Para onde vai a Coreia do Norte?

[O conflito diplomático-militar entre a Coreia do Norte e o imperialismo norte-americano escalou nas últimas semanas. Esperamos proporcionar, nos próximos dias, uma análise a respeito. Enquanto isto, colocamos à disposição de nossos leitores uma análise sobre a Coreia do Norte, escrita pela Corrente Marxista Internacional em 2006, que consideramos muito útil para a compreensão das características do regime norte-coreano e suas perspectivas no longo prazo].

A Coreia do Norte realizou uma prova nuclear subterrânea, atraindo a atenção dos meios de comunicação mundiais e enfurecendo os imperialistas, em particular a George W Bush. O que há por trás desse movimento? E, o que é mais importante, que está se passando com o regime da Coreia do Norte e sua economia? Este artigo tenta dar algumas respostas.

As tensões na península da Coreia estão aumentando rapidamente. Buscando capacidade de negociação em suas relações com o Ocidente e Japão, a Coreia do Norte neste ano anunciou planos para testar armas nucleares. Em seguida, em 7 de outubro, um punhado de soldados da Coreia do Norte cruzou a fronteira da Coreia do Sul, o que terminou com disparos de advertência dos sul-coreanos. A zona desmilitarizada (ZDM), que divide as duas Coreias, é uma das fronteiras mais militarizadas do planeta. Tecnicamente, os dois lados ainda estão em guerra, visto que somente há um cessar fogo, e não um tratado de paz, acordado em 1953 depois da Guerra da Coreia. Apesar de sua população de apenas 23 milhões, a Coreia do Norte tem atualmente o 5o exército mais grande do mundo, com cerca de 1,1 milhões de soldados. O exército da Coreia do Sul não é tão grande, mas está, sem dúvida, melhor equipado e tem o apoio de milhares de soldados estadunidenses.

Agora, a Coreia do Norte subiu ainda mais a aposta mediante a realização de provas nucleares em um bunker subterrâneo, causando um tremor de 4,2 na escala de Richter. O Centro de Investigação de Sismologia da Austrália estimou a explosão em torno de um kiloton, o equivalente a 1.000 toneladas de TNT. O ministro da Defesa russo, Sergei Ivanov, disse que ela oscilava entre os 5 e os 15 kilotones. A bomba lançada pelos EUA sobre Hiroshima em 1945 era de 12,5 kilotones.

Os mercados mundiais de valores foram sacudidos e o preço do petróleo reverteu sua recente queda gradual. A China recebeu aviso antecipado da prova e tratou de informar aos EUA, Japão e Coreia do Sul. Os EUA imediatamente ameaçaram com sanções e em paralisar ainda mais a já frágil economia da Coreia do Norte, embora a eficácia das ameaças seriam difíceis de prevalecer sem a cooperação chinesa. A Coreia do Norte depende principalmente da China para o comércio.

Em seu informe do Estado da União de 2002, George W Bush assinalou o Iraque, o Irã e a Coreia do Norte como participantes de um “eixo do mal”. Desde então, o Iraque foi invadido e ocupado, e o Irã é ameaçado diariamente, embora a possibilidade de uma invasão terrestre dos EUA seja muito pouco provável no momento, dada a desordem que existe no Iraque. Mas a administração Bush pisa com muito mais cautela quando se trata da Coreia do Norte, e é fácil de se ver o motivo.

A principal razão dada para agrupar estes regimes juntos foram seus presumíveis esforços para possuir e adquirir armas nucleares. O Iraque foi invadido sob este frágil pretexto e essas armas não foram encontradas. O Irã ainda não tem armas nucleares, mas está brincando de gato e rato com os EUA e a União Europeia, presumivelmente em um esforço para adquiri-las. A razão para isto é clara: o Iraque foi invadido precisamente porque os EUA sabiam que não tinha estas armas e, portanto, era um objetivo fácil. O regime iraniano sente naturalmente que a melhor maneira de evitar uma invasão é o desenvolvimento de armas nucleares como elemento de dissuasão.

Mas, no caso da Coreia do Norte, muitos no governo de Bush acreditavam há tempos que já tinha capacidade nuclear, bem como mísseis de longo alcance que podem chegar ao Japão e, possivelmente, mesmo à costa oeste dos EUA. Agora foram confirmadas as suspeitas de sua capacidade nuclear. Isto explica a atitude muito mais cautelosa de Washington quando se trata do regime de Kim Jong-Il.

A hipocrisia do imperialismo estadunidense não tem limites. É o único país que já usou armas nucleares durante uma guerra, destruindo duas cidades japonesas e matando mais de 200 mil civis. Conta com suficientes armas nucleares para aniquilar todo o planeta muitas vezes. E, no entanto, considera-se a si mesmo como o país que pode velar pelo mundo, ante o risco de quem pode ou não possuir estas terríveis armas.

Aceitar a ideia de que os EUA têm o direito de decidir quem pode ou não ter armas nucleares significaria aceitar que o mundo está a salvo nas mãos dos capitalistas estadunidenses, o que está muito longe da verdade. A oposição dos EUA a que a Coreia do Norte desenvolva uma capacidade nuclear não se baseia em nenhuma preocupação “humanitária” sobre o destino dos trabalhadores do mundo. Israel desenvolveu capacidade nuclear – e alguns de seus generais inclusive contemplaram a possibilidade de usá-la! – mas não houve nenhuma ameaça de sanções ou invasão. A Índia e o Paquistão têm, ambos, mísseis nucleares e tudo o que receberam em troca foi uma bofetada diplomática. O Iraque não tinha armas nucleares e foi invadido, com pelo menos 100 mil pessoas mortas no último período, tantas pessoas quanto mataria um míssil nuclear de tamanho médio.

De um ponto de vista histórico geral, o desenvolvimento de armas nucleares é uma total perda de recursos humanos e materiais. Mas, enquanto a sociedade estiver dominada por classes dominantes nacionais privilegiadas – no caso da Coreia do Norte, uma burocracia stalinista privilegiada – as mesmas se armarão até os dentes para defender seus privilégios, tanto face aos seus competidores quanto contra a classe trabalhadora.

Portanto, a única maneira de se garantir um mundo livre de armas nucleares é lutando pela derrubada destas classes dominantes. Somente quando o mundo estiver sob o controle dos trabalhadores de todos os países poderemos reorientar estes enormes recursos, atualmente desperdiçados com armas, para gastá-los com nossas necessidades reais, tais como saúde, educação, moradia etc.

Antecedentes históricos

Apesar do renovado interesse na Coreia do Norte, há pouca informação sobre o que realmente está se passando no interior do país. Que está acontecendo com a economia? Que está se passando dentro do regime? Em que direção se dirige?

Para começar, há que se indicar claramente que a Coreia do Norte nunca foi uma verdadeira sociedade socialista como concebemos os marxistas. Desde que nasceu, no final dos anos 1940, tem sido um regime stalinista, o que poderíamos descrever como um estado operário deformado; neste caso, um estado terrivelmente deformado; os meios de produção estão sob o controle do estado, mas o controle deste último está nas mãos de uma burocracia privilegiada.

A península da Coreia tem uma longa história de invasões e de resistência contra a ocupação externa. Através dos séculos, a Coreia foi ocupada ou atacada por um invasor após outro: os mongóis, os chineses, os japoneses e, no século XIX, os europeus, com a esperança de forçar a abertura do “Reino Ermitão”, como o fizeram com a China e o Japão. Depois da guerra russo-japonesa de 1905, a Coreia foi ocupada pelo Japão, que a anexou formalmente em 1910. Os japoneses começaram a industrializar o país, especialmente com a construção de estradas de ferro, mas também saquearam os seus recursos naturais e exploraram brutalmente o seu povo, governando com mão de ferro.

O movimento de independência se opôs ativamente à ocupação japonesa, alcançando o ponto culminante em 1 de março de 1919, quando milhares de manifestantes morreram e dezenas de milhares foram mutilados e encarcerados. Nos anos seguintes, dezenas de milhares de comunistas coreanos uniram-se ao Exército de Libertação Popular da China para lutar contra os japoneses na China e na Coreia, com Kim Il-Sung emergindo como um dos líderes mais proeminentes. À medida que seu império vinha abaixo, os japoneses foram finalmente expulsos e as forças de Kim entraram triunfalmente na importante cidade portuária coreana de Wonsan, respaldadas pelo exército soviético.

Como consequência da derrota do Japão na II Guerra Mundial, a península da Coreia foi dividida em duas no paralelo 38, com a União Soviética controlando o Norte e os EUA controlando o Sul. Esta divisão foi rejeitada quase unanimemente pelo povo coreano, mas, no período posterior à guerra, as grandes potências eram indiferentes aos desejos dos pequenos países do mundo, cinicamente utilizados como peões em seu jogo de xadrez mundial. Como era de se esperar, as duas partes não puderam entrar em acordo sobre um plano para a tutela conjunta de uma Coreia unida, e dois países separados foram formados finalmente à medida em que começava a Guerra Fria.

Em agosto de 1945, o exército soviético havia estabelecido a “Autoridade Civil Soviética” para governar o Norte até que se pudesse instalar um regime local que agradasse à URSS. Em 1946, Kim Il-Sung se converteu no líder do Comitê Popular Provisório da Coreia do Norte, o precursor da criação oficial da República Popular Democrática da Coreia (RPDC – Coreia do Norte), que foi fundada em 1948.

Kim Il-Sung concentrou os seus esforços na reunificação da península com base em um movimento revolucionário no Sul. Este plano chegou ao fim com o fracasso de uma insurreição em outubro de 1948. À raiz deste levantamento fracassado, o governo da Coreia do Sul de Syngman Rhi, apoiado pelos EUA, pôde estabilizar a situação, e, já em 1949, os EUA haviam retirado a maior parte de suas forças. Com o Sul relativamente sem proteção, Kim tratou de reunificar a península pela força. Bem armado com armas soviéticas e politicamente respaldado pela União Soviética, o exército de veteranos de Kim, adestrado em sua luta contra os japoneses, invadiu o Sul em junho de 1950, derrotando facilmente seus rivais sem experiência e capturando a capital do Sul, Seul. Os EUA, sob a folha de parreira das Nações Unidas, enviaram milhares de soldados e contra-atacaram as forças de Kim, fazendo-as recuar e capturando a capital do Norte, Pyongyang.

Incapazes de tolerar a presença das forças estadunidenses à direita de sua fronteira, e manobrando para conseguir influência regional frente aos seus rivais de Moscou, os chineses de Mao Zedong interviram em massa, vertendo centenas de milhares de tropas na fronteira em outubro de 1950, voltando a capturar Pyongyang e Seul em janeiro de 1951. Foi esta, quiçá, a derrota mais ignominiosa das forças armadas dos EUA na história, com a aniquilação virtual de uma unidade de 3 mil homens da 7ª Divisão da infantaria dos EUA na batalha do pântano de Chosin.

Dois meses mais tarde, as forças da ONU lideradas pelos EUA recuperaram o controle de Seul e, depois de um período de estancamento, foi declarado um cessar fogo em 27 de julho de 1953. A “Linha de Armistício”, próxima à linha divisória original do paralelo 38, foi separada por uma zona desmilitarizada, uma “terra de ninguém” através da qual centenas de milhares de soldados de ambos os lados estão mirando fixamente uns aos outros durante décadas, como dois países que continuam oficialmente em guerra.

Depois da guerra, o poder de Kim Il-Sung no Norte era praticamente absoluto, reforçado pelo apoio massivo e influente dos militares. Governou até sua morte em 1994, momento em que seu filho, Kim Jong-Il, o sucedeu como secretário-geral do partido oficial, KWP, e como Presidente da Comissão de Defesa Nacional, convertendo-se, de fato, em chefe do estado.

Estado operário deformado

Desde sua fundação, o modelo político da Coreia do Norte foi o da URSS stalinista. O poder estava centralizado no chamado Partido dos Trabalhadores da Coreia (KWP), com Kim Il-Sung como Secretário-Geral. Uma economia planificada, também tomada do modelo da URSS, foi introduzida. Antes e durante a II Guerra Mundial, a maior parte dos ativos do país havia sido de propriedade dos japoneses ou de seus colaboradores coreanos. Quando estes foram nacionalizados pelo regime de Kim em 1946, 70% da indústria caiu nas mãos do Estado. Em 1949, 90% da indústria havia sido nacionalizada. O poder dos latifundiários foi quebrado através da distribuição em massa da terra aos camponeses em 1946, e praticamente toda a produção agrícola havia sido coletivizada e se fundiu cada vez mais em grandes unidades produtivas, durante a década de 1950.

Devido ao massivo investimento na indústria pesada, incluindo a maquinaria agrícola, a economia se expandiu rapidamente na década de 1950. Apesar da devastação da Guerra da Coreia, e apesar da ineficiência e dos desperdícios da burocracia, os níveis de vida aumentaram claramente no Norte, na década de 1960. Mas os bens de consumo eram sempre escassos e a população foi submetida a mais extrema “disciplina” e pressão a partir de cima para aumentar a produtividade. Na década de 1970, o domínio da burocracia, a ausência de participação democrática na planificação da economia e a impossibilidade de se construir o “socialismo em um só país” deram lugar a um longo e constante declive do sistema, que continua até nossos dias. Em seus esforços para manter o poder, as oscilações cada vez mais erráticas do regime arrastaram a Coreia do Norte ao isolamento total do restante do mundo, o que significou um terrível sofrimento para o seu povo. A má administração e uma série de desastres naturais levaram a uma escassez generalizada na década de 1990, com mortes estimadas de até 3,5 milhões de pessoas.

A expropriação do capitalismo na Coreia do Norte foi, sem dúvida, um passo historicamente progressista. Mas desde o início a economia nacionalizada e planificada foi controlada a partir de cima por uma burocracia totalitária. Embora tenha havido alguma participação das massas coreanas na revolução social que anulou a propriedade privada nos anos posteriores à II Guerra Mundial, nunca houve controle e gestão operária e democrática através dos conselhos de trabalhadores (sovietes), que existiam no início da URSS sob Lenin e Trotsky. Da mesma forma que na maior parte da Europa Oriental depois da guerra, esta expropriação foi realizada burocraticamente a partir de cima, com base no poder militar e no poder e nos interesses econômicos e políticos da União Soviética. Não foi o resultado da participação ativa e democrática das massas coreanas em uma revolução proletária a partir de baixo. Como resultado, embora o controle da URSS não fosse direto como o foi em países como a Bulgária ou a Checoslováquia, foi desde o início um Estado operário deformado.

A doutrina Juche

Estes inícios totalitários e burocráticos estabeleceram o rumo para todo o desenvolvimento posterior e cada vez mais bizarro do regime. Longe do internacionalismo proletário intransigente dos Bolcheviques, os dirigentes stalinistas norte-coreanos se basearam no nacionalismo e no isolamento mais estreito e reacionário. Levaram ao extremo a desacreditada teoria do “socialismo em um só país”, que se resume em seu conceito do Juche (autossuficiência) que, de acordo com Kim Jong-Il, faz parte do “Kimilsungismo”. De acordo com a página web do estado: “Os líderes [Kim Il-Sung e Kim Jong-Il] são o Sol da nação e da humanidade”. O país conta com seu próprio calendário Juche, no qual o “Ano um” é o ano em que nasceu Kim Il-Sung em 1912. Este é um exemplo extremo do chamado “culto à personalidade”. Nem Stalin ousou tanto.

Mas o particularismo nacionalista do regime da Coreia do Norte vai ainda mais longe disto. Inclusive a palavra “marxismo-leninismo” (que era utilizado pela maioria dos regimes stalinistas no passado, pelo menos formalmente) foi substituída por Juche em todas as publicações do Partido Comunista, e mesmo na Constituição da Coreia do Norte na década de 1970. O acesso aos escritos clássicos de Marx, Engels e Lenin é severamente restrito. Do que foi dito, fica claro até que ponto este regime tem tão pouco a ver com o verdadeiro “marxismo-leninismo”, que é internacionalista até a medula.

Compare-se isto também com o comportamento dos Bolcheviques depois de sua chegada ao poder em 1917. Os Bolcheviques fizeram exatamente o contrário dos stalinistas da Coreia do Norte: mudaram o calendário russo para adaptá-lo à versão ocidental mais geralmente aceita, com a finalidade de se conectarem melhor com as lutas do proletariado mundial.

Uma crescente contrarrevolução

As massas da Coreia do Norte estão sofrendo condições terríveis. Sofrem sob um regime totalitário sem precedentes e uma direção burocrática despótica, ademais de todas as misérias a elas infligidas pelo imperialismo hipócrita. A economia da Coreia do Norte se choca contra um muro há muito tempo, devido ao fato de sua burocracia ser totalmente incapaz de desenvolver as forças produtivas dentro dos estreitos limites de suas fronteiras e do sistema totalitário. Mas exatamente ao lado temos o auge da China, onde a abertura do país ao capitalismo deu lugar a níveis sem precedentes de desenvolvimento e crescimento econômico. O destino da pequena Coreia do Norte sempre esteve ligado em grande parte ao de seu gigantesco vizinho. Como dissemos, a Coreia do Norte depende em grande medida da China para o abastecimento de material, alimentos e demais. A China tem a alavanca para exercer pressão sobre o regime da Coreia do Norte e para empurrá-la na direção que desejar. Esta influência econômica é muito mais poderosa que qualquer bomba atômica.

Nestas circunstâncias, apesar da retórica superficial, a abertura a uma economia de mercado mais “livre” parece atraente para muitos burocratas na Coreia do Norte. Mas o retorno ao capitalismo é a resposta ao sofrimento do povo da Coreia do Norte? Definitivamente, não! Não há que esquecer que junto ao desenvolvimento econômico na China temos ali uma classe operária em condições de miséria similares às do século XIX na Grã-Bretanha. Há uma grande polarização, com riqueza extrema de um lado do espectro e terrível pobreza do outro.

Os marxistas não podem de forma alguma apoiar um retorno ao capitalismo. Defendemos a conquista fundamental da revolução da Coreia do Norte, a economia planificada de propriedade do estado, apesar das deformações burocráticas. Opomo-nos às invasões militares e diplomáticas do imperialismo. O imperialismo norte-americano, através de seu títere local, o regime da Coreia do Sul, ficaria encantado de pôr suas mãos sobre a Coreia do Norte, obtendo assim outro ponto de apoio a partir do qual pressionar a China na região. Não faria isto para melhorar as condições de vida das massas da Coreia do Norte.

Mas o problema que enfrentamos na Coreia do Norte é que a própria burocracia do regime de Kim Jong-Il está pondo em risco o que resta da economia planificada, e seria um absurdo acreditar que as conquistas da revolução estão a salvo nas mãos destes burocratas. Não esqueçamos que os stalinistas chineses e russos (embora seguindo caminhos diferentes) estiveram dispostos a abandonar décadas de retórica “socialista” e a lançar-se no caminho do capitalismo. A burocracia da Coreia do Norte é fundamentalmente a mesma.

A razão disto era, no caso da Rússia, que seu próprio regime burocrático havia chegado a um completo beco sem saída. Já não podiam desenvolver as forças produtivas. Queriam manter seus privilégios materiais, e viram o capitalismo como uma alternativa. Foi este precisamente o caso no final dos anos 1980, quando o capitalismo no Ocidente estava passando por um auge importante. Na China, a burocracia podia ver seu próprio desaparecimento futuro na crise enfrentada pela União Soviética e Europa Oriental. Portanto, decidiu guiar ativamente o processo na direção do capitalismo em vez de enfrentar um colapso repentino como na União Soviética. A burocracia da Coreia do Norte parece que se decidiu a seguir o caminho tomado por seus homólogos chineses. Não se pode contar com estes burocratas para a defesa das conquistas da economia planificada de uma maneira séria.

Um novo “tigre asiático”?

Está claro que uma camada significativa do regime da Coreia do Norte espera emular o exemplo da China. Uma mudança definitiva na atitude da burocracia parece ter ocorrido em meados de 2002 e, desde então, se fizeram muitas concessões ao capitalismo.

Por exemplo, em setembro de 2002, o governo da Coreia do Norte anunciou o estabelecimento de uma “zona financeira internacional” em Sinuiju, uma área na fronteira com a China. Esta zona de livre mercado, conhecida como o “Hong Kong coreano”, ia funcionar de forma autônoma, com seu próprio sistema jurídico e econômico. Inclusive foi programada para emitir seus próprios passaportes e eleger seu próprio chefe de polícia. Como disse The Economist (10/12/2002) nesse momento: “A ideia de uma zona capitalista em Sinuiju parecia ser ainda mais audaz que a decisão da China em 1980 de estabelecer o que chamam de ‘zonas econômicas especiais’, nas que se introduziram as políticas de tipo capitalista”.

Este projeto não chegou até agora a nada depois que o governo chinês detivesse a Yang Bing, um capitalista de Hong Kong e, antes, o segundo homem mais rico da China, que ia ser o primeiro governador da nova zona de livre mercado. Detido por corrupção e sonegação de impostos, o mais provável é que a verdadeira razão é que os capitalistas chineses rivais estavam preocupados de que Yang e os norte-coreanos competissem com eles, inclusive com trabalho escravo virtualmente mais barato. O estancamento deste projeto também pode ser um reflexo das contradições inevitáveis dentro da burocracia da Coreia do Norte, dividida entre si, e sobre a maneira de abrir o país ao capitalismo. Apesar da desaceleração neste front, há uma ampla evidência de que a Coreia do Norte já se dirigiu pelo caminho da China.

A velha estrutura econômica do Estado está sendo desmantelada pouco a pouco, eliminando a única conquista real da revolução social, a economia planificada. Em julho de 2002, se deu fim ao racionamento e ao sistema de distribuição que proporcionava eletricidade e alimentos grátis aos trabalhadores. Ao mesmo tempo, os preços controlados pelo governo foram liberalizados, foi dada mais independência à empresa privada e se estimulou aos agricultores a perseguir lucros. A razão dada por um funcionário do governo foi que isto estava destinado a fazer com que os trabalhadores “mostrassem entusiasmo pelo trabalho”.

Isto é claramente uma tentativa de afastar os trabalhadores da Coreia do Norte do Estado e de levá-los à economia de mercado. Já vimos isto antes. Agora os trabalhadores devem incrementar sua produtividade se quiserem um salário decente. Trata-se de medidas com as quais os trabalhadores no Ocidente já estão acostumados. Os acordos de produtividade não lhes são estranhos. Mas também implica em apertar os parafusos à classe trabalhadora.

O estado da Coreia do Norte também concentrou parte de seu investimento em empresas capitalistas fora de suas fronteiras, associado a empresas da China, Rússia, Tailândia e Japão (embora a pressão dos EUA tenha restringido severamente os laços econômicos com o Japão). Desde cadeias de restaurante a hotéis de luxo, de programas de informática e provedores de Internet aos medicamentos genéricos, o estado da Coreia estabeleceu uma loja em vários países, num esforço para gerar receitas para sua economia privada de fundos. Mas este dinheiro enviado do estrangeiro, embora controlado pelo Estado, pode desempenhar um papel importante na aceleração do desenvolvimento dos incipientes capitalistas da Coreia do Norte.

Dentro da própria Coreia do Norte, elementos de capitalismo estão brotando lentamente, mas sem pausa. Não nas zonas econômicas especiais, mas dentro da própria economia da Coreia do Norte. A crise de extrema escassez de alimentos da década de 1990 conduziu ao surgimento de hortas pessoais, como uma forma de evitar a inanição. No entanto, nos últimos anos, milhares de micro granjas surgiram, pequenos bastiões do capitalismo, produzindo para o mercado privado e para ganho pessoal, não coletivo. No final de 2002, abriu-se no país o primeiro mercado autorizado pelo governo. Os preços são negociados e determinados pelo mercado, não pelo Estado, e um próspero mercado negro surgiu deste terreno fértil. De acordo com os fornecedores, a concorrência é cada vez maior e o mercado foi ampliado em grande medida desde que foi aberto pela primeira vez.

Não é surpreendente que milhares de empresários chineses tenham formado fila para conseguir um pedaço do “último território virgem para o capitalismo”. A partir de um vasto mercado negro (que se encontra sob a Praça Kim Il-Sung), até a enorme loja do edifício Pyongyang 100, o investimento está acelerando. Obras de construção estão aparecendo por todos os lados, e há muito mais automóveis nas ruas e tratores nos campos do que em qualquer momento de memória recente.

Asia Times (8 de agosto de 2006) informa sobre o aumento do investimento externo dos capitalistas chineses:

“O investimento direto não financeiro da China na Coreia do Norte foi de aproximadamente 14,9 milhões de dólares em 2005 e de 14,1 milhões de dólares em 2004, passando de 1,1 milhões de dólares em 2003, segundo as estatísticas do Ministério do Comércio da China. O comércio bilateral alcançou quase 1,4 bilhões de dólares em 2004, e saltou adicionalmente a aproximadamente 1,6 bilhões de dólares em 2005, enquanto que nos primeiros cinco meses de 2006 alcançou os 610 milhões de dólares”.

“’Creio que os produtos da China ocupam em torno de 70% do mercado de Pyongyang, os produtos locais tomam outros 20% e os outros 10% estão divididos com outros, como o Japão e a Rússia’, disse Xu Wenji, professor do Instituto de Pesquisas do Noroeste da Ásia da Universidade de Jilin, que realizou uma visita de 20 dias a Pyongyang em março”.

O complicado raciocínio da burocracia norte-coreana lembra a linguagem utilizada por seus homólogos chineses. De acordo com So Chol, um porta-voz do Ministério dos Assuntos Externos da Coreia do Norte, “Ainda estamos construindo nosso sistema socialista, mas tomamos medidas para expandir o mercado aberto. São apenas os primeiros passos e não devemos esperar muito, mas já estão mostrando resultados positivos”.

Mas como na China, o desmantelamento gradual da economia do estado e o movimento na direção do capitalismo resultaram em tremendas contradições sociais. Os riscos de uma explosão social são claros. Como informado em The Guardian (3 de dezembro de 2003), Hazel Smith da Universidade das Nações Unidas em Tóquio explica: “Os extremos da pobreza e da riqueza estão crescendo à medida em que as relações de mercado definem crescentemente a economia. Agora, não há economia socialista, mas também não há estado de direito para o mercado. Esta é a base da corrupção”.

The Guardian continua:

“Mas ainda há limites à atividade capitalista. Os agricultores disseram que tinham mais dinheiro, mas nenhuma liberdade para gastá-lo. Acadêmicos da Universidade de Tecnologia de Kimchek disseram que se lhes havia ordenado que vinculassem suas investigações com telefones móveis, software de criptografia e computação a empresas privadas, mas até agora foram incapazes de encontrar oportunidades de negócio”.

A extensão em que o setor estatal foi desmantelado e as relações de mercado foram introduzidas na Coreia do Norte não está inteiramente clara, mas é óbvio que o ritmo está se acelerando. Não se pode dizer com clareza quão longe o processo já foi. Parece estar à zaga do processo na China, mas a direção parece bastante clara. Será o vizinho gigante que determinará a direção do processo na Coreia do Norte.

No entanto, a burocracia norte-coreana certamente sabe dos riscos envolvidos nesta marcha para o capitalismo, que na China ocorreu durante décadas e não sem significativas convulsões, tais como os protestos de massa de 1989 na Praça Tiananmen (Praça da Paz Celestial, nota do editor). Mas a bancarrota de seu estreito totalitarismo burocrático deixa-lhes poucas opções.

Resta saber se eles podem ou não controlar o ritmo do desenvolvimento do capitalismo dentro do país. Se for demasiado rápido, pode ser acompanhado por uma tremenda inquietação social e por um súbito colapso da economia e do estado, como experimentaram a União Soviética e a Europa Oriental. Devido ao extremo isolamento e à severa doutrinação de sua população, os riscos de uma explosão social violenta, à medida em que a máscara “comunista” da burocracia se desprender, é talvez maior do que em qualquer estado estalinista da história. Kim Jong-Il não quer acabar como Nikolai Ceaucescu na Romênia – ignominiosamente julgado e executado por seus próprios oficiais.

O comportamento da China sobre esta questão é importante. Foi a principal aliada da Coreia do Norte durante muitos anos, servindo como intermediária entre o Ocidente e o regime de Kim Jong-Il. Os recentes testes nucleares da Coreia do Norte colocaram-na numa posição difícil, na medida em que agora será pressionada pela “opinião pública mundial” (isto é, os EUA) a impor sanções, o que prejudicaria os seus interesses comerciais e políticos na região. A administração Bush está, de fato, exigindo sanções, mas estas somente se tornariam efetivas se a China as impor.

E a China não vai provocar o colapso do regime norte-coreano. Isto teria um efeito desestabilizador sobre toda a região e as sequelas também teriam um efeito sobre a própria China. A liderança chinesa tem outra estratégia em mente. Ela usará seu músculo econômico para gentilmente empurrar o regime norte-coreano pelo caminho que a China tomou. Afinal, a experiência da velha burocracia chinesa tem sido a de se mover cuidadosamente, gradualmente, para o capitalismo, tentando o tempo todo evitar um deslocamento social. Ela aconselhará seus amigos norte-coreanos a fazer o mesmo.

Obviamente, estes burocratas não estão verdadeiramente preocupados com o bem-estar das massas. Estão preocupados com suas próprias vantagens e privilégios. A burocracia norte-coreana está em estágio avançado de degeneração. Durante décadas viveram totalmente separados das massas trabalhadoras que eles reivindicam representar. Mas pelo menos defenderam a economia planificada. Agora, estão claramente abandonando isso. O capitalismo é muito tentador, e existem muitos capitalistas chineses dispostos a lhes dar uma mão. A Coreia do Norte é um pequeno país e não pode ir sozinho por muito mais tempo.

Com seu destino tão proximamente ligado ao da China, a burocracia norte-coreana já pode ter decidido ir completamente ao capitalismo numa tentativa de preservar seus próprios privilégios. Isso seria um imenso passo atrás para os trabalhadores norte-coreanos. O principal problema que a burocracia norte-coreana está enfrentando é que não pode esperar desempenhar o mesmo papel como na China. A China é um estado poderoso, com imensos recursos econômicos e emergiu como uma das principais potências em escala mundial. O futuro de uma Coreia do Norte capitalista seria determinado primeiramente pela China, mas também pelo Japão e pelos EUA.

Nesta base, seria lógico que um conflito interno irrompesse dentro da burocracia. De fato, alguns dos aspectos mais bizarros do regime, e seu desejo de ter um dos mais fortes exércitos do mundo, e agora capacidade nuclear, indicariam que a burocracia está em primeiro lugar interessada em sua própria sobrevivência como camada privilegiada. Como não pode garantir isto puramente por meios econômicos, está determinada a fazer isto por meios militares. Mas, no longo prazo, esta não é nenhuma solução. Os fatores econômicos acabarão por dominar.

Para se encontrar uma solução genuína para os problemas das massas norte-coreanas, é necessário outro caminho. A única forma verdadeira de se defender as conquistas da economia nacionalizada e planificada é introduzir uma democracia operária genuína, baseada no controle e na gestão dos trabalhadores e adotar uma política operária e internacionalista em todas as questões.

Um verdadeiro regime comunista basear-se-á nos seguintes quatro pontos assinalados por Lenin como a base da democracia dos trabalhadores: Eleição direta e direito de revogação a qualquer tempo de todos os funcionários; nenhum funcionário deve receber um salário mais alto que o salário de um trabalhador qualificado; nenhum exército permanente, mas o povo armado; as tarefas de administração do estado devem ser realizadas por todos, em rodízio. É claro que nenhuma dessas condições existem hoje na Coreia do Norte. E estas foram as condições colocadas por Lenin, não para o socialismo ou comunismo, mas para o período imediatamente seguinte à derrubada do capitalismo, a “ditadura do proletariado” (isto é, a democracia dos trabalhadores);

Unificação?

A reunificação da Coreia seria apoiada por milhões de coreanos, muitos dos quais foram separados de seus parentes e casas pela divisão arbitrária. Mas, para os marxistas, não é uma questão indiferente sobre que bases econômicas a reunificação ocorre.

A Coreia do Norte pode enfrentar em algum momento do futuro um cenário similar ao da Alemanha em 1989, quando a mais poderosa Alemanha Ocidental capitalista absorveu a Alemanha Oriental. A Coreia do Sul, com o apoio do imperialismo dos EUA pode ser utilizada da mesma forma. Se o Norte for absorvido desta forma em uma Coreia unificada e dominada por forças amigáveis aos EUA, as ambições da China de controlar uma Coreia do Norte capitalista seriam muito mais difíceis. A China está, portanto, exercendo pesadamente suas próprias pressões econômicas e diplomáticas. Devemos ser claros: de qualquer forma, isto significaria a vitória da contrarrevolução capitalista.

Assim, sob as presentes condições, a Península Coreana só pode ser reunificada sob apenas uma das duas formas seguintes: 1) a vitória da contrarrevolução capitalista e a anexação do Norte pelo Sul segundo o modelo alemão; 2) uma revolução proletária se desenvolvendo mais ou menos simultaneamente em ambos os países.

No entanto, aqui temos que introduzir uma palavra de cautela. A situação, embora tenha alguns paralelos com a Alemanha de 1989, também tem diferenças importantes. O poder por trás do velho regime da Alemanha Oriental era a União Soviética. A economia soviética estava em crise severa e não se encontrava em posição de reforçar seus satélites na Europa Oriental. A União Soviética estava prestes a entrar em colapso também, com a ruptura que ocorreu em 1991.

A Coreia do Norte tem um vizinho poderoso na China, cuja economia ainda está se desenvolvendo em ritmo muito rápido. Longe de estar enfraquecida, a China está se fortalecendo. A Coreia do Sul é uma esfera de influência dos EUA e a China não quer que a Coreia do Norte seja absorvida pelo Sul. Portanto, mesmo sobre uma base capitalista, não há garantias para assegurar que o capitalismo em ambos os lados da fronteira signifique necessariamente a unificação imediata.

Em qualquer caso, para a unificação ocorrer sobre uma base socialista, o Norte deveria passar por uma revolução política, deixando intacta a economia planificada (enquanto reafirma o controle do estado sobre aqueles elementos das relações de propriedade capitalista que o atual regime permitiu que se desenvolvessem), mas removendo a burocracia totalitária e substituindo seu governo pelo controle democrático dos trabalhadores nas linhas dos sovíetes da Rússia em 1917.

No Sul, se requereria uma revolução social, expropriando os exploradores da Hyundai e da Samsung e colocando a economia sob o controle e gestão democrática dos trabalhadores. A classe trabalhadora da Coreia do Sul mostrou repetidas vezes sua vontade de lutar nos últimos anos. Nos últimos 20 anos vimos inclusive movimentos de caráter quase insurrecional por parte da classe trabalhadora da Coreia do Sul. O regime sul-coreano sempre respondeu com brutalidade, um exemplo claro para os trabalhadores de ambas as Coreias de que, na realidade, o capitalismo não tem nada a ver com “liberdade e democracia”.

Libertos dos grilhões da exploração capitalista no Sul e da ineptidão burocrático totalitária no Norte, os recursos tecnológicos e naturais da Península Coreana floresceriam nas mãos da classe trabalhadora coreana. Na base de uma economia unificada e democraticamente planificada, as privações sofridas pelo povo da Coreia do Norte seriam rapidamente revertidas e o nível de vida de todos os Coreanos se elevaria de maneira geral.

A luta revolucionária por um regime socialista genuíno nas duas Coreias também produziria um enorme impacto internacional, particularmente sobre os trabalhadores da China. De fato, sem a ajuda dos trabalhadores chineses, qualquer revolução na Coreia enfrentaria enormes dificuldades. Ficaria sob uma enorme pressão dos capitalistas chineses, da burguesia japonesa e do imperialismo dos EUA em particular, cada um tratando de tirar o máximo proveito possível.

O que fracassou na Coreia do Norte, mais uma vez, foi a teoria totalmente falsa do “socialismo em um só país”, e, em particular, a tentativa de estabelecer um regime autárquico, isolado do restante do mundo, distanciando-se da divisão internacional do trabalho. Se a China não pôde manter esse regime, como o pode esperar fazer a pequena Coreia do Norte?

Como revolucionários marxistas temos que apontar para outra perspectiva. A escolha não é necessariamente entre um regime stalinista opressivo, por um lado, e o capitalismo desenfreado, por outro. O único caminho à frente é o do internacionalismo proletário revolucionária, o caminho da verdadeira democracia operária tanto ao Norte quanto ao Sul da fronteira.

10 de outubro de 2006

Artigo publicado em In Defence of Marxism originalmente no dia 10 de outubro de 2006 e republicado no dia 26 de abril de 2017, sob o título “Where is North Korea Going?”.

Tradução de Fabiano Leite