Foto: PCI

Como o mal menor ao estilo italiano destruiu a esquerda

Fred Weston, editor de marxist.com, explica como a esquerda italiana naufragou nas rochas do “mal menor”, a partir dos anos 1970. Com a votação antecipada para as eleições dos EUA em andamento e a enorme pressão da esquerda para votar em Joe Biden, a fim de expulsar Donald Trump, há lições valiosas a serem aprendidas com a experiência italiana.

Há uma enorme pressão sobre a esquerda nos Estados Unidos para que apoie Biden nas eleições presidenciais. Mesmo ex-socialistas linha-dura que nunca pensariam em votar nos Democratas no passado estão se atropelando para explicar como “as coisas estão diferentes. A diferença é, naturalmente, que “agora enfrentamos a ameaça do fascismo” na forma de Trump. Nunca tanta confusão foi semeada sob o sol!

Esta ideia é argumentada e defendida até por muitos que se dizem socialistas e gostariam de ver um terceiro partido emergir: um genuíno partido de esquerda. No entanto, por verem muito distante a perspectiva de tal terceiro partido, eles se satisfazem com a ideia de trabalhar dentro do Partido Democrata, apoiá-lo nas eleições, e assim por diante; e então, em algum momento distante no futuro, o condições serão criadas para uma ruptura com eles. É assim que a história vai.

O que falta aqui é uma visão mais global e de longo prazo do problema. É verdade que se Biden vence, Trump perde. Mas o que Biden fará se vencer? Ele levará a cabo uma política “progressista” em defesa da renda, dos empregos, da habitação, da educação e das pensões dos americanos da classe trabalhadora? Pergunte a uma criança de seis anos e ela saberá que este não é o caso. Biden é o candidato da classe dominante dos Estados Unidos e atacará os padrões de vida dos trabalhadores americanos comuns se vencer. E qualquer um que o apoiou será afetado por suas políticas. Como isso pode ser apresentado como uma estratégia para se construir um terceiro partido, um partido da classe trabalhadora nos Estados Unidos, ninguém sabe.

O que está por trás dessa abordagem é a ideia do “mal menor”, ou seja, que você vote no candidato menos ruim para impedir que a extrema direita assuma o controle do governo. Nos Estados Unidos, essa ideia está sendo colocada no contexto do debate à esquerda sobre como construir uma terceira força que possa quebrar o sistema bipartidário que dura décadas e oferecer uma alternativa genuína aos trabalhadores americanos.

A ideia do “mal menor”, no entanto, não é apenas um fenômeno americano. Apareceu muitas vezes em muitos países diferentes. A Itália é um excelente exemplo, um país que teve o maior Partido Comunista da Europa Ocidental, o PCI, com dois milhões de membros e 34% dos votos em seu pico, em 1976. Este artigo é sobre como o mal menor destruiu aquele partido outrora poderoso, e como a Itália acabou onde está agora, sem um genuíno partido operário de massas.

A década de 1970

Queremos nos concentrar principalmente no que aconteceu nas décadas de 1990 e 2000, mas também vale a pena oferecer um breve esboço do que aconteceu no início da década de 1970, porque o DNA do mal menor já havia infiltrado o pensamento dos líderes do antigo PCI, e foi repassado aos dirigentes não só do Partido Democrático de Esquerda (PDS), como também da Refundação Comunista, após a dissolução do PCI em 1991.

A posição do PCI nos anos 1970 era que, para evitar a ameaça do fascismo na Itália, era necessário formar uma grande aliança de todas as “forças democráticas” Cristão /Foto: Domínio público

O final da década de 1960 viu uma onda massiva de militância da classe trabalhadora na Itália que produziu o famoso Outono Quente de 1969. Isso abriu uma década de intensa luta de classes, que viu os sindicatos quase dobrar seu número de membros e o Partido Comunista (PCI) avançar em todas as eleições. Em 1976, o PCI conquistou mais de 34%: sua maior votação de todos os tempos. O movimento da classe trabalhadora parecia imparável.

A tragédia de toda a situação estava nas ideias elaboradas pela liderança do PCI na época de Enrico Berlinguer. A década de 1970 viu uma intensa luta de classes em todo o mundo, mas também viu derrotas, a mais importante das quais ocorreu no Chile em setembro de 1973, quando o general Pinochet lançou um golpe, esmagou as organizações trabalhistas, prendeu, torturou e matou milhares de pessoas e montou um ditadura militar. A liderança do PCI aproveitou os acontecimentos no Chile para defender uma mudança de estratégia e elaborou a ideia do “compromisso histórico”.

A posição básica era que, para evitar a ameaça do fascismo na Itália, era necessário formar uma grande aliança de todas as “forças democráticas”, principalmente com o Partido Democrata Cristão. Um exemplo de como Berlinguer argumentou seu caso é a seguinte citação de um artigo que ele escreveu, Alleanze sociali e schieramenti politici (Alianças sociais e alinhamentos políticos), publicado em Rinascita em 12 de outubro de 1973:

“… Como garantir que um programa de profundas transformações sociais – que necessariamente determina todo tipo de reação por parte dos grupos atrasados ​​– não seja realizado de forma a empurrar vastas camadas da classe média à hostilidade, mas, ao invés disso, receba, em todas as suas fases, o consenso da grande maioria da população”.

Ele alertou para o perigo de provocar “uma divisão real em dois do país, o que seria fatal para a democracia e esmagaria a própria base da sobrevivência do Estado democrático“. E alertou que, mesmo que a esquerda como um todo ganhe 51% dos votos, isso não será suficiente.

“É por isso que não estamos falando de uma ‘alternativa de esquerda’, mas de uma ‘alternativa democrática’, ou seja, da perspectiva política de uma colaboração e compreensão das forças populares de inspiração comunista e socialista com as forças populares de inspiração católica, bem como formações de outra orientação democrática”.

Berlinguer descreveu um cenário utópico onde “o privilegiado paga no grau necessário” e onde um processo de “redistribuição profunda e geral da riqueza” ocorreria sem desafiar o próprio capitalismo.

Vemos aqui como as fileiras do PCI estavam sendo preparadas para uma política de colaboração de classes por parte da liderança. O espantalho do “perigo do fascismo” foi usado para justificar a ideia de governar com os democratas-cristãos. O “mal menor” era um governo com os democratas-cristãos, o mal maior sendo o fascismo.

Assim, quando o governo democrata cristão de Andreotti passou a impor medidas de austeridade no final de 1976, os líderes comunistas no parlamento apoiaram e venderam a ideia de que este era um sacrifício necessário, mas temporário, que a classe trabalhadora tinha que fazer. Sem realmente fazer parte do governo de coalizão liderado pelos democratas-cristãos, os líderes do PCI inicialmente forneceram apoio externo a Andreotti, mas depois juntaram-se à maioria parlamentar do governo, assumindo total responsabilidade por suas políticas.

Longe de abrir um período de redistribuição da riqueza, os trabalhadores pagaram caro, enquanto os capitalistas continuaram a lucrar às custas da classe trabalhadora. Isso marcou o fim da popularidade crescente do Partido Comunista. Os líderes do PCI foram usados pela classe dominante entre 1976 e 1979 e depois foram descartados. Nas eleições de 1979, o PCI entrou no que seria um declínio de longo prazo, ganhando um pouco mais de 30%; caindo para menos de 30%, em 1983, e para menos de 27% em 1987. As camadas que haviam sido conquistadas no decurso do final da década de 1960 e do início da década de 1970 agora abandonavam o partido desiludidas.

Divisão no Partido Comunista

No entanto, o que aconteceria alguns anos depois seria um desastre ainda pior. Com o colapso do stalinismo na Europa Oriental e mais tarde na URSS, os líderes do PCI foram capazes de pressionar por algo que muitos deles sonhavam, mas que teria sido difícil de engolir nas fileiras do partido: o abandono do próprio nome de comunista. A ideia era que o declínio da popularidade do PCI se devia à sua identificação como comunista. O que faltava era algo mais “moderno”. Eles inventaram o nome de Partido Democrático de Esquerda (Partito Democratico della Sinistra, PDS).

Quando eles realizaram seu congresso em janeiro de 1991 para decidir sobre a mudança de nome, o partido se dividiu em dois, com uma ala recusando o abandono do nome comunista e então formando a Refundação Comunista. Na eleição de 1992, o PDS ganhou apenas 16,1%, com a Refundação ficando com pouco menos de 6%. A votação combinada das duas alas do ex-Partido Comunista havia caído para 21%. Claramente, não foi o nome do partido que causou seu declínio, mas anos de compromisso e colaboração de classe.

As coisas, no entanto, estavam prestes a mudar dramaticamente a política italiana ainda mais. Em 17 de fevereiro de 1992, o juiz Antonio Di Pietro mandou prender Mario Chiesa. Este era membro do PSI, o Partido Socialista Italiano, que na época tinha um governo de coalizão com os democratas-cristãos. Chiesa foi preso por aceitar um suborno substancial de uma empresa de limpeza. Para evitar que o escândalo afetasse o destino do PSI, seu então líder Bettino Craxi tentou distanciar Chiesa do partido, chamando-o de ladrão.

Chiesa não gostou muito desse tratamento – já que tinha plena consciência de que a corrupção chegava à cúpula do partido – e começou a despejar acusações sobre muitos líderes partidários envolvidos na corrupção. Este não é o lugar para analisar o que ficou conhecido como o escândalo Tangentopoli (literalmente, “Suborno”), mas foi o início da operação Mani Pulite (“Mãos Limpas”), que veria altos líderes, não só do Partido Socialista, mas também do principal partido burguês, a Democracia Cristã, expostos à corrupção desenfreada. O resultado final foi que esses partidos entraram em colapso quando as massas se afastaram deles com indignação.

O PSI desapareceu muito rapidamente, pois estava no centro do escândalo de corrupção, com seu líder Bettino Craxi preferindo ir para o exílio na Tunísia. A Democracia Cristã sofreu enormes reveses eleitorais nas eleições locais de 1993, ganhando apenas 9% em Milão, 12% em Roma, 12% em Turim e 9,9% em Nápoles. Além de Milão, onde a Liga do Norte fez um grande avanço, a maioria das grandes cidades foram conquistadas por coalizões nas quais o partido principal era o PDS, e às vezes a Refundação Comunista também fazia parte da aliança.

Um vácuo emergiu à direita. Os principais partidos que a burguesia italiana usara para governar a Itália haviam quase entrado em colapso. Pelo resultado das eleições para o conselho de 1993, parecia que as coalizões envolvendo o PDS como o partido principal eram as únicas opções que restavam à classe dominante. Surgiram artigos na imprensa burguesa séria avaliando essa possibilidade. Para alguns setores da classe capitalista italiana, entretanto, a ideia de o ex-Partido Comunista estar à frente do governo era como um pano vermelho na frente de um touro.

A ascensão de Berlusconi

Foi então que Berlusconi, com enormes recursos financeiros baseados em sua rede de negócios, lançou um novo partido, o Forza Italia, e venceu as eleições de março de 1994 com cerca de 43% dos votos em uma aliança com a Liga do Norte e a Alleanza Nazionale . A coalizão que incluiu o PDS e a Refundação conseguiu reunir apenas 34%.

Alleanza Nazionale só havia sido lançado como um novo partido pouco antes das eleições de 1994. Seu principal componente era o Movimento Social Italiano (MSI), o antigo partido neofascista, e seu líder, Gianfranco Fini, havia sido líder do MSI. O antigo MSI era marginal para a política italiana, considerado herdeiro do antigo Partido Fascista de Mussolini, e sua votação foi de cerca de 5 a 6% na maioria das eleições. Mas em 1994, com sua imagem renovada como Alleanza Nazionale, saltou para 13,4% e tornou-se parte integrante do primeiro governo Berlusconi.

A vitória de Berlusconi deu novo fôlego à ideia do mal menor / Foto: Domínio público

Isso enviou ondas de choque pela esquerda e falou-se muito de uma ameaça fascista iminente. Surgiram artigos sobre um novo regime que duraria pelo menos 20 anos. O jornal Il Manifesto (um importante jornal diário, que se tornou o ponto de referência para a esquerda comunista do PDS e da Refundação) chegou a comparar a ascensão de Berlusconi com a marcha de 1922 em Roma que levou o regime fascista de Mussolini ao poder.

Tudo isso carecia de qualquer senso de proporção e de qualquer análise séria do que era a Alleanza Nazionale. Não era um partido fascista, mas havia se tornado um partido conservador de direita. Fini havia entendido que poderia ser capaz de capturar alguns dos eleitores de direita que estavam abandonando a democracia cristã, o que ele fez com sucesso. Ao fazer isso, ele rompeu publicamente com os verdadeiros fascistas dentro do MSI, que formaram um partido de extrema direita mais marginal.

O clima no país, entretanto, era de medo real a uma tomada do poder pela extrema direita. O dia 25 de abril marca o aniversário da queda do regime de Mussolini em 1945 e é celebrado como feriado nacional. Com o passar dos anos, as manifestações antifascistas se tornaram comemorações quase rotineiras, com poucos participantes. Mas, desta vez, em 25 de abril de 1994, algumas semanas após as eleições, mais de 500 mil pessoas participaram da principal manifestação em Milão.

O mal menor levanta a cabeça novamente

E é aqui que o mal menor levanta sua cabeça mais uma vez. Desta vez, teve um impacto direto na sorte da Refundação Comunista. Os dois principais blocos da política italiana passariam a ser conhecidos como “Centro-direita” e “Centro-esquerda”: como se quisesse dizer que a direita e a esquerda já não existiam mais! A centro-direita era a aliança em torno de Berlusconi. A centro-esquerda estava ancorada em torno do PDS, mas também incluía vários partidos burgueses.

Em poucos meses, o primeiro governo Berlusconi – com seu ataque às pensões, cortes nos gastos sociais e o anúncio de uma série de privatizações – provocou uma mobilização massiva de trabalhadores, que viu greves espontâneas das fábricas e outros locais de trabalho, culminando em uma das maiores manifestações que a Itália já viu, em 12 de novembro de 1994, com mais de 1,5 milhões de participantes. Pouco depois, a Liga do Norte retirou seu apoio a Berlusconi e em dezembro ele foi forçado a renunciar.

No entanto, não houve novas eleições. A classe dominante italiana recorreu ao que se denominou de “governo tecnocrático”, composto por “especialistas” supostamente apolíticos, liderado pelo ex-diretor-geral do Banco da Itália, Lamberto Dini, que também havia sido ministro da Fazenda de Berlusconi. Este governo ainda precisava de algum tipo de apoio no parlamento e isso era fornecido pela chamada centro-esquerda, embora só tivesse maioria no Senado, mas com a Liga do Norte também agregando seu apoio, foi capaz de durar até a primavera de 1996. Esse governo conseguiu, com o acordo dos sindicatos, aprovar uma lei que alterava a forma de cálculo das pensões como forma de cortar gastos públicos. Isso levou a um grande movimento contra o governo Dini e ao crescimento da Refundação Comunista entre uma importante camada da classe trabalhadora.

Em abril do mesmo ano, novas eleições foram realizadas nas quais a Centro-Esquerda se posicionou sob o nome de “Ulivo” (Oliveira), uma coalizão formada pelo PDS e várias formações burguesas menores, como o Partido Popular (ex-Democratas-cristãos) e os republicanos. Essa coalizão venceu e formou o próximo governo, com Romano Prodi como primeiro-ministro. Prodi foi um ex-ministro e membro dos democratas-cristãos e também chefiou o Instituto para a Reconstrução Industrial (IRI) o conselho da empresa estatal, e supervisionou várias privatizações. Ele se identificou com a austeridade que seria promovida pelo governo de centro-esquerda.

A Refundação Comunista ficou fora de “Ulivo” por conta própria e ganhou respeitáveis ​​8,6% nas eleições de 1996. Tinha, no entanto, feito um pacto eleitoral com “Ulivo” sobre o que fazer e não fazer, de forma a maximizar o seu número de deputados.

Foi então que começaram a surgir os verdadeiros problemas para a Refundação Comunista. Após as eleições de 1996, os líderes do partido decidiram apoiar externamente o primeiro governo Prodi. A ironia dessa situação é que aquele governo foi capaz de fazer muito mais para a classe capitalista da Itália do que qualquer um dos governos anteriores, em termos de privatizações, precarização do trabalho, cortes nos gastos com previdência social e assim por diante.

A Refundação estava sob enorme pressão do PDS e da “opinião pública” burguesa para continuar fornecendo apoio parlamentar ao governo de coalizão (mais uma vez, para evitar o retorno da direita). Os debates internos no partido foram dominados por esta questão candente: devemos continuar a apoiar o governo de Prodi? O argumento usado para justificar a continuidade do apoio foi mais ou menos o seguinte: “se fizermos cair o governo Prodi, então Berlusconi – com seus aliados fascistas – voltará”.

Os marxistas na Refundação (reunidos em torno do jornal Falcemartello, o então jornal do CMI na Itália) advertiram que não apenas o partido pagaria um alto preço por isso, como também Berlusconi voltaria precisamente por causa das medidas de austeridade de Prodi. Apesar da hesitação da liderança sobre esta questão, no entanto, a pressão estava crescendo dentro das fileiras do partido, que estavam encontrando cada vez mais dificuldade para engolir essa política.

Em outubro de 1998, a liderança do partido – depois de ter apoiado muitas leis anteriores semelhantes – finalmente decidiu retirar o apoio ao orçamento de Prodi. Isso provocou uma importante separação do partido do antigo líder Cossutta e sua facção. Embora Prodi tenha saído de cena, a coalizão “Ulivo” continuou a governar a Itália até 2001, com a maioria dos parlamentares da Refundação juntando-se ao governo depois de se separarem do partido.

Eleições de 2001, o primeiro aviso

Nas eleições de 2001, o voto de Refundação caiu para 5%. Este foi o primeiro sinal do que estava por vir. Mas o que foi ainda pior foi que Berlusconi fez um grande retorno naquele ano, vencendo as eleições com 367 deputados contra 248 de “Ulivo”.

Usando a lógica do mal menor – isto é, que era melhor apoiar a centro-esquerda, mesmo que isso significasse apoiar muitas de suas medidas de austeridade, do que permitir que Berlusconi e seus “fascistas” voltassem – a liderança da Refundação fracassou em todas as frentes, não conseguiu impedir o retorno de Berlusconi, desmoralizou suas bases e perdeu um número significativo de seus parlamentares. Aqui vemos como o mal menor, em vez de fortalecer a esquerda – na forma da Refundação – foi um fator chave em seu enfraquecimento posterior.

Entrar no governo significava que a RPC estava contaminada pelos orçamentos reacionários que o governo impôs contra os trabalhadores, destruindo a reputação do partido /Foto: Soman

Alguém poderia pensar que, a esta altura, a direção do partido teria aprendido uma lição, que teria tirado as conclusões corretas e dado uma guinada para a esquerda, abandonando todas as formas de colaboração de classe. Pelo contrário! Na metade da legislatura, em outubro de 2004, o partido voltou a se juntar à coalizão de centro-esquerda na oposição, mais uma vez com Prodi como líder.

Nas eleições gerais de 2006, o PRC fez parte da coalizão de centro-esquerda, agora conhecida como “A União”, que venceu por uma margem estreita contra a coalizão de Berlusconi. O partido recebeu 5,8% dos votos e 41 deputados. Bertinotti, o líder do partido, foi recompensado pelos seus serviços ao ser eleito presidente do Parlamento. Como se não bastasse, o partido, desta vez, aderiu ao governo, com Paolo Ferrero como ministro da Solidariedade Social, juntamente com vários subsecretários.

Como parte do governo de coalizão, o partido foi agora chamado a votar a favor dos orçamentos, mas foi ainda mais longe com os parlamentares da Refundação votando para refinanciar as operações militares da Itália no Afeganistão e enviar tropas para o Líbano. Tudo isso deixou um gosto amargo na boca de muitos que votaram no partido. Eventualmente, a maioria de Prodi se fragmentou, o governo caiu em janeiro de 2008 e as eleições foram convocadas para abril.

A liderança da Refundação desta vez foi para as eleições dentro de uma coalizão de esquerda chamada Esquerda Arco-Íris, que incluía o grupo que se dividiu à direita do partido alguns anos antes, bem como os verdes. A votação combinada das quatro formações que compunham a Esquerda Arco-Íris foi de 10% nas eleições anteriores. Desta vez, eles ganharam apenas 3,%  e nenhum Parlamentar, um desastre absoluto!

Após a derrota eleitoral, foi convocado um congresso extraordinário do partido. A maioria da direção promoveu a ideia de liquidar o partido em uma formação “mais ampla”, mas não conseguiu obter a maioria absoluta. O congresso de 2008 representou a última possibilidade de dar uma guinada à esquerda nas políticas do partido, mas as expectativas em torno da virada à esquerda logo se frustraram. O partido sofreu outra cisão à direita, promovida pelos então dirigentes Bertinotti e Niki Vendola.

Desde então, os líderes da Refundação têm procurado desesperadamente maneiras de voltar ao parlamento. Em 2013, em mais uma aliança de esquerda, a Revolução Civil, as coisas foram ainda piores, com a lista conjunta ganhando apenas 2,2% e novamente sem parlamentares. Isso foi seguido nas eleições gerais de 2018, quando a Refundação se candidatou à lista eleitoral do Poder para o Povo, que conquistou miseráveis 1,1% dos votos e nenhuma cadeira.

O capítulo final

Este foi o capítulo final do inglório “mal menor” – ao estilo italiano! Essa ideia não apenas fracassou em impedir Berlusconi, que governou a Itália novamente entre 2008 e 2011, mas também destruiu a Refundação no processo. Na época da divisão no antigo Partido Comunista entre a Refundação e o PDS em 1991, o partido tinha 112 mil membros (atingindo um pico de mais de 130 mil em 1997), mas agora foi reduzido para menos de 10 mil membros, no papel, com seus ativistas de base em número muito menor do que isso.

Em julho de 2019, no entanto, de acordo com dados divulgados pelo Comitê Nacional, os “certificados”, ou seja, os recenseados, eram 5.178 em 2017 e 2.191 em 2018, o que, se confirmado, significaria que o que antes era uma força significativa à esquerda com mais de 40 deputados, foi agora reduzido a uma seita insignificante que vive à margem da política italiana.

Eles não quiseram ouvir quando a ala marxista do partido estava martelando com a ideia de que o partido não deveria apoiar a centro-esquerda, pois isso significava apoiar todas as políticas anti-classe trabalhadora que esses governos impuseram. Eles não quiseram ouvir quando explicamos que, se o partido continuasse nessa direção, longe de deter Berlusconi, eles ajudariam a preparar as condições para seu retorno com ainda mais votos. Foi exatamente isso o que aconteceu, e mais de uma vez.

Na Itália, o mal menor destruiu a esquerda e colocou a classe trabalhadora em uma posição de não ter um partido que pudesse chamar de seu. A direita na Itália conseguiu transmitir a uma parte significativa do eleitorado uma mensagem de que a esquerda defende banqueiros e empresários, corta pensões e impõe austeridade. Isso não é difícil de se fazer, considerando o número de governos de centro-esquerda que vimos nos últimos 20 anos ou mais, todos os quais aplicaram austeridade draconiana.

Outro elemento importante nesta equação é a questão do fascismo e se ele é uma ameaça real na Itália hoje. O erro começou quando o antigo MSI se metamorfoseou em Alleanza Nazionale, e quando este então emergiu como membro do primeiro governo de coalizão de Berlusconi em 1994. O erro foi acreditar que um regime fascista poderia chegar ao poder.

Já se passaram 26 anos desde o primeiro governo Berlusconi, e ainda não vemos um regime fascista chegando. Quando Mussolini fundou seu partido, em 1919, ele chegou ao poder apenas três anos depois. Mas isso aconteceu porque a classe trabalhadora já havia sofrido uma grande derrota em 1920. Além disso, a base social do fascismo era muito mais forte do que é hoje.

O equilíbrio das forças de classe hoje – quando o campesinato, pequenos lojistas e pequeno-burgueses em geral, foram reduzidos a uma minoria na sociedade – não permite a criação de uma força fascista de massas capaz de destruir as organizações da classe trabalhadora. Isso não significa que as pequenas organizações fascistas não sejam um perigo para o movimento operário, visto que podem realizar ataques físicos a militantes individuais, mas não podem se tornar uma força social de massa como nos dias de Mussolini.

Salvini, o líder da Lega (a velha Liga do Norte que se reciclou como partido nacional), usa uma retórica racista e fanática, mas não está em posição de lançar um movimento de massa. A experiência da Grécia deve ser estudada. O Amanhecer Dourado também foi apresentado como um sintoma da crescente reação fascista. Onde está hoje? A burguesia grega, longe de usar os dirigentes do Amanhecer Dourado, mandou prendê-los, temendo a radicalização da classe trabalhadora e da juventude após o assassinato do músico Pavlos Fyssas. Isso não foi fruto de um pensamento progressista de sua parte – sua própria história demonstra amplamente que eles não teriam escrúpulos em adotar medidas repressivas. Mas, dadas as tradições e a força da classe trabalhadora grega, eles sentiram que o Amanhecer Dourado, se permitido a continuar com suas provocações, poderia desencadear uma reação massiva por parte dos trabalhadores. Então, eles usaram os líderes reformistas do SYRIZA para administrar a situação, ou seja, os líderes reconhecidos da classe trabalhadora, já que estes tinham autoridade para conter os trabalhadores e a juventude. E, tendo-os usado e parcialmente desacreditado, eles trabalharam para trazer de volta a Nova Democracia de sua confiança.

Se os líderes da Refundação tivessem uma compreensão marxista da situação, eles não teriam cometido os erros que cometeram. Eles teriam entendido que, já em 1994, era necessário resistir às pressões da opinião pública burguesa, “ir contra a corrente” e manter uma posição independente. Se o tivessem feito, teriam colhido, mais tarde, os benefícios maciçamente. Mas eles foram incapazes de ter uma visão mais ampla do processo. Eles estavam cegos pela situação imediata e não podiam ver quais seriam os efeitos de suas políticas colaboracionistas sobre a sorte do partido.

O mal menor e a colaboração de classes fluem diretamente do fato de que esses líderes reformistas só podem ver a mudança em termos do que é possível dentro do sistema capitalista e dentro da aritmética da política parlamentar. Eles são incapazes de agir de forma a mobilizar os milhões de trabalhadores e jovens em seus locais de trabalho e em seus bairros. Isso se aplica não apenas aos reformistas de direita, mas também aos reformistas de esquerda.

Lições para os Estados Unidos

Essa experiência influencia os eventos atuais nos Estados Unidos. A esquerda nos Estados Unidos, como vimos, está debatendo qual abordagem deve ter em relação a Biden, se ele deve ser apoiado ou não. Bernie Sanders lançou todo o seu peso em favor de Biden.

A experiência italiana oferece um aviso severo para a esquerda dos EUA hoje /Foto: Domínio público

Em um discurso recente em Lebanon, New Hampshire, Sanders apoiou totalmente Biden, semeando ilusões de que ele defenderá os americanos da classe trabalhadora. Aqui está um pouco do que ele disse:

“Quando três pessoas possuem mais riqueza do que a metade inferior deste país; três pessoas; isso não é aceitável. Sob Joe Biden e sob um Congresso Democrata, vamos mudar tudo isso. (…) Também não há dúvida de que as propostas econômicas que Joe Biden está apoiando são fortes e irão percorrer um longo, longo caminho para melhorar a vida das famílias trabalhadoras. (…) Há outra coisa que Joe entende. E isso é que, em meio à pior crise econômica de nossas vidas, precisamos criar milhões e milhões de empregos sindicais bem remunerados”.

O que devemos nos perguntar é: que tipo de programa Biden realmente vai realizar se for eleito? Basta fazer a pergunta para obter a resposta correta! Biden, como explicamos, é o candidato preferencial do establishment americano e, portanto, uma vez no cargo, ele levará em conta os interesses da classe dominante dos Estados Unidos; ele vai atacar os padrões de vida da classe trabalhadora. Ele nem mesmo faz um esforço para esconder as políticas com as quais se compromete depois de eleito.

E o que precisa ser enfatizado é que qualquer um que o apoie será inevitavelmente manchado por essas políticas. Portanto, embora o “mal menor” possa parecer uma opção atraente no curto prazo, não ajuda a construir uma terceira força, baseada na classe trabalhadora, nos Estados Unidos, que é o que os trabalhadores americanos precisam desesperadamente .

Além disso, se a esquerda está contaminada pelas políticas de Biden, então Trump, ou alguém como ele ou ainda pior, voltará em um estágio posterior. Votar no mal menor não impede o “mal maior”, apenas prepara o terreno para fortalecê-lo posteriormente.

Na Itália, o mal menor destruiu o outrora poderoso Partido Comunista. Como pode ajudar a fazer avançar a classe trabalhadora dos EUA em direção à sua própria voz independente? Estudamos experiências como a descrita neste artigo, não por interesse acadêmico, mas porque nos ajudará a evitar erros desnecessários no futuro.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM