidades Terapêuticas – possuem em sua constituição, dentre outros aspectos, um viés preconceituoso e moralista. No Brasil a guerra às drogas se inicia em 1976, com a Lei 6.368, que dispõe “medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”.

Mas foi em meados dos anos 2000 que o crack começava ganhar a popularidade midiática que estimulou noções de perigo e destruição em relação à substância. Foi-se gerado medo na sociedade brasileira com suas notícias e reportagens que ajudaram a dar sustentação para a importação da fracassada política americana de guerra às drogas de Nixon para o Brasil. Junto a isso, nos anos de 2001 e de 2005 foram realizados dois levantamentos pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) que revelaram que o consumo do crack quase dobrou, o que naquela época foi encarado como uma epidemia.

Com isso, em agosto de 2006, o então presidente Lula sancionou a Lei de Drogas 11.343/2006, exatamente três meses após os ataques da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo. Em teoria, após a aprovação da lei a ideia era tratar o usuário como uma questão de saúde pública e o traficante de drogas com mais rigor. No entanto, quem acaba definindo quem é usuário ou traficante é o policial que atua arbitrária e impunemente validado por um sistema de justiça decadente e preconceituoso em relação à classe, raça e gênero.

A consequência disso associada à Lei de Drogas do governo petista foi o aumento explosivo nos números de encarceramento com penas exacerbadas sendo aplicadas em sua grande maioria a usuários e aos pequenos varejistas no mercado de drogas. Os grandes traficantes não costumam estampar as capas de jornais, como no caso do filho da desembargadora Tânia Garcia de Freitas Borges, presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul (TRE/MS), Breno Fernando Solon Borges, de 37 anos, preso com R$ 130 kg de maconha, fuzis e diversas munições em 2022, em Mato Grosso do Sul. E mesmo diante dos fatos, após alegação de Síndrome de Borderline pelos advogados o acusado foi liberado para “tratamento” em uma clínica de alto padrão com diárias de 30 mil reais em Atibaia – São Paulo.

Coloca-se o questionamento aqui não da possível condição de saúde mental, mas o tratamento dispensado pela posição social que o traficante “playboy” ocupa. Ao pobre filho de trabalhadores, a severa punição. Ao rico filho de desembargadora, “tratamento” em clínica alto padrão. A falácia da guerra às drogas é de fato uma guerra da classe dominante contra a classe trabalhadora.

O crescimento das comunidades terapêuticas

A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) tem por finalidade a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. A experiência de Reforma Psiquiátrica na Itália com Franco Basaglia no Hospital Psiquiátrico de Triste, na qual foram fechados os pavilhões e enfermarias psiquiátricas e criados outros serviços e dispositivos substitutivos ao modelo psiquiátrico foi uma das referências importantes do processo de Reforma Psiquiátrica brasileira iniciada em Santos (SP), por volta dos anos 1980/1990.

Anteriormente a isso, em 1978 os trabalhadores da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM) denunciaram os maus tratos no interior dos hospitais psiquiátricos e como consequência foram demitidos pelo regime militar. A partir da crise na DINSAM os trabalhadores criam em 1979 o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) e em 1987, o movimento antimanicomial.

Como podemos notar, a política de saúde mental que conhecemos hoje no Brasil é resultado da mobilizações e disputas políticas de usuários, familiares e trabalhadores da saúde. Os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (CAPS AD) surgem a partir da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Ao contrário das Comunidades Terapêuticas, os CAPS AD têm um caráter aberto e comunitário, constituídos por equipes multiprofissional e que atuam sob a ótica interdisciplinar.

Mesmo que a Reforma Psiquiátrica seja um movimento mundial de lutas de trabalhadores por transformações nas práticas de atenção ao sofrimento psíquico e mental, cabe destacar que, ainda, são reformas realizadas dentro dos limites do sistema capitalista.

Com a regulamentação dos Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (CAPS AD) em 2002, estes serviços começaram a ser implantados em todo território nacional. Ao invés de realizar investimentos para abertura e qualificação dos CAPS, a então, presidenta Dilma Rousseff incorporou as comunidades terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) por meio da Portaria 3.088 do Ministério da Saúde em 2011. A partir daí as CTs passaram a receber financiamento público, inclusive via Programa “Crack é Possível Vencer”. Esse programa ganhou apoio diante de narrativas, principalmente da mídia, de que estaria ocorrendo uma verdadeira “epidemia de crack”.

Até essa portaria, as CTs atuavam sem ligação ou investimento por parte do Estado, mas com o recebimento de recursos públicos o seu crescimento se tornaria inevitável. Neste percurso as CTs transitaram por diferentes ministérios em diferentes governos, o que evidencia a indefinição de objetivos, parâmetros e indicadores claros sobre sua eficácia. Ou seja, é uma aposta às cegas na iniciativa privada com dinheiro público.

Já no governo Bolsonaro, as CTs passaram para o Ministério da Cidadania e era comandado pelo deputado federal Osmar Terra (MDB-RS). O ministro não só defendia, mas, também, aumentou em 78% (de 280 para 497) o número de CTs em 2019. Segundo o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2016, 79% das 1.800 CTs foram criadas entre 1996 e 2015. Vale reforçar que a base política do ex-presidente Bolsonaro é formada em sua maioria por cristãos de igrejas evangélicas pentecostais e que, desta forma, investir nas CTs seria consequentemente um investimento na manutenção do seu poder como chefe de estado.

Porém, como descobrimos nas eleições de 2022, não foi o suficiente. Apesar da derrota eleitoral de Bolsonaro, a política de conciliação do governo Lula-Alckmin não demorou a dar continuidade na mesma perspectiva do governo anterior.

Em 20 dias de governo Lula-Alckmin, Lula sancionou a criação do Departamento de Apoio a Comunidades Terapêutica em 20/01/23, revelando seu compromisso com a burguesia e setores que ainda carregam princípios da agenda bolsonarista. Essa atitude vai na contramão da luta histórica dos trabalhadores no que diz respeito à atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas.

Em estudo do Ipea revela-se que 40% das comunidades terapêuticas têm orientação pentecostal, 27% são católicas e 10%, missionárias ou de outras denominações cristãs. De acordo a mesma fonte, 8 em cada 10 CTs são cristãs. E sem fiscalização adequada e regulamentação do poder público com embasamento científico, basicamente, qualquer pessoa pode abrir uma CT, receber pessoas e solicitar investimento público.

Ao mesmo tempo que os serviços públicos são precarizados sob inúmeros ataques e cortes de investimento, as CTs crescem em número e recursos, mesmo que não atendam às reais necessidades da população no campo da saúde mental. Mesmo com a saída do governo obscurantista de Jair Bolsonaro que trouxe um fôlego ao povo brasileiro, o medo do atual governo petista da instabilidade política gerada pela, dentre outras coisas, pauta de costumes, levou Lula a não realizar os enfrentamentos necessários como no caso das CTs.

Novamente o petista realizou manobras conciliadoras para não enfrentar a base evangélica de Bolsonaro ou até mesmo para tentar disputá-la. Lula migrou as comunidades terapêuticas do Ministério da Cidadania para o recém-criado Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas dentro do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. É o mesmo que mudar o nome “favela” para “comunidade” sem realizar mudanças estruturais nas periferias do Brasil.

O financiamento das CTs com verba pública

De acordo com o levantamento realizado pela Conectas Direitos Humanos e pelo CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), entre 2017 e 2020 as comunidades terapêuticas receberam o total de R$ 560 milhões do poder público. Conforme os dados do Ministério da Cidadania, as CTs receberam, em 2019, R$ 81,2 milhões; em 2020, R$ 132,3 milhões; e em 2021, R$ 134,3 milhões. Foram 65% de aumento em investimentos. Já os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) receberam apenas 11% de aumento no mesmo período. Junto a isso, em 2022 o governo Bolsonaro extinguiu o financiamento de custeio mensal para o programa de desinstitucionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

Em termos de desvios, durante a pandemia de COVID-19 (entre os anos de 2021 e 2022), o governo Bolsonaro pagou R$ 75 milhões às CTs com recursos reservados para o combate ao novo coronavírus. Os recursos foram transferidos pela Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred) do Ministério da Cidadania, então comandada pelo psiquiatra Quirino Cordeiro Júnior, que realizou os repasses sem licitação, regulamentação e fiscalização.

Em 2018, Michel Temer (MDB), repassou R$ 39,3 milhões às CTs. Importante notar que a  quantidade de vagas foi ampliada de 2,9 mil em 2019 para 16,9 mil em 2022. Vale lembrar que o financiamento público de tais entidades foi aprovado ainda no governo Dilma.

Ao analisarmos os milhões de reais repassados progressivamente para as comunidades terapêuticas sem nenhum tipo de critério técnico e científico em comparação com a redução progressiva de investimentos em serviços públicos, haja vista a Emenda Constitucional 95 que congelou investimento em serviços públicos por 20 anos, fica claro que não importa qual governo assuma o poder, todos no final das contas jogam o jogo que atende aos interesses do Estado burguês em detrimento às reais necessidades e interesses da classe trabalhadora de um serviço público e gratuito.

Mesmo que façam movimentos mais ou menos conciliadores, ainda escolhem o mesmo tabuleiro e avançam casas em direção à gestão da miséria humana para perpetuação do sistema capitalista rumo a barbárie. A lógica da hegemonia capitalista é a lógica do desmonte dos serviços públicos, da marginalização social, da privação de liberdade, da violência como política de Estado, da negação da ciência e da objetificação e mercantilização da pobreza.

A criação de um departamento neste governo que comporta uma ala que faz da saúde um negócio lucrativo é prova de qual política é a do governo Lula-Alkmin e, claramente, indica as tarefas dos trabalhadores e da juventude. A eleição do atual presidente com apoio da classe trabalhadora não é um cheque em branco, se faz necessária uma mobilização capaz de manter e avançar nas conquistas de serviços para a população.

– Não a concessão de dinheiro público à iniciativa privada!

– Pelo fim do Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas!

– Não a (re)manicomialização da política de saúde mental!

– Por serviços de fato públicos, gratuitos e para todos!

– Revogação da EC 95 (Teto de Gastos)! Fim do pagamento da dívida pública!

– Todo o dinheiro necessário para garantir uma saúde pública, laica, gratuita e para todos!