Tributação sobre ganhos de capital, ouroboros do capitalismo

Na última terça-feira (23/2) o Senado aprovou o Projeto de Lei de Conversão 27/2015, que aumenta a tributação sobre transações de capital. O que está por trás da aprovação dessa medida?

Uma serpente que morde a própria cauda constitui mitologicamente um ouroboros, que simboliza a eternidade ou a evolução de um elemento em outro nível de existência. Uma interpretação metafórica da ação dos senadores na terça-feira (23/2) pode nos levar a interpretar a aprovação do Projeto de Lei de Conversão 27/2015 como um ouroboros político. A matéria legislativa aumenta a tributação sobre transações de capital. A mudança reduz um pouco da discrepância existente entre os impostos pagos por trabalhadores e pequenos empresários diante dos herdeiros de fortunas, megacapitalistas e megaespeculadores. Entretanto, muda muito pouco. Os afortunados do Brasil continuam contribuindo com uma porcentagem que, na prática, constitui uma profunda injustiça com os assalariados.

Hoje a legislação prevê a cobrança de alíquota única de 15% sobre ganhos de capital, que consiste na diferença entre os rendimentos recebidos com a venda de um ativo, como ação ou imóvel, e o custo de aquisição dele. Pela proposta aprovada no Congresso Nacional, as alíquotas adquirem um caráter progressivo sobre os ganhos de capital a serem tributados pelo Imposto de Renda. Para lucros menores que R$ 5 milhões, a taxa será de 15%. Já quando exceder esse valor, mas não superar os R$ 10 milhões, o pagamento será de 17,5%. Serão 20% em impostos para ganhos entre R$ 10 e 30 milhões. Quando maior que esse último valor, a quota a ficar com a União consistirá de 22,5%. Agora o PLC 27/2015 segue para sanção ou veto da presidente Dilma Roussef.

A proposta partiu do Palácio do Planalto sob a forma de Medida Provisória 692/2015, de 22 de setembro. O governo apresentou-a com o conjunto de medidas do ajuste fiscal por ele implantado. O objetivo foi aumentar a arrecadação do governo federal em 2015 com os ganhos de capital de pessoa física e, em alguns casos, de empresas. Porém, a rebelião da base aliada no Congresso Nacional retardou a votação da matéria. Postergada a aprovação para este ano, a presidente amargou também uma redução das alíquotas propostas, que conduzirá a uma menor arrecadação.

Apesar de representar uma fonte de recursos públicos que incide sobre os mais ricos, a mudança não altera as condições materiais que propiciam a existência de ricos a serem taxados e de trabalhadores assalariados pauperizados. E essa situação seria mantida mesmo se o projeto original do Poder Executivo fosse preservado. Na verdade, continuaria a atual lógica social mesmo com a adoção das ideias apresentadas por Lindbergh Farias (PT-RJ). Durante a discussão da MP, o senador cobrou um sistema tributário nacional mais rígido com os mais ricos, uma alíquota maior sobre lucros, dividendos e fortunas, além de um imposto diferenciado sobre a propriedade de jatinhos, helicópteros e iates.

Além disso, a MP 692/2015 e o PLC 27/2015 são parte da cesta de medidas adotadas pelo governo para cortar gastos de departamentos sociais e aumentar a arrecadação pública. Isso com o declarado e enfatizado objetivo de alcançar um superávit primário das contas públicas e aplicar esse no pagamento das dívidas públicas interna e externa da União. Traduzindo em termos políticos, o governo Dilma amplia a precariedade dos serviços e programas públicos para mostrar aos grandes capitalistas nacionais e internacionais que está comprometido em atender-lhes seus desejos, que em sua maioria contrapõem os dos trabalhadores e da juventude.

E, assim, devido ao contexto em que se aplica a maior tributação sobre ganhos de capital e à forma como aborda-se a medida, vários ativistas honestos e combativos, muitos dos quais reivindicam-se de esquerda, acabam defendendo medidas inofensivas para a estrutura social vigente. Isso porque reivindicar maiores impostos sobre fortunas, heranças, transações volumosas e bens de luxo não altera em nada as condições que propiciam o surgimento e manutenção dessas matérias a serem tributadas. Em última análise, toda essa situação baseia-se na existência da propriedade privada dos grandes meios de produção e bens de interesse público, além da acumulação privada de bens e capitais.

Evidentemente que não estou falando aqui dos bens de consumo e de subsistência de um assalariado, como casa, carro, poupança, geladeira, televisor etc. Isso não constitui capital e, muito menos, pode reproduzi-lo. Refiro-me ao processo de formação do capital financeiro, que perpassa a indústria, o setor de serviços e as atividades dos bancos e das bolsas de valores. São as condições de produção de mercadorias e de bens de consumo em escala nacional e mundial que propiciam que os 1% mais ricos do mundo concentrem mais riqueza que os outros 99%.

Pior que isso, esses ativistas, assim como várias organizações que dizem defender os trabalhadores e jovens, acabam dando suporte ao ajuste fiscal promovido por Dilma Roussef em franco ataque aos direitos adquiridos, aos serviços públicos e aos movimentos sociais. Os valores arrecadados pela União com o PLC 27/2015 incidirão sobre os grandes capitalistas e especuladores financeiros. Entretanto, esse recurso não tem nenhuma garantia para ser aplicado em serviços públicos. Pelo contrário, será todo usado para pagar juros e amortizações para banqueiros e especuladores da dívida pública brasileira. E isso somado aos cortes e privatizações que constituem outras frentes de arrecadação governamental para destinar direito público para o mesmo compromisso.

É claro que não nos opomos à ampliação da taxação dos mais os ricos, suas fortunas e seus bens de luxo. Entretanto, precisamos explicar o caráter parcial, limitado, reformista, dessa medida. E, no caso do PLC 27/2015, a tributação que propõe não trará nenhum benefício para a classe trabalhadora e a juventude. Precisamos enfatizar que ele faz parte de um conjunto de medidas que tem como principal foco a redução de gastos em serviços públicos, programas sociais e restrição de direitos. Esse dinheiro tributado sobre a transação de bens de capital, arrecadado pelo Estado, será repassado a setores empresariais e especulativos da classe dominante nacional e internacional. Aqui a serpente do capital obtém dinheiro dos ricos, faz o círculo com o dinheiro público e volta a abocanhar o próprio rabo, fazendo uma redistribuição de renda entre os ricos. Este é o ouroboros do capitalismo, buscando continuar seu ciclo de existência.

Para representar uma alteração real das condições sociais, a tributação sobre os ricos deveria estar condicionada integralmente a investimentos em serviços públicos, gratuitos e para todos. Entretanto, em um momento histórico de colapso permanente das economias capitalistas e de senilidade das classes dominantes e seus políticos, essa reivindicação precisa estar acompanhada de outras, para então tocar nas raízes da atual ordem das coisas. Os setores da burguesia brasileira, submissos ao imperialismo e às instituições podres do Estado burguês, são incapazes de tomar, de fato, qualquer medida que expresse as reformas sociais e políticas propostas por ela em seu período de ascensão e luta pelo poder contra a aristocracia e a monarquia. Por isso, é necessária uma Assembleia Popular Constituinte, que ponha fim às podres instituições que sempre atendem aos capitalistas e, assim, constituir um poder verdadeiramente do povo, um governo dos trabalhadores.

Um governo desse tipo poderia implantar as mudanças para alterar as condições de vida dos assalariados. Todos os grandes meios de produção estariam propícios a serem desapropriados, passando para controle da sociedade. A mesma coisa ocorreria com bens e serviços de interesse social. As grandes heranças seriam proibidas. Os privilégios, suprimidos. Haveria a chance de a riqueza advinda da produção de mercadorias e de bens de consumo ser distribuída entre todos, sendo assim sinônimo de desenvolvimento humano.

Alcançar esses objetivos, na atual situação, passa por reagrupar todos os que querem lutar, com independência de classe, pelo socialismo. Uma frente de esquerda que agrupe militantes, sindicalistas, jovens, estudantes, grupos, organizações e partidos dispostos a levar o combate conjunto na luta de classes. Uma frente de esquerda desse tipo poderia superar a fragmentação vivenciada pela esquerda, atrair a classe trabalhadora e a juventude, estabelecer um democrático espaço de debate e, também, de definição de lutas conjuntas contra este sistema capitalista, seus partidos decadentes e instituições serviçais da exploração e opressão.

A MP 692/2015 e o agora aprovado pelo Senado PLC 27/2015 representam uma maior taxação dos afortunados capitalistas. Entretanto, a medida busca tão somente angariar recursos públicos para gerar superávit primário para pagamento complementar da dívida pública. Nenhum centavo desse dinheiro será aplicado em serviços públicos ou programas sociais. Pior, a medida faz parte da cesta de cortes e ataques feitos pelo governo Dilma contra trabalhadores, servidores, movimentos sociais e a população em geral. A defesa dessa medida como colocada implica em dar suporte ao ajuste fiscal promovido pelo governo. Nossa tarefa consiste em explicar as limitações de uma medida como essa e o caráter reacionário que adquire no contexto em que é aplicada, ao mesmo tempo em que exigimos a aplicação integral do arrecadado em serviços públicos, gratuitos e para todos. Mais do que isso, precisamos apontar a necessidade de lançar luz sobre a raiz da existência das fortunas e da miséria, que consiste na propriedade privada dos meios de produção e na acumulação privada de bens e de capital. Reformar este sistema decadente é impossível, a tarefa é derrubá-lo para permitir a construção de um mundo novo.