Luciano Hang (E) e Carlos Wizard foram os porta-vozes dos patrões interessados em comprar vacina, furando a fila dos grupos prioritários

A quem interessa a obtenção de vacinas pela iniciativa privada?

No dia 6 de abril, quando o Brasil registrou mais de 4 mil mortes em 24h, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do PL 948/2021, que atende mais ao lobby da elite econômica do que aos direitos dos trabalhadores.

De autoria de Hildo Rocha (MDB-MA), o projeto de lei autoriza a compra de vacinas contra a Covid-19 pela iniciativa privada para imunização particular de seus “empregados, cooperados, associados e outros trabalhadores que prestam serviço” ao empresariado. Apoiadores alegam que a medida serve ao interesse da população ao acelerar o processo de imunização no país e, com isso, promover a retomada da economia o quanto antes. Entretanto, estas promessas não apresentam base para confirmação.

Apesar de prever o repasse da mesma quantidade adquirida ao Programa Nacional de Imunização (PNI) enquanto contrapartida, a medida tem sido criticada por apresentar riscos de ampliar agravos com a clara subversão aos princípios da saúde e ao alterar estratégias efetivas de enfrentamento à pandemia, já tão fragilizadas por condutas criminosas e discursos negacionistas por parte do governo federal e de seus apoiadores.

Atualmente, a lei em vigor (nº 14.125/21) autoriza a aquisição de imunizantes pela iniciativa privada, mas exige que todas as doses sejam direcionadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) até a conclusão da primeira etapa do programa, quando todo o grupo prioritário estiver imunizado. A lei está em acordo com a estrutura do PNI e com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). A lei atual já prevê que após a conclusão da etapa da imunização deste grupo, as empresas poderão reter 50% das doses obtidas e repassar a outra parte ao SUS.

Em termos práticos, o projeto é um atravessamento da lei em vigor, ignorando o protocolo de imunização e instituindo uma “fila-dupla” de vacinação, pela qual os demais grupos etários iniciarão a imunização antes mesmo da conclusão da primeira etapa, sem que haja vacina o suficiente. Mesmo que o texto do projeto determine que as empresas possam adquirir apenas as doses excedentes dos lotes comprados pelos governos, o fato é que a quantidade de doses produzidas está aquém da demanda mundial. Falar em “excedente” de vacina é apelar para uma terminologia enganosa, já que presenciamos uma situação de escassez de imunizantes e não seu contrário. E isto em um país, cujo governo, que deveria ser o agente imunizador, está atrasado em sua campanha nacional, havendo, inclusive, a redução das doses a serem entregues neste mês em relação ao cronograma oficial.

Constituir um novo grupo, que competirá doses de vacina com o grupo já estabelecido, não apenas trará lentificação ao processo de imunização no país, como vai deixar a parcela prioritária da população sem acesso à vacina e exposta ao vírus e ao risco de morte por muito mais tempo.

O projeto de lei, então encaminhado ao Senado, é apoiado, principalmente, por Luciano Hang, proprietário da rede de lojas Havan, que inaugurou 12 lojas em 2020 e pretende abrir mais 20 neste ano, e Carlos Wizard, empresário do ramo de start-ups e apoiador dos questionáveis protocolos preventivos contra a Covid-19. Nos dias seguintes a aprovação do texto na Câmara, Hang, Wizard e outros empresários, bem como representantes do governo, como o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o atual presidente Jair Bolsonaro, se encontraram para discussão sobre a aprovação e para articulação de reformas administrativas e tributárias. Marcelo Queiroga, atual ministro da Saúde, que também participou das rodadas de reuniões, declarou apoiar o PL e disse, estar vacinado “contra a Covid e contra intrigas”, pedindo união. Claramente, demonstra que minimiza críticas importantes sobre a sua conduta, enquanto chefe da pasta, e sobre a política adotada. Na verdade, ao solicitar união, tenta abafar a crítica necessária sobre a priorização dos interesses econômicos em uma enganosa possibilidade de conciliação.

A qualidade dessa disposição conciliatória pôde ser observada na vacinação clandestina da elite de Belo Horizonte ocorrida em março e expõe a quem serve o projeto aqui debatido. Esta cena resumiu todo o teor do pensamento individualista burguês que, mesmo presente em toda a sociedade, encontra na elite financeira sua sustentação ideológica. Em relações regidas pelo lucro que não questionam as implicações e consequências de uma atitude na primeira possibilidade de obter vantagens. É a esta classe e a manutenção destes princípios que o Estado se mostra a serviço.

A promessa da retomada econômica para um futuro promissor, portanto, se dirige a prosperidade da própria burguesia, que se beneficia da exploração, e que ampliará ainda mais a precarização do trabalho para manter seus lucros. A oficialização do fura-fila da imunização pela promessa do reaquecimento da economia é a mais descarada prova de que a união com os setores da burguesia não se orienta pelos interesses dos trabalhadores, pois se trata de um engodo para lançar outras milhões de pessoas aos riscos da Covid-19, mantendo os próprios interesses financeiros protegidos.

Já é sabido que sistema capitalista apresentava sinais de crise antes mesmo do início da pandemia, com massivos ataques aos direitos dos trabalhadores e ampliação do desemprego, pois seu limite não mais pode ser superado por remendos e reformas, iniciando um novo momento de austeridade. A pandemia apenas evidenciou e aprofundou o que já estava em curso. Mesmo com o retorno da atividade econômica, o avanço da precarização do trabalho não cessará, pois a conta da crise de um sistema em decadência será mais uma vez empurrada para os trabalhadores.

O que se apresenta, enfim, como questão é a sobreposição dos interesses econômicos a vida proletárias. A ineficiência em encontrar respostas adequadas para evitar o colapso da saúde e em empregar os avanços tecnológicos e os recursos financeiros para evitar milhões de mortes vem da incapacidade da sociedade burguesa em pautar esforços coletivos fora dos interesses do capital.

Como diz Engels (2010, p.307):

“Para ela [a burguesia], o mundo (inclusive ela mesma) só existe em função do dinheiro; sua vida se reduz a conseguir dinheiro; a única felicidade de que desfruta é ganhar dinheiro rapidamente e o único sofrimento que pode experimentar é perdê-lo. Essa avidez, essa sede de dinheiro impede a existência de quaisque manifestações do espírito humano que não estejam maculadas por ela”.

É preciso dissolver as ilusões sobre a sociedade burguesa e suas promessas benevolentes que em troca pedem união e apoio do proletariado, pois, invariavelmente, se revelam métodos de manutenção da exploração. O cenário atual tem oferecido condições para esta dissolução e para a ampliação da consciência das massas, a tarefa é pacientemente explicar este momento e construir lideranças com os trabalhadores e a juventude.

Referência:

ENGELS, F. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010.