O Bolchevique, Boris Kustodiev (1920)

A Revolução Russa e seu impacto na arte

A Revolução Russa, ocorrida em 1917, derrubou o poder dos czares, derrotou a frágil burguesia do país e levou operários e camponeses ao poder, transformando a realidade econômica, social e política do país. Esse processo provocou grandes mudanças também nas artes. Nas artes plásticas, na literatura e no cinema floresceram variadas e divergentes expressões estéticas. Contudo, se nos primeiros anos o poder dos sovietes garantiu à arte condições materiais mínimas e a liberdades para o fortalecimento de novas expressões artísticas, ao longo da década de 1920 o autoritarismo estatal e a ascensão de uma camada social burocrática ao poder levaram ao processo de consolidação do realismo como estética oficial imposta pelo Estado.

Trotsky afirmava que a política dos primeiros anos depois da revolução apontava para a necessidade de conceder aos artistas “completa liberdade de autodeterminação no domínio da arte, após colocá-los sob o crivo categórico: a favor ou contra a revolução”.1 Anatoli Lunatcharsky, responsável pelo Comissariado Popular de Educação (Narkomprost), que elaborava e praticava políticas para educação e cultura, afirmava que este órgão “deve ser imparcial no que respeita às orientações particulares da vida artística. No que se refere às formas, o gosto do comissário do povo e de todos os representantes do regime não deve ser tomado em consideração. Há que facilitar o livre desenvolvimento de todos os indivíduos e grupos artísticos. Não se deve permitir que uma tendência artística elimine a outra valendo-se quer da glória tradicional adquirida, quer da moda”.2

Essa liberdade garantida no campo artístico possibilitou o florescimento de várias organizações culturais autônomas e de uma série de editoras independentes, enquanto a postura do Narkomprost encorajava todas as formas de arte que não fossem abertamente hostis à revolução. O calor da insurreição de operários e camponeses havia contagiado a vida artística, fazendo com que a obra de arte deixasse de ser “uma obra individual, uma propriedade privada, orientando-se para a mobilização das massas”.3

Novo Planeta, Konstantin Yuon (1921)

Contudo, uma significativa parcela da intelectualidade recebeu com hostilidade a ascensão dos bolcheviques ao poder. Diante disso, “escritores e poetas ou fugiram para o exterior ou se isolavam, com horror e alheios ao mundo que emergia, como estrangeiros em seu próprio país”.4 Muitos dos artistas que se exilaram esperavam que o poder soviético fosse logo derrubado, passando a desenvolver uma sistemática militância antissoviética.

Contudo, nem todos os intelectuais e artistas assumiram uma postura contrária à revolução. Havia uma forte presença dos chamados “companheiros de viagem”, entre os quais estavam Wassily Kandisky (1866-1944), Maximo Gorki (1868-1936), Kazimir Malevich (1878-1935), Alexandre Blok (1880-1921), David Shterenberg (1881-1948), Alexey Tolstoy (1882-1945), Marc Shagall (1887-1985), Victor Serge (1890-1947), Vladimir Maiakovski (1893-1930) e Serge Essenin (1895-1925).

Muitos desses artistas participaram do governo soviético. Kandisky presidiu a Academia Russa de Ciências Artísticas e participou da direção da IZO (seção de artes visuais do Narkomprost), da qual fazia parte o também abstracionista Shterenberg. Marc Shagall foi nomeado comissário de belas-artes do governo de Vitebsk, tendo fundado uma escola aberta a todas as tendências artísticas. Outros importantes artistas, como Blok e Malevich, também ocuparam cargos no governo.

No poster lê-se: “Se você não quer voltar ao passado – [pegue] um rifle na mão! Para a frente polonesa!”. Os edifícios na parte de trás são um pub e uma prisão., por I. Maliutin, texto de Mayakovskii (1920)

O cinema, que havia chegado à Rússia em 1896, passou a ser encarado pelo governo bolchevique como um assunto de fundamental importância para o Estado soviético. Tendo sua produção nacionalizada em 1919, o cinema passava a ser um instrumento na edificação e consolidação da nova sociedade. Trotsky dizia:

“O desejo de distração, de entretenimento, de diversão e de riso, é um desejo legítimo da natureza humana. Podemos e devemos proporcionar-lhe satisfação cada vez mais artísticas e, ao mesmo tempo, devemos fazer do divertimento um instrumento de educação coletiva, sem constrangimento ou dirigismo inoportunos”.5

Embora vitoriosa, a revolução não trouxe estabilidade ao país. Depois da tomada do poder, o novo governo buscou assinar acordo de paz com a Alemanha, tentando pôr fim à participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial. Em seguida à revolução, a Rússia se viu dilacerada pela guerra civil. As classes dominantes derrotadas pela revolução e os oficiais czaristas, apoiados pelos capitalistas russos e estrangeiros, esforçaram-se por derrubar pelas armas o regime soviético. O conflito durou até 1922.

Paralelo à guerra civil na Rússia, a revolução na Europa foi derrotada. Podem ser citados como exemplos a Hungria, em 1919, onde uma tentativa de governo operário foi massacrada pela repressão, e na Alemanha, onde foram derrotadas duas tentativas revolucionárias, em 1918 e em 1923. Em ambos os casos as direções operárias cometeram graves erros que garantiram a vitória da contrarrevolução.

Depois da vitória soviética na guerra civil, a economia do país precisou ser reestruturada. Em 1921 começou a ser implementada a Nova Política Econômica (NEP), cujo objetivo era estimular a economia e o comércio, reanimando a indústria, melhorando o abastecimento das cidades e criando uma base econômica para a aliança entre operários e camponeses. Para tanto, um recuo à economia de mercado se fez necessário, dando aos camponeses a liberdade de dispor de seus estoques, depois de pagos os impostos. O Estado mantinha o monopólio sobre o comércio exterior, a grande indústria, os bancos e o sistema de transporte. Essa nova medida visava abolir a expropriação e o confisco de cereal dos camponeses, realizada nos anos anteriores, devendo “a indústria fornecer aos campos as mercadorias necessárias, a preços tais que o Estado pode renunciar à requisição dos produtos agrícolas”.6

Com o início da NEP, foi possível superar gradualmente a crise econômica e social, ainda que a guerra civil tivesse devastado os campos e paralisado as fábricas. A nova arte teve condições materiais mínimas para crescer, se desenvolver e se consolidar. Nos primeiros anos após a revolução, “o debate crítico, artístico e literário atingiu uma amplitude nunca antes vista, em nenhuma parte do mundo”.7

Se havia espaço para as vanguardas, também é nesse cenário em que se veio a se fortalecer aos poucos o embrião do que viria a ser o chamado “realismo socialista”. Sua história está ligada, em parte, ao Movimento Cultura Proletária (Proletkult). Este movimento tinha como perspectiva a formação de uma nova cultura a partir do contato com as ideias e sentimentos do proletariado. A ideia da “cultura proletária” tinha simpatia de Georgi Plekhanov (1856-1918) e de importantes dirigentes bolcheviques e do governo, como Nikolai Bukharin (1888-1938) e o próprio Lunatcharsky. No seu início, o Proletkult contava com a participação de artistas como Maiakovski, Vsevolod Meyerhold (1874-1940) e Eisenstein, sob a direção teórica de Aleksandr Bogdánov (1873-1928), cujas ideias sobre arte podem ser assim resumidas:

1) O proletariado deve organizar suas ideias e seus sentimentos por meio de uma arte nova.
2) Deve ser superada a divisão de trabalho em “organizadores” e “executantes”, substituindo-a pela cooperação.
3) Ao individualismo, típico da arte burguesa, opõe-se o coletivismo socialista; o escritor se faz porta-voz do pensamento e dos sentimentos coletivos.
4) Nos centros do Proletkult, o trabalho apoia-se, quase exclusivamente, sobre o operariado industrial, voltando-se contra a burguesia e, mais ainda, contra os escritores camponeses, considerados retrógrados”.8

Para Bogdánov, a arte deveria ser uma arma da classe operária contra a cultura burguesa, rejeitando completamente a arte produzida sob o capitalismo. Essas teses defendidas por Bogdánov faziam uma simplificação grosseira da compreensão da arte enquanto um dos pilares para a construção do socialismo, transformando-a em refém de interesses políticos e ideológicos mais estreitos. Bogdánov afirmava que o proletariado tem a necessidade de uma “pura poesia de classe”.9 Nesse sentido, para Bogdánov, a formação de uma nova arte não seria a síntese de embates, discussões, convergências, enfim, das plurais experiências dos diferentes grupos então existentes. Bogdánov entendia que a arte produzida no socialismo seria a expressão mecânica de uma cultura específica de classe. Em contraposição, Trotsky afirmava: “Seria pueril pensar que cada classe por si mesma pode criar, completa e plenamente, sua própria arte; em particular que o proletariado seja capaz de elaborar uma nova arte por meio de círculos artísticos fechados”.10

Uma das herdeiras das ideias defendidas pelo Proletkult foi a Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária (AkhRR). O realismo socialista pode ser considerado produto das elaborações deste grupo, que pregava “a imperatividade dos temas da contemporaneidade revolucionária (Exército Vermelho, heróis do trabalho, as grandes obras industriais da construção do socialismo), a necessidade do estilo realista para as massas, a ofensiva contra o formalismo e a sujeição da arte à partiinosf – o espírito do partido”.11

O ano de 1928 é marcado por uma nova mudança na política econômica. Josef Stalin (1879-53) propunha uma industrialização aventureira, colocando em segundo plano o interesse das classes trabalhadoras e a situação concreta da economia. Uma das razões da política de Stalin era a necessidade de responder ao crescente poder dos kulaks (camponeses ricos), que ocupavam lugar relevante na economia do país e exerciam influência em setores do partido e do poder estatal. A partir das ações do governo, foi executada a chamada “coletivização forçada”, e os kulaks, antigos aliados da burocracia, sofreram uma feroz repressão.

Enquanto, no âmbito econômico, a industrialização era a principal estratégia, as disputas políticas se concentravam na eliminação de antigos aliados de Stalin, uma vez que a esquerda havia sido eliminada do partido. Essa repressão foi sentida também no campo artístico, afinal os setores ligados à burocracia “aproveitam a situação para iniciar o processo de homogeneização e depuração da vida artística”.12 Uma das consequências disso foi a demissão de Lunatcharsky do Narkomprost, em 1929.

Zdhanov, homem de confiança de Stálin, passou a ser o porta-voz do governo no que se referia às artes. Em 23 de abril de 1932, o Comitê Central do Partido tomou a decisão de dissolver todas as associações literárias e fundar a União dos Escritores Soviéticos. Pouco depois, em agosto de 1934, no Congresso dos Escritores Soviéticos, Zdhanov, se referindo aos escritores como “engenheiros das almas”, afirmava:

Ser um engenheiro das almas humanas significa ficar com os dois pés plantados na vida real. E isto por sua vez, indica uma ruptura com o romantismo de velho tipo, que retratava uma vida não-existente e heróis não-existentes, afastando o leitor dos antagonismos e opressão da vida real e o levando a um mundo do impossível, para um mundo de sonhos utópicos”.13

Essa literatura afastada da realidade, criticada por Zdhanov, deveria ser substituída por uma literatura na perspectiva do realismo socialista:

Dizemos que o realismo socialista é o método básico da belles lettres soviético e criticismo literário, e isso pressupõe que o romantismo revolucionário deva entrar na criação literária como uma parte componente, de toda a vida de nosso Partido, de toda a vida da classe operária e sua luta consiste em uma combinação do trabalho prático mais austero e sóbrio com o espírito superior de feitos heroicos e magníficas perspectivas futuras”.14

Portanto, a literatura, ou mesmo a arte em geral, deveria expor os feitos de seus “heróis”, servindo como uma ferramenta direcionada pelas ações do Estado:

A literatura soviética deve ser capaz de retratar nossos heróis; deve ser capaz em vislumbrar o nosso amanhã. Isso não será nenhum sonho utópico, pelo nosso amanhã já estar sendo preparado hoje pôr à custa de um trabalho planejado consciente”.15

O incentivo aos influxos criativos permitidos pelos primeiros anos da Revolução Russa foi esmagado pela burocracia stalinista. A política de liberdades e incentivos materiais às mais diversas correntes artísticas se viu tolhida pela imposição estatal da estética realista socialista e pela arte voltada a propagandear e enaltecer os líderes políticos e as ações da burocracia governante.

Notas:

1 Leon Trotsky. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 37.

2 Anatoli Lunatcharky. Um pouco de antídoto. In: As artes plásticas e a política na URSS. Lisboa: Estampa, 1975, p. 39-40.

3 Cristiane Nova. Revolução e contrarrevolução na trajetória de Eisenstein. O Olho da História, Salvador, n. 1, novembro 1995, p. 142.

4 Moniz Bandeira. O marxismo e a questão cultural. In: Leon Trotsky. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 22.

5 Leon Trotsky. A vodka, a igreja e o cinema. In: Questões do modo de vida. A moral deles e a nossa. São Paulo: Sundermann, 2000, p. 36.

6 Leon Trotsky. A revolução traída. São Paulo: Global, 1980, p. 20.

7 Emilio Carrera Guerra. A vida de Maiacovski. In: Vladímir Vladímirovitch Maiacovski. Antologia poética. 6ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1987, p. 29.

8 Willi Bolle. Viagem a Moscou. Revista USP, São Paulo, n. 5, março 1990, p. 121.

9 Alexander Bogdanov. El arte y la cultura proletária. Madrid: Alberto Corazón Editor, 1979, p. 30.

10 Leon Trotsky. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 144.

11 João Lopes. A evolução da política cultural dos bolcheviques e a pintura na União Soviética: da liberdade ao monolitismo do realismo socialista. Marxismo Vivo, São Paulo, n. 3, maio 2001, p. 127.

12 João Lopes. A evolução da política cultural dos bolcheviques e a pintura na União Soviética: da liberdade ao monolitismo do realismo socialista. Marxismo Vivo, São Paulo, n. 3, maio 2001, p. 128.

13 Andrei Zhdanov, Literatura Soviética: a mais rica em ideias, a literatura mais avançada. In: Escritos. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultura, 2020, p. 102.

14 Andrei Zhdanov, Literatura Soviética: a mais rica em ideias, a literatura mais avançada. In: Escritos. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultura, 2020, p. 102.

15 Andrei Zhdanov, Literatura Soviética: a mais rica em ideias, a literatura mais avançada. In: Escritos. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultura, 2020, p. 103.