Precisamos discutir segurança pública: O que o caso do Espírito Santo tem a nos ensinar?

A paralisação da polícia militar no estado do Espírito Santo serviu para apresentar um debate que precisa ser feito urgentemente: qual modelo de segurança a população precisa?

Este artigo pretende utilizar as problemáticas surgidas nesse cenário de caos para repensar algumas das alternativas para a questão da segurança pública e as alternativas para que a classe trabalhadora não seja mais refém dos tantos tipos de violência. Nesse debate, o tema desmilitarização da PM tem surgido como uma alternativa para o problema, dessa forma também iremos pensar suas vantagens e limites.

A paralisação da PM do Espírito Santo

A polícia do estado do Espírito Santo ficou mais de três semanas trabalhando com metade de seu efetivo. O motivo da paralisação foi o atraso no pagamento dos policiais, atraso nos benefícios e por melhores condições de trabalho. Na prática, essas reivindicações estavam sendo expostas e defendidas pelas esposas e familiares do militares, que acamparam na porta dos batalhões e impediam a saída das viaturas e dos policiais. Esse método de “greve” buscava impedir que os policiais não fossem culpabilizados e punidos pelos crimes de motim e deserção, tendo em vista que a lei militar não permite greves.

Na primeira semana de paralisação, onde 100% do efetivo de policiais (9.500) parou, foram registradas mais de 127 mortes, centenas de roubos de carros e inúmeros casos de lojas invadidas e saqueadas. O cenário foi caótico e a população ficou temerosa de até mesmo sair às ruas. Atualmente, cerca de um terço dos agentes ainda não retornaram às suas funções, por esse motivo o Estado dispõe de 3.450 militares das forças armadas atuando como polícia nas ruas, até que se normalize a situação.  Até o momento,  2.851 policiais já respondem por  “dano a sociedade ou a corporação”.

Os noticiários não paravam de falar sobre o assunto, inclusive houve também ameaças de paralisação da corporação no Rio de Janeiro, contudo, ninguém aponta uma saída definitiva para a barbárie que está em curso. O prefeito da cidade e as lideranças apenas pediam para que os policiais voltassem ao trabalho, afirmando que eles estavam fazendo o possível para regularizar os salários e benefícios. Contudo, a crise política e econômica que assola o país não permite qualquer tipo de certeza sobre o futuro desses e outros servidores públicos.

Muitas dessas reportagens jogavam a população contra a polícia e seus familiares, culpando-os pelo cenário de filme apocalíptico em que se encontrou o Estado. Houve inclusive ações da própria população contra as esposas dos policiais, no sentido de impedi-las de bloquear as saídas.

Uma luta justa?

O debate sobre o direito dos policiais é um assunto extremamente complexo. De um lado, nós, marxistas, defendemos o direito de todas as pessoas que exercem um serviço legal de receber seus salários e direitos, por outro lado é muito importante dizer que a polícia não é um servidor público idêntico aos demais. A função da instituição polícia é, em síntese, defender os interesses da classe dominante contra as classes dominadas, dessa forma, a polícia cumpre seu papel de “braço armado do Estado”, como explica Lênin.

Como defender essa instituição, que tem supostamente a função de servir a população, mas que, na prática, tem ações que se voltam contra a própria população? É preciso muita atenção para discutir esse assunto, sem cair em extremos que em nada contribuem para sua resolução.

Para os marxistas, o primeiro princípio é que não devemos materializar nos agentes (policiais) as críticas que temos contra a instituição (Polícia). Ou seja, defendemos que cada policial precisa receber seus salários e direitos trabalhistas, nenhuma família merece passar necessidades, em virtude da omissão do Estado burguês.

Por outro lado, não temos qualquer ilusão no Estado, e muito menos em sua Polícia. Na prática, abominamos todas táticas de repressão e violência que esta polícia usa contra a classe trabalhadora, seja através de seu racismo que mata milhares todos os anos nas favelas, seja sua truculência contra trabalhadores e jovens que vão às ruas lutar por mais direitos. Inclusive, muitos dos crimes que ocorreram no Estado do Espírito Santo foram atribuídos aos próprios policiais, o saldo dos assassinatos, em especial.

Sendo assim, nem defendemos que todos policiais são “monstros sem salvação” e nem tão pouco apoiaremos suas ações violentas. Desse modo não concordamos com a bandeira de que os policiais devam ter melhores armamentos, por exemplo. Pois, na prática, isso seria o mesmo que defender que devem aumentar os métodos de violência contra os trabalhadores. Nossas críticas contra a polícia são duras e incisivas, porém, são sóbrias, e se concentram no campo da política, onde entendemos que é a esfera onde devem ser colocadas.

As origens e a função da polícia

A polícia surge, no Brasil, como uma forma de fazer a proteção da Corte portuguesa, que chegou ao Brasil em 1808, fugida de Napoleão. Para garantir que a família real pudesse reinar sem interferências, foi criada uma espécie de Guarda Real de Polícia, e apesar de muitas modificações, sua “missão” permanece a mesma: garantir o direito à propriedade privada dos grandes meios de produção.

Um exemplo bem paradigmático é o Brasão da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro, onde duas armas de fogo entrecruzadas fazem a proteção de um pé de café e um pé de cana-de-açúcar e acima de tudo está a coroa portuguesa. Ou seja, o símbolo deixa evidente que as classes dominantes não hesitarão em usar da violência sempre que os interesses dos  burgueses (na época os latifundiários e aristocratas) forem ameaçados.

Essa mesma polícia (em suas muitas configurações) sempre reprimiu e matou negros e indígenas nas periferias urbanas e rurais em todo o país. Os motivos mais esdrúxulos (tocar samba, jogar capoeira, não portar carteira de trabalho) eram mais que suficiente para um policial se sentir no direito de esculachar, agredir ou prender um negro na rua. Hoje, a situação não é muito diferente; com a desculpa de que estão combatendo o tráfico de drogas a polícia entra na casa de trabalhadores, humilha famílias inteiras e agride sem qualquer medo de retaliação. Quando eles cometem assassinatos, alegar que foi em legítima defesa é mais que suficiente para saírem ilesos da culpa de homicídio.

Dessa forma a polícia cumpre seu papel de impor medo aos trabalhadores e à juventude, em especial contra as parcelas mais pobres da população. Sendo assim, os marxistas não têm qualquer ilusão de que essa instituição possa ser corrigida e reformada.

Muitos afirmam que o que falta à polícia é um “melhor preparo”. Contudo, entendemos que a polícia é muito bem preparada, ela cumpre muito bem o seu papel: reprimir. Não acreditamos que aumentar as horas de aula de “direitos humanos” do curso de formação de policiais irá mudar alguma coisa. A verdade é que a instituição polícia é uma estrutura podre por dentro e desmoralizada, e toda população sabe disso. Cada dia os casos de corrupção e abuso de poder ficam mais escancarados; policiais que estupram, policiais que vendem drogas, policiais que subornam, policiais racistas, policiais que agridem trabalhadores em greve e tantas outras barbaridades podem ser vistas na própria imprensa burguesa.

A própria ideia de “Polícia Comunitária”, que tinha a intenção de maquiar a função da polícia e aparentar ter uma proximidade com a população já foi pelo ralo. A UPP (Unidade de Policia Pacificadora) que tentou limpar a imagem da polícia também já mostrou seu fracasso. O caso do Pedreiro Amarildo foi apenas o caso de maior repercussão, mas milhares de outros exemplos de crimes policiais acontecem diariamente e a mídia não cobre. (Para saber mais sobre a UPP leia nosso artigo nesse link)

Dessa forma, é muito importante entender que o reformismo já se mostrou totalmente ineficaz para o caso da Polícia, assim como é para o capitalismo. Essas duas “estruturas” não podem mais ser reformadas, é necessário que elas desapareçam e que outros modelos sejam criados.

Em meio a esse turbilhão de informações, muitos militantes de esquerda estão insistindo na pauta da desmilitarização da polícia. Alguns afirmando que essa alternativa irá resolver o problema, outros defendendo que essa medida é um “primeiro passo” para solucionar as problemáticas que se relacionam ao tema.

Desmilitarizar é a solução?

Para a maioria dos defensores da desmilitarização a principal função da medida é combater a “lógica militar” presente nas corporações militares. Essa lógica inclui a subordinação hierárquica por patentes, proibição de greve, julgamento de militares pela própria Justiça Militar, entre outras atrocidades que tornam o militar incapaz de se colocar contra as práticas da corporação, ainda que o desejassem.

Obviamente, não defendemos nenhuma dessas práticas. Não acreditamos que os métodos da disciplina militar são capazes de criar pessoas aptas a evitar e mediar conflitos. A prática tem nos mostrado que o método da “solução pela violência” apenas tem gerado mais violência. O caso do Rio de Janeiro é um ótimo exemplo: cada dia mais a polícia aumenta seu poder de repressão e uso da força bélica e o crime organizado faz o mesmo, para tentar se manter acima. Ou seja, uma guerra para ver quem tem as melhores armas e equipamentos. Acontece que quem paga por essa guerra é a população, majoritariamente a pobre e negra. Temos uma das polícias que mais mata e que mais morre. O número de homicídios por armas de fogo o Brasil é assustador, sendo maior que em países em guerra.

Com a intenção de resolver esse impasse, alguns políticos fizeram propostas de modificação de leis. Um dos exemplos mais conhecidos foi  a PEC 51/2013, do Senador Lindbergh Farias (PT-RJ). Esse projeto busca alterar a constituição, modificando a estrutura da polícia no Brasil, por exemplo, unificando a polícia civil e militar, em uma única instituição civil.

O principal argumento para a essa forma de desmilitarização é que o caráter “militar” que se exerce sobre a polícia seria o responsável pela truculência e violência de suas ações, uma vez que seria da “essência” das instituições militares a preparação de seus agentes para a guerra. Esse argumento é abraçado inclusive por muitas organizações e militantes de esquerda.

É bem verdade que a Polícia Militar, enquanto força auxiliar do exército, é treinada e orientada a agir como se estivesse em uma guerra, uma guerra contra o pobre. Porém, nós marxistas sabemos que essa concepção não se dá porque a polícia é militar, e sim porque a polícia serve às ordens da burguesia, como já explicamos anteriormente. Dessa forma, ser militar não te torna necessariamente inimigo da classe trabalhadora, se fosse assim, os Bombeiros Militares deveriam receber a mesma caracterização que os policiais militares. Mas, sabemos que não é o caso, pois, apesar de ambos serem forças auxiliares do Exército, as suas “funções” não são as mesmas, inclusive a maneira como a população enxerga os bombeiros é outra. Da mesma forma que a Polícia Civil, seja no Brasil ou ao redor do mundo, também pode agir com tamanha truculência e de forma igualmente criminosa sempre que acharem necessário para cumprir seus interesses. Com isso, concluímos que o que torna a polícia militar o que ela é hoje não é o simples fato de ser militar, e sim a sua função dentro do Estado burguês.

Pensando dessa forma, a desmilitarização além de não resolver o problema, pode ainda agravar a situação, tendo em vista que os mesmos “agentes” que policiam as favelas e manifestações serão aqueles que farão os boletins de ocorrência e executarão a detenção (prisão até o julgamento) dos acusados.

Ou seja, na prática, se um policial te acusa de algo em uma manifestação, por exemplo, vandalismo, ele só tem o direito de te encaminhar para uma delegacia para que o delegado civil faça uma investigação e te encaminhe para a justiça te julgar. Se a polícia militar ganhar esse “poder” de realizar também a função de polícia judiciária, ou seja, de investigar as acusações dos crimes, muito provavelmente os abusos de poder irão aumentar. Sem falar dos casos que já ocorrem dentro das favelas, como por exemplo, em uma operação policial, onde o policial mata um jovem, e a família terá de ir prestar queixa para outro amigo desse policial, responsável por fazer o Boletim de Ocorrência.

Para tentar sanar esse problema a PEC 51 propõe uma Ouvidoria, onde a população teria o direito de denunciar erros policiais. Ouvidoria essa composta por membros que não poderiam ser policiais.

Entendemos que essa proposta de desmilitarização em nada garante o direito das populações mais pobres e perseguidas, talvez até aumente o poder da polícia, uma vez que propõe a Ciclo Completo, ou seja, a mesma polícia para todas as etapas do processo de segurança pública.

É bem verdade que o “espírito militar” piora muito a vida dos policiais, por exemplo, proibindo aqueles que discordam das regras ou “habitus” da corporação de se colocar contra ela. Contudo, entendemos que é necessário mais que apenas “maquiar” a PM, é preciso por fim a essa instituição e construir um novo modelo de segurança, onde o povo trabalhador seja realmente protegido e não apenas perseguido.

Eu quero o fim da Polícia Militar!

A Esquerda Marxista defende o fim da Polícia Militar! Não apenas sua reconfiguração enquanto instituição civil. Acreditamos que a desmilitarização não é suficiente para impedir que a repressão contra o pobre e negro cessem e nem mesmo para garantir os direitos mais básicos daqueles que fazem parte da corporação e que, por algum motivo, decidem se colocar contra ela.  Entendemos ser necessário construir uma nova forma de segurança pública, que realmente cumpra sua função de servir e proteger a população.

Este modelo de segurança pública não é possível dentro da estrutura política que temos hoje. Apesar disso não nos isentamos de explicar que a nossa concepção de segurança precisa ter como interesse a defesa dos direitos mais básicos da classe trabalhadora e não se colocar contra ela, como a PM faz atualmente.

A sociedade que defendemos não aceita que os interesses do capital, da propriedade privada, estejam acima da integridade física e psicológica dos trabalhadores e jovens. É necessário que a classe trabalhadora tome consciência de sua tarefa histórica e controle os serviços básicos, como educação, saúde e segurança. Somente quando a classe trabalhadora assumir em suas mãos esses serviços teremos a certeza que ninguém ficará de fora.

Quando a classe trabalhadora não aceitar mais a violência da polícia do Estado e nem a violência do crime organizado, ela sentirá necessidade de construir sua própria força de segurança. Esses comitês de autodefesa se colocam contra a polícia corrupta e o tráfico de drogas, e criam uma polícia realmente comunitária, onde a população se reúna regularmente para eleger as pessoas da própria comunidade para ocupar os cargos de direção e tomar todas as decisões sobre a segurança. Dessa forma, há a certeza que as direções escolhidas serão pessoas integras em seu caráter e caso ajam contra a comunidade poderão ser retiradas de seus cargos, caso haja comprovação de abusos ou corrupção.  Esses cargos não podem ser eleitos pelos mesmos métodos das forças militares e sua pirâmide hierárquica, que apenas serve para tornar os agentes mais selvagens e menos humanos, assim como não pode ser a justiça militar que julga os crimes de seus agentes, pois sabemos que na maioria dos casos os criminosos saem impunes.

Essas experiências já foram realizadas em países como México e até mesmo EUA. Nos EUA foi criado o Partido dos Panteras Negras em Autodefesa, onde os negros sentiram necessidade de organizar um partido para policiar a polícia, que agia de forma racista contra os negros dos bairros mais pobres. Como o Estado permitia a compra de armas, os negros do Partido decidiram fazer um trabalho de investigação contra os policiais que usassem “força desmedida” em suas ações, o que causou medo nos policiais, que então não tinham mais a vantagem da “força das armas” contra uma população desarmada e indefesa.

O Partido dos Panteras Negras não tinha apenas a intenção de defender a população negra no sentido mais imediato, ou seja, contra a truculência da polícia. Ele sentia necessidade de enfrentar, na raiz, o problema da desigualdade social, visto que era essa a razão dos principais problemas sociais das comunidades negras dos EUA. Obviamente que o governo americano não gostou dessa ideia, chegando a declarar que os Panteras eram o movimento mais perigoso que havia nos EUA. Dessa forma, sentiu necessidade de prender e assassinar as lideranças e despejar drogas nas periferias para piorar a vida dessas comunidades que já sofriam tanto com o descaso do capitalismo.

A luta contra a polícia hoje

Obviamente que as condições sociais não estão maduras o suficiente para extinguirmos todas as forças policiais. Entendemos que essa deve ser uma decisão da maioria da classe trabalhadora, que ao tomar sua consciência enquanto classe para si, sinta a necessidade de criar seus próprios comitês de autodefesa.

Sendo assim, discordamos dos companheiros que defendem a desmilitarização, como se esta deixasse de servir ao interesse do Estado burguês, ao mudar sua caracterização institucional. Esta solução revela uma certa esperança no Estado burguês e inclusive na polícia.

Por outro lado, não temos acordo com os companheiros que entendem que os policiais por cumprirem papel tão nefasto dentro do sistema capitalista devem ser excluídos dos direitos mais básicos que qualquer ser humano merece. Mesmo os criminosos, sejam policiais ou não, tem o direito que suas famílias possam se alimentar e sobreviver com dignidade. A nossa luta não é contra os filhos da classe trabalhadora, que muitas vezes são cooptados pelo sistema capitalista para implodir por dentro a classe trabalhadora.

Defendemos que todo policial que cometa crime deve ser julgado por ele (assim como qualquer civil) e cumprir a pena proporcional ao crime cometido. E, embora não tenhamos ilusões quanto à consciência de classe da maioria dos policiais, também não somos essencialistas ao definir que nenhum deles possa se juntar à classe trabalhadora, em situações de contradições sociais.

Defendemos o fim da Policia Militar, porque entendemos que quando a classe trabalhadora usar seus métodos de organização, não fará qualquer sentido haver uma polícia que deva satisfação ao Estado, ao invés de ser composta, e controlada pelos trabalhadores, para defender seus interesses históricos enquanto classe.

Mano não mate! Mano não morra! Paz entre nós e guerra aos senhores!

Felipe Araujo é professor de filosofia e membro do Movimento Negro Socialista (MNS).