Argentina: sobre a construção de um Partido de Esquerda Unificada e a segunda carta do PTS

Desde que lançou a convocatória para um Partido de Esquerda Unificada, no ato no estádio do Argentinos Juniors, o Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS)[1] publicou duas cartas delineando uma série de ideias acerca de como deveria ser estruturado esse partido. Também anunciou uma série de reuniões com as organizações com que compartilha a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT)[2], das quais ainda não se tem conhecimento das conclusões. Isto é tudo o que se avançou desde 6 de outubro até dezembro de 2018.

A partir da Corriente Socialista Militante (seção argentina da Corrente Marxista Internacional), tratamos com detalhe esta iniciativa. Em primeiro lugar respondemos depois do discurso de Nicolás del Caño, anunciando a proposta, como nossa carta: Atos no Argentinos Juniors do Partido dos Trabalhadores Socialistas: dizemos sim à conformação de um grande partido de esquerda unificada!

Nesta carta manifestamos nosso acordo com a iniciativa e assinalamos: “Esperando que tal convocatória comece com os passos necessários e firmes para sua materialização, dizemos a vocês companheiros: das palavras aos fatos”!

Como mencionamos, em seguida do lançamento da proposta, o PTS publicou dois artigos. O primeiro no sábado, 13 de outubro: Avancemos para um partido unificado da esquerda, da classe trabalhadora e socialista.

A este respondemos com nossa carta: Resposta à convocatória do PTS para a formação de um partido de esquerda unificada.

Nesta carta levantamos uma séria de pontos que consideramos importantes debater. Como deve ser a participação dos parlamentares da FIT no parlamento da democracia burguesa, onde destacamos: “estamos convencidos da necessidade de por em discussão o papel que devem desempenhar os parlamentares revolucionários. Devemos colocar como prioridade que, em cada episódio dos deputados de esquerda, suas intervenções desnudem o caráter de classe das instituições burguesas e de seus políticos funcionários do grande capital”.

Também colocamos o debate acerca da melhor tática para se conectar com as massas que ainda não se sentem contempladas pelo programa revolucionário. E, nesse sentido, fizemos uma série de considerações acerca da tática da Frente Única, assim como uma série de considerações em relação ao conceito de “independência de classe”.

Em relação à Frente Única, assinalamos desde nosso campo que:

A pergunta, companheiros, então, é como chegar às centenas de milhares de trabalhadores e jovens que não se sentem contemplados com nossas organizações de esquerda, como estabelecemos laços comuns e, desta maneira, materializamos o programa revolucionário com os milhões que não nos veem como uma alternativa? [E acrescentamos:] é um erro e uma manipulação do conceito de “independência de classe” convocar mobilizações apelando somente àqueles que se identificam com o que podemos denominar “esquerda”, deixando de fora organizações políticas e sindicais que organizam centenas de milhares de trabalhadores e jovens.

Acreditamos que estas são questões que devem ser abordadas com a palavra de ordem de “Assembleia Constituinte Soberana e Democrática”, que forma parte de um debate com outros setores da esquerda que vem desde 2002. Compartilhamos aqui seu conteúdo.

O PTS aponta que a palavra de ordem por uma Assembleia Constituinte permitiria acelerar a experiência com a democracia burguesa entre aqueles setores que ainda se veem representados por ela, permitindo-lhes chegar a conclusões revolucionárias.

A pergunta que surge é: de que maneira isso aconteceria? Já que em todo caso a esquerda agrupada em torno da FIT não possui força suficiente para convocar esta assembleia e, muito menos, para controlá-la. Se contasse com força suficiente para impor à classe dominante uma assembleia deste tipo e avançar a partir daí contra o sistema capitalista e sua democracia, significaria que concentram todo o poder em suas mãos para esmagar a resistência dos banqueiros e dos capitalistas. Portanto, não seria necessária uma Assembleia Constituinte, mas um Governo dos Trabalhadores que avance na expropriação do latifúndio e do capitalismo.

E se a esquerda não tem força suficiente para convocar tal Constituinte, qual seria o sentido de querer que a saída seja um novo parlamento dentro dos marcos da democracia representativa do capitalismo? Ou melhor, quem convocará a assembleia constituinte? Os partidos patronais do regime?

De qualquer maneira, se tivesse êxito em convocá-la, mas não tivesse força para controlá-la, quem teria o controle sobre esse organismo? Os partidos burgueses?

Nesse sentido, consideramos que as palavras de ordem “Por um Partido dos Trabalhadores” e “Por um Governo dos Trabalhadores” têm maior importância ao mostrar uma saída concreta por fora da democracia herdada do Estado Liberal.

Consideramos que o programa e as palavras de ordem do partido devem ser baseados em uma perspectiva clara da Revolução Socialista.

Uma segunda carta

Em 18 de novembro do ano passado os companheiros do PTS publicaram uma nova carta: Seremos capazes de construir um partido de esquerda unificada revolucionária e socialista? Nesta desenvolvem 12 pontos em que ampliam seus fundamentos com relação ao Partido de Esquerda Unificada.

Na mesma consideram: “Mas diante dos desafios que temos adiante, é claro que uma frente como a FIT, por mais progressiva que seja e por melhores resultados eleitorais que consiga, é absolutamente insuficiente. Sem a existência de um forte partido revolucionário da vanguarda trabalhadora, nenhuma luta decisiva poderá chegar à vitória”. Neste ponto estamos totalmente de acordo e daí nosso apoio à proposta de um partido unificado. Mas para contar com a existência desse partido revolucionário não basta só proclamá-lo, mas a questão vital e que, em última instância, decidirá a sorte desse futuro partido é como chegar às massas com uma reivindicação revolucionária, anticapitalista que mostre a necessidade da Revolução Socialista como única saída. Consideramos que esta questão é central para avançar.

Com relação à necessidade do partido, os companheiros mostram que existe uma série de limitações tanto no âmbito estudantil como no sindical (rotina, organismos esvaziados, separação de toda perspectiva de luta pelo poder político se limitando à luta sindical, entre outras).

Concretamente consideram: “É preciso superar a separação entre a necessária agitação política com base em um programa operário e socialista e uma prática, nos sindicatos e centros estudantis, limitada a lutas parciais e à rotina corporativa de organizações esvaziadas de participação”. Na continuação, os companheiros assinalam que estamos diante de acontecimentos similares aos de 2001.

Coincidimos com o diagnóstico em relação ao período que se abre (ainda que os tempos estejam estreitamente ligados à crise econômica mundial e aos ritmos de seu aprofundamento), mas sustentamos que a necessidade de construir um Partido de Esquerda Unificada está vinculada à atual fase da crise capitalista mundial e à bancarrota das variantes reformistas. Mas também é verdade que, sem o não aparecimento de uma alternativa à esquerda que se conecte com as massas, as variantes reformistas serão recicladas e voltarão a se apresentar como uma alternativa para milhões de jovens e trabalhadores que farão uma experiência com esses governos.

Daí acreditarmos que surge a necessidade de colocar de pé um Partido de Esquerda Unificada que contraponha um programa revolucionário, mas, acima de tudo, que tenha acesso às massas, já que nós marxistas somos uma pequena tendência dentro do movimento.

Para isto é vital, como assinalávamos, a correta aplicação da tática da Frente Única. Portanto, o “bater juntos” e “marchar separados” não pode ficar reduzido somente aos sindicatos ou centros estudantis como mostram os camaradas do PTS em sua carta. Mas que isto deve se traduzir também em plano político se realmente queremos disputar sua base social com o nacionalismo burguês.

Devemos dizer, nesse sentido, que não nos parece tática de Frente Única a política que vocês levam adiante junto à base de seguidores kirchneristas[3] que, gostem ou não, ainda representa uma força de milhões de trabalhadores e setores populares.

O PTS aponta em sua carte que “[…] fomos uma oposição à esquerda aos governos kirchneristas, sem misturar bandeiras com a oposição direitista […]”, mas a realidade mostra o contrário.

Em geral os grupos políticos que integram a FIT levaram adiante uma política de colocar em um mesmo plano o kirchnerismo com os setores mais asquerosos da burguesia. O que levou a misturar as bandeiras de setores da esquerda com as da Sociedade Rural[4].

Também podemos mostrar a adesão, em várias oportunidades, às paralisações patronais que a burocracia sindical utilizava para atacar à direita o governo kirchnerista e que contava com o apoio dos sindicatos patronais da indústria e do campo.

Isto é uma amostra da maneira incorreta com que os grupos majoritários da esquerda, entre eles o PTS, entendem a tática de Frente Única e, sobretudo, a incompreensão dos movimentos nacionais em oposição aos regimes da oligarquia.

Acreditamos, então, que, para não voltar a cair nos mesmos erros, estas questões devem ser submetidas à crítica como maneira de contribuir à formação deste Partido de Esquerda Unificada.

Mesmo assim queremos destacar que não nos parece correto considerar a construção partindo da negativa à existência de tendências como maneira contrária ao centralismo democrático.

Consideramos que essa posição de impedir tendências só levará a que partidos maiores engulam os menores. Em termos concretos, isto significaria que todos nós engordamos o partido, mas o PTS ou a FIT o lidera.

Por último, consideramos que se queremos um partido unificado, com perspectivas internacionalistas, é incorreto considerar que a tarefa seja a reconstrução da Quarta Internacional nos termos de fortalecer a Coordenação para a Refundação da Quarta Internacional (CRQI).

Mesmo que seu programa siga absolutamente vigente, hoje a chamada Quarta Internacional (ou os que falam em seu nome) não são o embrião de uma Internacional revolucionária, de um partido unificado da revolução mundial, mas um reduzido número de grupos locais que não estão regidos pelo princípio do centralismo democrático, com um programa, um método e uma perspectiva comuns, mas que estão constituídos como uma coalizão diplomática de grupos nacionais que repetem muitos dos erros dos grupos protagonistas da degeneração e dissolução da Quarta Internacional.

Expulso e exilado, Trotsky tentou reagrupar as pequenas forças que se mantinham fiéis ao programa bolchevique e à Revolução de Outubro, mas o assassinato do próprio León Trotsky em 1940 pelas mãos de um mercenário de Stálin foi um golpe letal para o movimento.

Os dirigentes da Quarta Internacional ficaram absolutamente desorientados depois da Segunda Guerra Mundial e isto deu lugar para o abandono das ideias do marxismo genuíno. Não é casual que a fragmentação do movimento trotskista se desata nesse período histórico.

Não é possível escrever aqui uma descrição detalhada dos erros das direções desde então. Mas é possível  considerar que, depois do assassinato de Trotsky e da degeneração nas mãos dos dirigentes revisionistas do legado revolucionário, a vanguarda  tomou caminhos que desembocaram em políticas equivocadas e que foram levadas adiante em nome do trotskismo.

Entendemos que a construção de uma Internacional Revolucionária – ou seja, o Partido Socialista da Revolução Mundial – é absolutamente vital para triunfar. Mas a tarefa dos marxistas não é proclamar a Internacional em fala, mas construí-la na prática.

Para isto é necessário, por um lado, a luta pela teoria revolucionária e pela educação de quadros marxistas e, por outro, uma firme orientação para a classe trabalhadora e suas organizações.

A nova Internacional não será construída somente por proclamação, mas se construirá sobre a base dos acontecimentos. A crise capitalista mundial está colocando estes acontecimentos na ordem do dia, permitindo aos revolucionários explicar pacientemente a necessidade de uma transformação revolucionária da sociedade. Mas, além dos acontecimentos, necessitamos criar uma organização com ideias claras e, sobretudo, com raízes sólidas nas massas a nível mundial.

Em 1878, Marx afirmou que, apesar da Primeira Internacional ter sido dissolvida, esta não fracassou, mas que “se desenvolveu de um nível para outro mais alto”.

A Segunda Internacional nasceu, mas sua degeneração reformista ficou obscenamente expressa no voto aos créditos de guerra para a carnificina que se aproximava em 1914. Foi assim que um grupo de 42 revolucionários se reuniu em setembro de 1915 na aldeia suíça de Zimmerwald. Este seria o embrião da Terceira Internacional, criada em 1919.

Em 9 de março de 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, o rumo da Internacional Comunista estava estritamente vinculado à política desenvolvida pela cada vez mais fortalecida burocracia da URSS e foi assim que o vice-presidente dos Estados Unidos, Henry Wallace, lança um ultimato a Stálin: “a guerra seria inevitável se a Rússia adotasse de novo a ideia trotskista de fomentar a revolução mundial”. A resposta de Stálin à exigência de seu aliado imperialista é contundente. Em 15 de maio de 1943, o secretário do Comitê Executivo da Internacional Comunista aprova uma resolução em que se propõe “dissolver a Internacional Comunista como centro dirigente do movimento dos trabalhadores internacional”.

Em 3 de setembro de 1938 foi celebrado em Paris a Conferência Fundacional da Quarta Internacional. Participaram 26 delegados representando 11 seções nacionais, das 29 que conformavam a nova Internacional.

Como assinalamos acima, privada do conselho de Trotsky após seu assassinato, a direção da então “Quarta Internacional” ficou totalmente desorientada e isso marcou o princípio do fim da organização.

Mas a principal razão do isolamento da Quarta Internacional foi a própria situação objetiva aberta depois da Segunda Guerra e o posterior boom econômico, o maior da história do capitalismo, e o oferecimento de enormes concessões às massas, pelo menos nos países capitalistas mais desenvolvidos, que suavizaram a luta de classes nestes países durante um período histórico.

Assim vemos que as diferentes Internacionais corresponderam a diferentes momentos históricos. Hoje, quando o capitalismo se encontra atravessando a crise mais aguda de sua história, a tarefa dos revolucionários é colocar de pé uma nova Internacional.

A crise atual expõe o papel absolutamente reacionário do capitalismo e coloca sobre a mesa a necessidade da reconstrução do socialismo internacional. O que é necessário então não é voltar a recair nos mesmos vícios sectários que mancharam a bandeira do trotskismo. Para resolver a crise de direção a que se reduz a crise da humanidade, necessita-se avançar na construção de um novo Partido da Revolução Mundial que, lutando lado a lado com o resto de nossa classe se arme teórica e programaticamente para ganhar aos elementos mais conscientes e ativos da vanguarda dos trabalhadores e da juventude às ideias do marxismo.

O que se requer é uma internacional revolucionária que seja capaz de dar uma expressão organizada e uma direção política à luta contra o capitalismo pelo socialismo.

[1] Partido de los Trabajadores Socialistas, fundado em 1988 como uma cisão do Movimento ao Socialismo (MAS), a princípio reivindicando o legado de Nahuel Moreno, mas posteriormente realizando balanços críticos do morenismo (Nota do Tradutor – N.T.).

[2] Frente de Izquierda y de los Trabajadores, coalizão eleitoral integrada pelo Partido Obrero (Partido Operário – PO), PTS e Izquierda Socialista (Esquerda Socialista – ES) formada para as eleições presidenciais de 2011 e legislativas de 2013 na Argentina (N.T.).

[3] Corrente política dentro do Partido Justicialista (PJ) iniciada por Néstor Kirchner (1950 – 2010) e mantida por sua esposa, Cristina Kirchner, sendo considerada a esquerda do peronismo (N.T.).

[4] Sociedad Rural, sindicato patronal fundado em 1866 que reúne grandes latifundiários da região dos pampas argentinos dedicados à produção agropecuária (N.T.).

Artigo publicado na página El Militante, da seção argentina da Corrente Marxista Internacional Corriente Socialista Militante, sob o título “Sobre la construcción de un Partido de Izquierda Unificado y la segunda carta del PTS”, publicado em 16 de dezembro de 2018.

Tradução de Nathan Belcavello de Oliveira.