Sobre Bauman e a Modernidade Líquida (Parte 2)

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Desemprego, Crises, Mercado e Consumo

Bauman percebeu o desemprego crônico e estrutural como uma condição contemporânea necessária ao sistema capitalista, e interpretou isso como mais um indicativo da fluidez informe da sociedade líquida moderna. A criação de empregos não segue sequer o crescimento vegetativo da população, assim um desemprego estrutural onde não há vaga suficiente para todos estimula a ansiedade, competitividade e instabilidade nessa era aparentemente líquida.

Estimativas da OIT projetam cerca de 201 milhões de desempregados no mundo hoje e que o número aumentará ainda em 2018. Em 2015, o desemprego global total foi estimado em 197,1 milhões, o que significava já 27 milhões desempregados a mais que em 2007, o último ano antes da grande crise de superprodução do capitalismo.

Ainda que as estimativas oficiais devam ser mais baixas que o número real, elas não podem ocultar que o número vem crescendo. A mesma OIT alerta que além do desemprego, cerca de 42% dos trabalhadores ocupados preenchem postos com alta taxa de vulnerabilidade, baixos salários e nenhum direito. E nos países subdesenvolvidos o número é ainda maior, com quase um em cada dois trabalhadores vivendo situação de vulnerabilidade. Em um terço desses países, o emprego informal afeta mais de 65% dos trabalhadores. Junto ao desemprego crônico, a desregulamentação do trabalho e da circulação dos capitais e a flexibilização das leis tributárias, criam uma polarização crescente, aonde um número cada vez menor de pessoas concentra um número cada vez maior de riquezas.

Em janeiro de 2016, relatório da ONG Oxfam afirmava que “as 62 pessoas mais ricas têm tanto dinheiro e bens quanto metade da população global”. Já em janeiro de 2017, relatório da mesma ONG indicava que apenas oito pessoas concentravam a mesma riqueza que 3,6 bilhões de habitantes do mundo, ou seja, o equivalente de 2017 aos mesmos 50% do ano anterior.

Os mesmos relatórios falam que em 25 anos o mundo terá os primeiros trilionários da história. Nitidamente o laissez-faire do mercado apenas amplia o monopólio de riqueza enquanto socializa a pobreza.

O próprio Bauman demonstrava a tendência de concentração crescente, a partir do aumento da remuneração de um diretor executivo das maiores empresas americanas em comparação com o salário médio de um trabalhador de fábrica. Em 1960, o diretor executivo ganhava doze vezes mais que o trabalhador. Em 1974, 35 vezes mais. Em 1980, 42 vezes mais. Em 1990, 84 vezes mais. Em meados de 1990, 135 vezes mais. E, em 2000, já era 531 vezes mais.

Essa concentração, já era prevista por Marx e Engels e inclusive utilizada para explicar a falta de independência política da pequena burguesia, extrato multifacetado, onde os mais pauperizados tendem a se identificar com o proletariado, enquanto seu extrato mais bem sucedido tende a se tornar o maior defensor dos interesses burgueses.

No século XX, desde o final da segunda grande guerra, por cerca de trinta anos, esses extratos pareciam estar seguros. Então, com a já citada crise de 1973 tem início a tendência de pauperização crescente dos extratos médios. Esse fenômeno, apenas um efeito colateral da tendência de concentração de capital no capitalismo monopolista, foi reinterpretada pelo sociólogo Guy Standing, da Universidade de Cambridge, que criou uma expressão para esse extrato crescentemente pauperizado, como se ele constituísse uma nova classe, o “precariado” (porque além da pauperização ele passa a integrar o grupo ameaçado por um desemprego crônico ou passa a trabalhar em condições cada vez mais precárias e instáveis, segundo o mesmo sociólogo). Bauman incorporava essa expressão e interpretação a suas análises, como um efeito inexorável da manutenção do sistema capitalista e via nesse fenômeno mais um exemplo do enfraquecimento das fileiras oprimidas na chamada Modernidade Líquida, e não o fortalecimento desses extratos como nos tempos da modernidade anterior, quando o proletariado, ao crescer quantitativamente incorporando a suas fileiras mais pessoas, sofria mudanças também qualitativas, dado que tais pessoas detinham conhecimentos e educação até então incomuns à massa proletária, antes de serem arruinados. O fato dos empregos precários não mais concentrarem trabalhadores em um mesmo espaço geográfico, como as gigantescas plantas das fábricas do século XX, concomitante ao fato de diferentes trabalhadores de um mesmo local poderem ser contratados por diferentes empresas, terem distintos empregadores, como no caso de terceirizados e prestadores de serviço subcontratados, dificultariam ainda mais a organização dos oprimidos da modernidade sólida em organizações como partidos e sindicatos:

“As instituições de ação coletiva, nosso sistema político, nosso sistema partidário, a forma de organizar a própria vida, as relações com as outras pessoas, todas essas formas aprendidas de sobrevivência no mundo não funcionam mais direito. Mas as novas formas, que substituiriam as antigas, ainda estão engatinhando. Não temos ainda uma visão de longo prazo, e nossas ações consistem principalmente em reagir às crises mais recentes, mas as crises também estão mudando”, declarou em entrevista ao programa Milênio da rede Globo News.

Essa situação de maior insegurança no trabalho tornaria as pessoas ansiosas e presas fáceis de um consumo compulsivo, um consumo irrefletido com objetivo de substituir a sensação de insegurança por uma sensação de potência durante o consumo; este passa a ser quase um fim em si mesmo, um ato aonde o indivíduo poderia sentir-se sujeito na sociedade contemporânea e aplacar momentaneamente os sentimentos negativos da sua condição social volátil.

Bauman compreende que o mercado não poderia trazer a solução à instabilidade e insegurança dessa modernidade líquida, ainda que houvesse o pleno emprego, dado que satisfazer consumidores seria a sua maior derrota, porque não teria mais nada para vender. A função do mercado, sob o capitalismo, é manter os consumidores permanentemente insatisfeitos. Um mercado orientado para as necessidades sociais, consequentemente, necessitaria de uma economia planificada, sob controle dos trabalhadores, conectando interesses e necessidades reais com a capacidade concreta de produção. É aqui que Bauman evita chegar, muito possivelmente pelas suas próprias decepções com as burocracias soviética e polonesa. Provavelmente, essas mesmas experiências com um Partido Comunista burocratizado e engessado o levaram a desconfiar das formas de organização tradicionais, confundindo essas mesmas organizações com suas direções. Não são as formas que substituirão as antigas que ainda estão engatinhando, são os jovens quadros que varrerão os velhos burocratas que ainda estão sendo forjados, no calor da luta de classes e a chamada modernidade líquida de Bauman, ao chocar-se com as necessidades concretas de organização, funcionará, se tanto, como têmpera.

É a luta de classes, seu Bauman!

Se Bauman não renega por completo o marxismo, por outro lado, evita algumas de suas categorias centrais, transformando-se assim em um tipo de revisionista reformista. Ele não trabalhava o conceito de luta de classes, o qual avaliava superado, entendendo o proletariado mundial derrotado pelo capitalismo financeiro, dada a aparente independência deste em relação ao setor produtivo concreto.

Daí que ele raramente passava do diagnóstico, o que deixava uma impressão de pessimismo, uma vez que grande parte do conjunto de problemas e contradições que ele relatava eram fatuais. Sua perspectiva era uma fórmula abstrata e geral, como as “formas que substituam as anteriores, mas ainda não criadas”.

Reconhecer que o mercado é incapaz de reparar os danos que causa ao criar problemas que não consegue resolver, é apenas reconhecer que esse poder é contraditório e sua orientação prática se dá no interesse direto dos seus beneficiados, que sendo poucos, prejudicam a maioria. Assim, a transferência de investimento em algum país subdesenvolvido, porque este possui mão-de-obra barata e desorganizada, coloca um poder maior de decisão e influência na economia que na política. Países com pouca indústria e desenvolvimento, aceitariam a transferência de plantas com a condição de regularem e legislarem pouco, ou nada, as relações de trabalho, permitindo a superexploração do trabalho local. Desse modo a política se apresenta cada vez mais como mera gestora dos interesses da economia, ao invés da capacidade de decidir o que e como deve ser feito. As nomeações de tecnocratas na gestão grega e a imposição da austeridade pela Troika ao primeiro ministro grego, mesmo após a vitória expressiva da opção que negava a austeridade em referendo popular, demonstra isso de forma dura e realista àqueles que possuem ainda ilusões em algum grau de independência nas instituições políticas, já compreendidas pelos marxistas como o espaço de gestão e aplicação dos interesses da classe dominante.

Mas isso não é apenas o desvelamento de uma contradição que os tempos anteriores à crise jogavam alguma opacidade? Que autonomia e primazia detém a economia hoje que já não dispunha há um século? A democracia algum dia passou de democracia formal? E, mesmo sendo, em última análise, o fator dominante, seu imperativo vem sempre prenhe de contradições que constituem a capacidade dialética de superação do quadro anterior, dito de outra forma, a negação do quadro atual da primazia da economia sobre o interesse social, engendrada pela própria hipertrofia da economia mundial.

A capacidade dos mercados é limitada, porque eles não podem evitar o surgimento de novas crises de superprodução capitalistas. Essas crises são, basicamente, a superabundância de produtos no mercado, que pela oferta excessiva não se realizam na forma mercadoria – troca com lucro. Essa superabundância ou superprodução é determinada pela busca, por parte do capitalista, da manutenção da massa de lucro ante a pressão constante da tendência da queda da taxa de lucro, pela automação e mecanização constante do processo de produção para barateamento e competitividade. Com a crescente queda da taxa de lucro a única forma de realizar a mesma massa de lucro anterior é vender mais, o que implica produzir mais. Como essa ação é praticada não por um único capitalista, mas por todos os capitalistas ao mesmo tempo, que buscam superar os outros e conquistar mercados deles, o salto da oferta é exponencial, gerando uma quantidade que o mercado simplesmente não pode absorver. A destruição de forças produtivas para regular a oferta e a tentativa de abertura de novos mercados, para criar demanda, permanecem as únicas formas de superação de uma crise de superprodução.

A liberdade a um mercado que se autorregularia foi a grande falácia das últimas décadas e após a crise de 2008 todo aquele que combatia essa ideologia aparecia agora mais lúcido a pessoas comuns e agora dispõe de uma audiência crescente.

Dada a necessidade de atacar o trabalho (a citada doutrina Tatcher/Reagan) para contornar a crise de 1973, um acordo temporário foi a disponibilização de crédito para não afetar o poder de compra e o padrão de vida da classe trabalhadora. Assim, o frágil pacto social (de fato nunca pactuado, mas imposto unilateralmente pela classe dominante) desta época buscava a manutenção do padrão de vida via acesso a bens de consumo, o que foi crescentemente estimulado para manter a mesma parcela da população consumindo incessantemente. E, concomitantemente, endividando-se incessantemente.

A Vida para o Consumo

Esse fenômeno Bauman analisa em seus livros e com maior detalhe no título “Vida para o Consumo”, onde ele faz constantemente comparações da vida consumista como sucedâneo da chamada modernidade líquida à segurança da antiga modernidade sólida. Como já explicado, o consumo é apresentado ao indivíduo, nesta fase do capitalismo, como uma panaceia para a insegurança e ansiedade crônicas vividas na crescente instabilidade do capitalismo em decomposição, a dita modernidade líquida.

Bauman era severamente crítico do consumo contemporâneo como substituto da criação de identidade e no livro acima referido fazia comparações ao consumo desenfreado e irracional contemporâneo, às cidades fantásticas da obra de Italo Calvino do livro “As Cidades Invisíveis”, e ao modus vivendi dos personagens/habitantes como alegorias das relações das pessoas entre si e com as coisas.

Quando Karl Marx explicava, no Capital, que a mercadoria é uma relação social transformada em uma relação entre sujeito (consumidor) e objeto (a mercadoria consumida), ele buscava desvelar a mercadoria como fruto de relações sociais, mediada por diversas etapas de trabalho social humano cristalizado no produto destinado à troca no mercado,  mediações que ficavam esmaecidas pela relação reificada e feitichizada, onde o caráter inanimado, quantitativo e automático dos objetos (um meio para uma finalidade do consumidor), jogavam opacidade em todo o processo de produção e as inúmeras mediações ocorridas em toda a cadeia produtiva até que o produto social se realize na forma mercadoria.

Assim, a parte do consumo será, no sistema capitalista, sempre a etapa menos racional do processo, porque muitas vezes fundada em necessidades artificialmente criadas e, mesmo assim, incorporadas de tal forma que a vida sem tal consumo (serviço ou mercadoria) parece impossível ao consumidor.

A solução utópica (distópica?) dos liberais, de que o mercado se autorregulamenta, fica novamente negada pelo consumo desenfreado e pelos modismos constantes onde as pessoas substituem objetos em plenas condições de uso, porque não são os mais modernos ou as versões mais “atualizadas”.

A oferta de softwares gratuitos como serviços aparentemente fora da lógica do capitalismo, na verdade são a confirmação dessa lógica. Exigindo hardwares mais potentes e modernos, eles obrigam os usuários a comprarem novos smartphones, desktops, laptops, tablets e outros objetos, porque estes rapidamente se incompatibilizam com novas versões ou mesmo atualizações dos softwares “gratuitos”. Ainda que as ações práticas com os novos hardwares sejam exatamente as mesmas com o hardware anterior, o consumo constante e acelerado se reveste da aparência de que o consumidor obteve vantagens na troca. Sendo a vantagem aparente, a sensação é efêmera e a frustração posterior é atenuada por nova onda de consumo.

Bauman detecta que a satisfação e a sensação de felicidade pelo consumo é cada vez mais fugaz, muitas vezes restringindo-se ao momento de aquisição do produto.

Sendo a orientação do mercado a produção de lucro crescente para acúmulo pelos capitalistas e não a satisfação de reais necessidades humanas, não deveria surpreender a impossibilidade de se atingir a felicidade e a realização pelo consumo.

Precariado ou Proletariado

Bauman se referia à exclusão contemporânea como uma exclusão da esfera do consumo, daí sua ênfase ao “precariado” de  Guy Standing. Para ele, os excluídos são os que não se enquadram na única atividade destinada aos sujeitos na sociedade contemporânea, o consumo. Definia os excluídos dessa esfera como “consumidores falhos”, porque não possuem condição econômica para consumir, embora recebam os mesmos estímulos para almejar tal atividade enquanto ideal de vida, de projetar a realização individual da própria felicidade através do consumo.

Pelos estímulos da TV e internet, acabam consumindo modos de vida através de personagens de ficção ou de realitiy shows, como um opiáceo que aplaque a frustração de não pertencer à esfera com condições materiais da esfera do consumo real.

“Na sociedade do consumo, as pessoas se divertem, se fascinam com coisas e gozam delas. Se você define seu valor pelas coisas que você tem e que te rodeiam, ser excluído é humilhante. E nós vivemos em um mundo da informação, todo mundo sabe tudo sobre todo mundo. Há uma comparação universal em que você não é comparado com a pessoa que mora ao lado, mas é comparado com pessoas de todo o mundo que tem suas vidas apresentadas como as vidas decentes, própria e dignas de se viver. É o crime da humilhação”.

Os meios de comunicação tornam as fronteiras muito próximas e o mundo muito pequeno, com a quase instantaneidade do acesso à informação. A quantidade de informação disponível na internet cresce exponencialmente, gerando número praticamente inconcebível a poucas gerações. E, no entanto, o que é mais acessado é o que há de mais fútil e superficial. O culto a personalidades transforma-se em culto a celebridades, mas na tal modernidade líquida, as próprias celebridades de ontem já se liquefizeram ou evaporaram hoje. Ainda que o noticiado sobre as celebridades seja sempre o mesmo, mudam as celebridades noticiadas, nessa dinâmica.

Mas, mesmo durante a modernidade sólida dá primeira metade do século XX, já não havia o mesmo culto à personalidades e a “literatura” mais fartamente consumida não era exatamente a de revistas que praticavam o escrutínio de suas vidas privadas?

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