A Questão Nacional na Escócia – Parte 1

 A validade histórica e constitucional de um referendo de independência da Escócia volta a estar na agenda política britânica. Essa é uma ótima oportunidade para analisar este assunto tão importante.

 A validade histórica e constitucional de um referendo de independência da Escócia volta a estar na agenda política britânica. Essa é uma ótima oportunidade para analisar este assunto tão importante.

Lênin escreveu, em seu clássico “Estado e Revolução”, que a questão das nacionalidades no Reino Unido, que parecia estar morta, voltaria à tona com força em certos momentos. Essa previsão incrível se provou verdadeira durante a crise de 1974 e o consequente aprofundamento da crise do capitalismo britânico. O ressurgimento do nacionalismo escocês e galês se refletiu no grande apoio ao Play Cimrus e ao Partido Nacional Escocês (PNE) a partir dos anos 70 e 80 até os dias de hoje.

O retorno dos nacionalismos em um momento no qual a justificativa para o estado-nação tenha deixado de existir, com o declínio do capitalismo, é uma contradição dialética. Quando surgiram, os estados-nação foram uma grande conquista para a humanidade, principalmente durante o período de 1789 e 1848, quando o capitalismo estava em ascensão. O fato de que a atual crise econômica esteja ressuscitando o nacionalismo latente é reflexo do período de declínio que vivemos.

O estado-nação há muito tempo tornou-se um entrave para o desenvolvimento das forças produtivas e consequentemente, da sociedade. O retorno da questão das nacionalidades, na atual conjuntura, é fruto da crise mundial do capitalismo e principalmente do atraso da revolução internacional, que pode levar a muitas contradições que aparentavam estar resolvidas e ultrapassadas.

Lênin e os bolcheviques prestaram muita atenção à questão das nacionalidades na Rússia, que se tornara um problema sério, o que gerava a necessidade da autodeterminação dos povos. Lênin desenvolveu uma análise dialética e sensível do sofrimento desses povos, o que possibilitou ganhá-los para a causa e levar adiante o processo revolucionário. Sem essa postura, o triunfo da Revolução Russa teria sido impossível.

A questão nacional continua a ser um assunto muito importante, e ao lidar com essa questão no contexto britânico, devemos utilizar o rico arsenal do marxismo. Ao fazê-lo, porém, é necessário esclarecer que nosso ponto de vista é o de classes. Marx e Engels consideravam a questão como subordinada ao problema maior da exploração de classes e da revolução. “O húngaro não será livre, nem o polonês, nem o italiano, enquanto o trabalhador permanecer escravo”, explicou Marx.

Por isso, é particularmente importante compreender o problema concretamente, não em termos gerais. Esse sempre foi o método de Marx e Engels. Os grandes pensadores do socialismo cientifico foram internacionalistas proletários. Eles não glorificavam o nacionalismo, mas em certos casos apoiavam o direito à autodeterminação dos povos como uma reivindicação democrática transitória.

Marx apoiava a luta dos irlandeses, húngaros e poloneses, mas se opôs ao nacionalismo dos eslavos do sul e dos tchecos. Essa postura estava relacionada à importância concreta dessas lutas para a revolução europeia, e especialmente ao papel da Rússia czarista, que utilizava da “autodeterminação” desses povos para promover suas próprias políticas expansionistas.

Lênin adotou o que poderia se chamar de uma visão negativa da questão. Em outras palavras, ao invés de apoiar esse ou aquele movimento, ele se colocava implacavelmente contra qualquer forma de opressão nacional. Lênin explicou que a questão das nacionalidades é uma reivindicação democrática, podendo ser comparada, por exemplo, à questão do divórcio. Ser a favor do direito do divorcio não significa integrar a luta por ele. Defender o direito ao aborto não quer dizer que esta seja a melhor atitude em todas as circunstancias. Acima de tudo, devemos lutar para estabelecer a sagrada unidade da classe trabalhadora, como também explicava Lênin.

Em certas circunstancias, os marxistas são a favor da autodeterminação, inclusive apoiando a secessão territorial, se por acaso isso se constitui em uma reivindicação democrática e transitória. Esse é o caso de uma nação que foi submetida a uma anexação forçada, transformada em uma colônia e sujeita a todo tipo de opressão e discriminação. Nesse caso, a classe trabalhadora é forçada a apoiar a autodeterminação. Por esse motivo, os marxistas britânicos sempre apoiavam a independência das colônias.

Em “História da Revolução Russa”, Trotski delineou a questão das nacionalidades da seguinte forma:

“Lênin cedo percebeu que era inevitável o surgimento de movimentos nacionalistas na Rússia, e por esse motivo lutou teimosamente – em particular contra Rosa Luxemburgo – pelo famoso parágrafo nove do programa do velho partido que formulava o direito à autodeterminação para os povos – ou seja, a completa separação como estados. Simplesmente assumiu a obrigação de lutar contra qualquer opressão nacional inclusive a permanência forçada desta ou daquela nacionalidade no novo estado. Somente assim o proletariado russo poderia ganhar a confiança das nações oprimidas.”

Trotski prossegue e explica a postura dos bolcheviques sobre essa questão:

“Mas esse era apenas um lado da questão. A política dos bolcheviques na esfera das nacionalidades tem outro lado, que parece contradizê-la, mas na verdade a complementa. No interior do partido e das organizações de trabalhadores, o bolchevismo se opunha de forma implacável a divisão nacionalista, pois isso jogaria um trabalhador contra o outro. Enquanto que recusava ao estado burguês o direito de impor cidadania compulsória ou uma língua oficial sobre uma minoria étnica, os bolcheviques faziam de tudo para unir os trabalhadores o mais fortemente possível por meios de disciplina voluntaria de trabalhadores de diferentes nacionalidades. Assim, rejeitava os nacionalismos na construção do partido. Um partido revolucionário não é o protótipo do futuro estado, apenas um instrumento para sua criação. Um instrumento ideal para dar forma ao produto, mas não para incluí-lo. Assim, uma organização revolucionaria centralizada pode garantir o sucesso da revolução, mesmo onde a tarefa seja destruir a opressão centralizadora sobre as nacionalidades.” (História da Revolução Russa, p891).

A QUESTÃO NACIONAL NA ESCÓCIA

Apesar de combater veementemente qualquer forma de opressão nacional, os marxistas não têm, de forma alguma, obrigação de atuar como evangélicos da separação nacional.  Pelo contrário, são contrários ao estabelecimento de novas fronteiras e a favor da abolição das mesmas, em favor da criação de uma Federação Socialista Europeia e, eventualmente, uma Federação Socialista Mundial. Não devem fazer a menor concessão ao nacionalismo pequeno burguês. Contudo, é necessário uma política flexível a esse respeito, que permita uma intervenção em meio ao segmento da população influenciada por ideais e demagogias nacionalistas.

Nos anos 70, quando discutimos a questão das nacionalidades na Grã Bretanha pela primeira vez, caracterizamos tanto a Escócia quanto o País de Gales como países, devido à identidade territorial, linguística e consciência nacional.  A caracterização objetiva é fundamental, uma vez que o direito à autodeterminação se aplica a nações e não a grupos arbitrários.

Nós nos opomos firmemente ao nacionalismo pequeno burguês, que demagogicamente apresenta a independência nacional como solução para os problemas enfrentados pelos povos escocês e galês, mas adotamos uma abordagem sensível às aspirações nacionais e apoiamos a expansão de autonomia dos dois povos. Ao mesmo tempo, ligamos essa questão nacional com a necessidade de um programa socialista que resolva os desafios enfrentados pela classe trabalhadora. Novamente, isso foi diretamente ligado com a necessidade de uma Grã Bretanha socialista, como parte da luta por uma Europa e um mundo socialistas.

Na época, quando discutimos o tema, produzimos dois documentos, escritos por Ted Grant, um lidando com o nacionalismo e particularmente o referendo sobre a devolução da independência à Escócia e País de Gales.  Nesses documentos, analisamos a ascensão desses nacionalismos como uma prova da decadência do capitalismo britânico bem como da fracasso do Labour Party em atender as reivindicações da classe trabalhadora e classe média após tantas passagens pelo poder. Isso foi ainda mais verdadeiro na Escócia e País de Gales, as regiões mais atingidas pela crise, em comparação com o restante do Reino Unido. Enquanto que houve desilusão na Inglaterra, esta se demonstrou pelo aumento do apoio ao Partido Liberal e outros. Nessas regiões, se deu pelo aumento da força do nacionalismo.

Hoje, a Escócia é considerada uma fortaleza dos trabalhistas, pelo menos do ponto de vista das eleições, mas nem sempre foi assim. Em 1955, o Partido Tory* conquistou 55% dos votos escoceses. Contudo, cinquenta anos depois, esse partido, tido como o mais bem sucedido entre todos da burguesia europeia, tornou-se um fantasma tanto na Escócia quanto em Gales.

Isso foi um reflexo da crise britânica, a polarização social e o aumento da força da classe trabalhadora. Os trabalhistas sempre foram dominantes nas cidades, enquanto que os conservadores e liberais eram reduzidos às áreas rurais. Podemos perceber que houve uma mudança na consciência de classe na Escócia nesse período.

De um ponto de vista de classe, o nacionalismo é um fenômeno burguês e pequeno-burguês. O crescente descontentamento da classe média, bem como a incapacidade do Labour de oferecer uma alternativa, levou muitos a apoiar os nacionalistas. A verdadeira tradição trabalhista escocesa era classista com tom revolucionário. É a tradição da Grande Greve de Aluguel de 1915, e mais recentemente, a ocupação dos estaleiros de Upper Clyde e a greve dos mineiros.

Contudo, desde os anos 80, especialmente durante o governo Thatcher, o nacionalismo voltou a seduzir a classe média e setores da classe trabalhadora, principalmente a juventude. Isso se deu principalmente pelo fracasso da ala direita do Labour, na Escócia e no parlamento, em oferecer alguma alternativa ao proletariado. Durante esse período, a desilusão com as políticas reformistas do partido empurrou ainda mais setores do operariado nessa direção.

Esse processo foi auxiliado pelos stalinistas do Partido Comunista, que injetaram o veneno do nacionalismo na juventude, especialmente na Escócia, demonstrando sua degeneração política a nível nacional. O “Caminho Britânico para o Socialismo” logo se tornou o “Caminho Escocês para o Socialismo”, insuflando ainda mais os orgulhos nacionalistas.

A eleição de uma série de mandatos de Thatcher sedimentou na juventude e na classe trabalhadora um profundo ódio ao partido Tory. Isso foi ainda mais verdade na Escócia e em Gales. Contudo, o giro a direita do Labour impediu o uso desse potencial anticonservador, levando as massas a procurar alternativas utópicas, como o nacionalismo. No final dos anos 80, enquanto o PNE se juntou tardiamente ao movimento contra o imposto comunitário (A Poll Tax), os lideres trabalhistas não estavam prontos para quebrar a lei e desafiar essa medida. Isso deu ao PNE uma reputação radical imerecida, especialmente em meio a juventude.

Embora ainda haja muito apoio ao Labour entre os trabalhadores escoceses, o reformismo do partido tem diminuído esse apoio em prol dos nacionalistas. Nos últimos vinte e cinco anos, o apoio ao PNE mais que dobrou, enquanto que o apoio à independência subiu de 12 para 38 por cento. Mesmo que isso não represente uma maioria, se trata de uma ameaça á unidade da classe trabalhadora que não pode ser ignorada.

Em 1997, acompanhando o movimento nacional, houve uma grande mobilização na Escócia, através do Labour, para derrubar os odiados conservadores. Contudo, as políticas de Blair/Brown empurraram muitos para os braços dos nacionalistas, que tinham se tornado de esquerda, ao menos nas palavras.

O lançamento do parlamento escocês, em 1999, que apoiamos, não respondeu a nenhuma das questões enfrentadas pelo povo escocês. Uma série de governos liberal-trabalhistas falhou em oferecer respostas, embora seja certo que algumas mudanças foram feitas, tais como o fim do pagamento de mensalidades escolares e pagamento de garantias.

Com essas reformas, o Labour escocês quis se distanciar de seu variante inglês e do governo Blair. Contudo, eles não foram longe o suficiente, levando a desilusão e à derrota eleitoral, em 2007, da coalizão Labour-Liberais pelo PNE. Durante essa eleição, os nacionalistas escoceses adotaram discursos de esquerda, defendendo as reformas, enquanto colocavam na ordem do dia a questão da independência.  

Na eleição de 2007, o PNE ganhou 47 cadeiras no parlamento escocês, seguidos por 46 dos trabalhistas e 17 dos conservadores. Eles seguravam o poder pelas pontas das unhas. Contudo, em 2011, o PNE conquistou 69 cadeiras e 47% dos votos, além de 32 assentos no parlamento britânico, sendo que 22 foram tirados dos trabalhistas, nove dos liberais e um dos conservadores. Além do sucesso inédito na Escócia, jamais o PNE havia obtido tamanha representação em Londres.

Os trabalhistas escoceses perderam sete assentos e sofreram sua pior derrota desde 1931, com grandes perdas em seus bastiões tradicionais, tendo que recorrer a listas regionais para eleger representantes. Os Liberal Democratas foram esmagados, com sua participação caindo de 17 para 5 cadeiras. Os conservadores também declinaram muito.

Os limites do parlamento escocês ficaram evidentes quando o PNE protestou contra os limites impostos por Londres. A maioria das pessoas queria maior controle sobre suas vidas, especialmente em um momento em que a crise se aprofundava. Nesse contexto o PNE propôs um referendo sobre a independência e um projeto de lei para o parlamento, sobre o mesmo tema.

Isso serviu para alertar a coalizão do governo com Cameron ameaçando bloquear o referendo sob base constitucional. Mas, com o parlamente escocês ameaçando prosseguir com a medida, o primeiro-ministro foi forçado a abandonar o confronto direto e buscar um dialogo com Salmond, primeiro-ministro escocês. Ao mesmo tempo em que concorda com o referendo, Cameron faz de tudo para tirar todo o caráter deliberativo a respeito da independência. Salmond, por outro lado, quis rediscutir a medida da “devolução máxima”, que significaria maior poder para o parlamento escocês, o que certamente seria aprovado com ampla maioria, mesmo que a independência não fosse aprovada em votação. Esse evento serviu para firmar os nacionalistas escoceses e a independência na agenda política.

Conservadores e Trabalhistas

O simples fato de que a unidade do Reino Unido possa ser questionada nesse momento é um indicador da decadência do capitalismo britânico e de seus representantes políticos. O Partido Tory e seus líderes são uma boa imagem desse processo. Ao invés da inteligente e visionária liderança dos tempos do auge imperial, hoje o que há são doutores medíocres, que pulam de um compromisso supérfluo para outro. Assim, ao invés de manobrar Salmond, Cameron é que foi manobrado por ele.

A intervenção de Cameron foi um erro do ponto de vista da classe dominante britânica. Causou mal estar na Escócia, onde ficou clara a tentativa de intervir nos assuntos internos dos escoceses. Isso foi utilizado pelos nacionalistas, que usaram o sentimento de que os escoceses devem decidir seus destinos sem a interferência de Londres, ainda mais de um primeiro ministro conservador. Os efeitos da intervenção são ainda mais perigosos devido ao fato de que o Tory é uma força em extinção na Escócia. Como diz a piada, os conservadores têm menos representantes eleitos pela Escócia no parlamento do que ursos Panda no zoológico de Edimburgo.

Enquanto que o apoio ao nacionalismo é um tanto raso entre a classe trabalhadora, há um sentimento crescente de que a Escócia é governada por um grupo de ricos do parlamento, que desconhece e despreza os problemas da região. O PNE utiliza esse sentimento de forma demagógica, propagando que a independência será um bom instrumento para resolver os problemas do povo escocês, enquanto que o partido Tory- dos ricos e privilegiados – defende a unidade a todo o custo.

O apoio crescente aos nacionalistas se deve aos reformistas do Labour, que dominam a política escocesa há décadas, e que trata a nação como uma espécie de “bairro podre”, que dava votos para eleger carreiristas e oportunistas de toda a espécie. O giro a direita iniciado por Kinnock e aprofundado por Blair fez com que o Labour mergulhasse em uma crise atrás da outra. Lideranças são substituídas uma após a outra.

Esse espetáculo lamentável entra em profundo contraste com o PNE, cujo líder, Alex Salmond, é um oportunista esperto, projetando o ar de confiança de um político burguês. Os lideres trabalhistas, incapazes de oferecer uma posição independente de classe sobre o que quer que seja, escandalosamente ofereceram integrar uma aliança com os conservadores para barrar o referendo. Essa política bipartidária do Labour ameaça alienar jovens e trabalhadores que buscam uma alternativa, e não uma aliança com o desacreditado Tory. Agindo dessa forma, o Labour só reforça a crença de que é um partido da situação, se esforçando desesperadamente para manter o impopular status quo.

É claro, isso coincide com os interesses do grande capital, que não deseja enfrentar a instabilidade que a independência escocesa traria. A burguesia britânica sabe que a economia da Escócia esta profundamente ligada à do Reino Unido, com 45,2% de suas exportações indo para o país e apenas 4,7% para o restante da União Europeia. E aí que esta seu interesse. Isso é o que dita a política do mercado, inclusive dos conservadores. Por isso eles defendem a união de forma tão veemente e apaixonada.

Há uma parte da liderança conservadora que é ambígua sobre a questão da independência. Segundo seus próprios interesses mesquinhos e de curto prazo, a independência escocesa seria uma maneira de reforçar o partido no parlamento britânico. Uma Escócia independente não mandaria deputados trabalhistas para Londres, o que garantiria uma maioria conservadora quase que permanente. Se a independência fosse concretizada, os conservadores perderiam apenas um de 59 assentos ao norte da fronteira. Já os trabalhistas perderiam quarenta e um, os liberais, onze, e o PNE, seis.

Não obstante, uma visão tão limitada do tema demonstra a degeneração do Partido Tory. Mesmo se fosse verdadeira, a ideia de um governo conservador semipermanente na Inglaterra é absolutamente fantasiosa. Houve muitos casos em que o Labour ganhou maioria absoluta na Inglaterra e no País de Gales, e segundo os estudos do professor Curtice na Universidade de Strathclyde, os trabalhistas governariam em 1945, 1950, 1997 e 2001.

Quanto aos liberais democratas, eles já foram o partido da independência, mas hoje pagam o preço por terem governado ao lado dos impopulares conservadores. Os liberais foram aniquilados na Escócia, onde seu espaço foi ocupado pelo PNE.

Continua na parte II