Chile: que falta para derrubar Piñera e seu regime?

O Chile vive uma nova jornada de greve geral, como parte do levantamento contra o regime que já dura quase 40 dias de luta. O governo continua intensificando a repressão (denunciada por organismos internacionais) e inclusive modificou a legislação outorgando-se mais poderes para utilizar o exército “para a proteção de prédios públicos” sem necessidade de decretar o estado de emergência, enquanto trata de desmobilizar o movimento através de “acordos” e promessas de negociação. As condições estão dadas para derrubar Piñera, mas o que está faltando?

A tentativa do governo de Piñera de desativar a revolta com o “Acordo de Paz e Nova Constituição”, do qual participaram todos os partidos do arco parlamentar (com exceção do PCC), além de ser uma armadilha nos termos em que foi colocada, foi rejeitada pelo movimento de forma frontal. A União Portuária e o Colégio de Professores foram os primeiros a se opor e os acompanhou, em 16 de novembro, uma declaração conjunta da Mesa de Unidade Social. A assinatura do acordo por parte do dirigente da Frente Ampla, Boric, também gerou um amplo rechaço, com centenas de militantes assinando declarações críticas, exigindo sua renúncia como deputado e abandonando a militância em CS, incluindo entre eles o prefeito de Valparaíso e dirigente nacional da FA, Jorge Sharp.

A ideia do débil governo de Piñera era a de fortalecer sua base de apoio envolvendo a oposição, mas, na realidade, o que obteve foi o aumento da rejeição geral a todo o regime, incluindo aos partidos da antiga Concertación.

A recente pesquisa do Barômetro do Trabalho demonstra a amplitude e profundidade da falta de legitimidade das instituições do parlamentarismo burguês. Uns 90% dos entrevistados dizem não estar satisfeitos com a democracia (47% não estão nada satisfeitos) e 89% dos entrevistados “assinalaram que se governa em benefício dos grupos poderosos”. Os que desaprovam a gestão do governo somam 83%, mas todos os partidos sofrem níveis de desaprovação generalizada, desde os 77% do governante UDI, até os 70% da própria Frente Ampla. Numa escala de 1 a 100, somente aprovam os movimentos sociais (58), enquanto os partidos políticos e o parlamento obtêm apenas 4 cada um deles. São 85% os que se mostram favoráveis às mobilizações, apesar da campanha constante de criminalização e manipulação da informação por parte da grande mídia e do próprio governo. Do que estamos falando na realidade, se cabe alguma dúvida, é de uma profunda crise de regime.

Um aspecto muito interessante dessa pesquisa é o fato de que, embora quando se pergunta diretamente, 82% afirmem que o Chile necessita de uma nova constituição (e 58% acreditam que deve ser elaborada por uma Assembleia Constituinte, e não por um grupo de especialistas), na realidade, quando se faz uma pergunta aberta sobre quais são as demandas do protesto, 51% mencionam melhorias salariais; 44%, o valor das pensões e aposentadorias; 38%, a revogação das AFP; 37%, maior orçamento para a saúde; 27%, a gratuidade da educação e só 10% uma nova Constituição.

Isso ratifica o que já explicamos: para as massas implicadas no levantamento, a questão da Constituição é vista como um meio para se levar à frente uma mudança radical de todo o sistema; o que as mobiliza é a acumulação das agressões aos salários, às pensões, à saúde, à educação etc. No entanto, essas demandas não se alcançam simplesmente escrevendo uma nova Constituição. O obstáculo é o sistema capitalista em crise e só mediante a expropriação dos grandes meios de produção, das minas, dos bancos, da grande patronal e das multinacionais se pode garantir um salário digno, uma pensão digna, saúde e educação gratuitas.

Daí que a classe dominante, embora tema as implicações de uma Assembleia Constituinte dentro de um contexto de questionamento tão forte do regime, possa em dado momento, ante o temor de enfrentar uma derrubada revolucionária, chegar a convocar uma Constituinte. Sua preferência, como se coloca no “Acordo pela Paz”, é por uma Convenção Constituinte engessada e sob controle. Mesmo assim não se pode descartar que, para dar um fim ao levantamento, possam chegar a fazer mais concessões democráticas nos termos dela.

A greve nacional progressiva que foi convocada pela Unidade Social, embora tenha um amplo apoio, sofre de duas limitações. A primeira delas, o caráter um pouco confuso da convocação. Em um primeiro momento se anunciou a greve de alguns setores para o dia 25 de novembro (portuários e outros) e greve geral para os dias 26 e 27 de novembro. Mas nos informes mais recentes da MUS insiste-se na greve geral do dia 26, sem mencionar o dia 27. Para avançar, o movimento necessita de uma direção clara e com atitude decidida.

Mas a principal debilidade é justamente a que assinalamos anteriormente. Convoca-se uma greve geral por um documento de demandas e por uma Assembleia Constituinte, mas as organizações convocadoras recusam deliberadamente a palavra de ordem que domina as ruas: “Fora Piñera”. Ainda mais: a Mesa de Unidade aceitou se reunir com Piñera a partir de 27 de novembro, para discutir o documento de demandas. O governo, nas cordas e sem poder controlar a situação há mais de um mês do início da revolta, não só utiliza a repressão, como também trata de enredar o movimento em todo tipo de armadilhas de negociações e acordos.

O governo está na defensiva. Vários organismos internacionais de direitos humanos (não conhecidos por suas simpatias revolucionárias, muito pelo contrário) denunciaram publicamente os abusos da repressão. Já existem quase 2 mil feridos e mais de 7 mil presos documentados pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile desde que se iniciou o levantamento; deles, 437 feridos por armas de fogo e 1.180 por disparos de espingardas, mais de 200 pessoas com danos oculares, ademais de uma infinidade de denúncias de torturas e abusos sexuais a presos. Na realidade, se não fosse por não ter um substituto claro, a burguesia já teria substituído Piñera por outro governo mais “à esquerda”, com um conteúdo “mais social”. Em vez disso, tratou de lançar a carta da “unidade nacional” com a adesão de todos os partidos parlamentares (menos o PCC).

A revolta popular deu mostras de uma enorme vitalidade, resiliência e valentia. A juventude da Primeira Linha organizou a defesa das marchas contra a brutalidade policial. As mobilizações continuam sendo massivas e há reuniões amplas de assembleias e coordenadorias territoriais, cabildos autoconvocados etc. Nas últimas jornadas vimos o aumento dos ataques a quarteis policiais (cinco na própria segunda-feira, dia 25), a resposta mais organizada à brutalidade policial, nota-se que o povo nas ruas não só está farto da violência dos carabineiros, como também começa a perder o medo.

Mas, inevitavelmente, surge a pergunta: por que Piñera ainda não caiu? Que está faltando? Em primeiro lugar é necessária uma estratégia ofensiva. A continuação de manifestações diárias e barricadas e enfrentamentos com a polícia, de greves gerais parciais e limitadas no tempo, corre o risco de produzir desgastes e cansaço ante a ausência de uma perspectiva clara de como avançar. O que pode dar ao levantamento um novo gás é a incorporação dos setores decisivos da classe trabalhadora. Somente dessa forma se pode paralisar o país e por em cheque o governo patronal. É necessário um plano de lutas que culmine em uma greve geral indefinida com o objetivo claro de derrubar o governo e todo o regime.

Para isso é necessário que o movimento se dote de uma estrutura democrática. A Mesa de Unidade Social se colocou à cabeça do movimento, mas, até o momento, se compõe somente de representantes das distintas organizações e não há nenhum mecanismo que a torne responsável ante o próprio movimento. Há que se avançar na coordenação dos cabildos e assembleias, em cabildos regionais mediante porta-vozes eleitos e revogáveis a qualquer momento. Deve-se convocar uma grande assembleia nacional de cabildos e assembleias.

Ao mesmo tempo, é necessário organizar a autodefesa do movimento. Já ocorreram vários casos de pessoas vinculadas ao movimento (a pantomimeira Daniela Carrasco, uma jornalista comunitária em Santiago e um ativista social em Antofagasta) que apareceram mortos em circunstâncias suspeitas. Em 25 de novembro, carabineiros invadiram a sede do PC na comunidade de Calama, Antofagasta, e levaram preso ao secretário do partido. A juventude da Primeira Linha se deu a tarefa de defender as marchas contra a repressão. Há que se ampliar essa organização, juntando a juventude ao movimento organizado dos trabalhadores, dos portuários, dos mineiros etc., mediante comissões de segurança e proteção como a que já existe em Antofagasta.

Como afirmou muito bem Gustavo Burgos em um artigo em El Porteño:

“Se as assembleias e cabildos se unirem nacionalmente, estarão lançadas as bases não só de uma nova forma de Governo e Constituição. Tal unificação dará, na realidade, corpo a um governo dos explorados, abrindo as portas da revolução que se iniciou no Chile desde 18 de outubro. Com essa unificação do movimento serão criadas as ferramentas para a mudança, desde os alicerces, da totalidade da estrutura social. Tal mudança dará um fim à ordem capitalista, colocará o poder nas mãos dos trabalhadores e explorados e será o novo Chile a República dos Cabildos e Assembleias, o amanhecer vermelho e a libertação popular, cujas bandeiras são levantadas por milhões hoje em dia nas ruas. Essa é a tarefa, essa é a revolução; nessa luta desde as bases haveremos de vencer” (A solução à crise: que governem os cabildos e assembleias)

Uma vitória revolucionária, possível, no Chile teria um impacto em todo o continente, já sacudido por revoltas revolucionárias e mobilizações de massas no Haiti, Equador, Colômbia etc. Para isso, também é urgente forjar uma direção revolucionária que esteja à altura das tarefas que o levantamento enfrenta.

 

Tradução de Fabiano Leite.