Para aonde vai a “Democracia Socialista”? Parte 7

Antonio Gramsci e o conceito de hegemonia

Existe um grande esforço atualmente, por um grande número de intelectuais marxistas e movimentos políticos em reivindicar o pensamento do marxista italiano Antonio Gramsci e a considera-lo como parte integrante do patrimônio cultural da humanidade. Nada mais justo.

Antonio Gramsci e o conceito de hegemonia

Existe um grande esforço atualmente, por um grande número de intelectuais marxistas e movimentos políticos em reivindicar o pensamento do marxista italiano Antonio Gramsci e a considera-lo como parte integrante do patrimônio cultural da humanidade. Nada mais justo. Gramsci deu uma contribuição singular ao marxismo com suas analises sobre a política, a luta de classes e o Estado moderno. Foi o único dirigente do Partido Comunista Italiano, nos anos 20, a prever o perigo que representava o fascismo para a classe operária na Itália. Mas Gramsci vai dar uma grande contribuição ao marxismo ao aprofundar conceitos sobre a tática da frente única operária, que vão formar a base de suas reflexões sobre a hegemonia (consenso no proletariado), bloco histórico (política de alianças entre as classes populares), guerra de posições (lutas e combates parciais do proletariado) e guerra de movimento (assalto ao poder, greve geral e insurreição). Desgraçadamente, Gramsci, mesmo na condição de deputado do PCI, vai ser vítima da repressão do estado fascista italiano de Mussolini e vai passar uma década preso (1927-37). Só vai ser solto, muito doente, um pouco antes de morrer. Vai ser na prisão que Gramsci vai estudar detalhadamente os conceitos de hegemonia e bloco histórico, contidos nos célebres Cadernos do Cárcere. Será na prisão também que o marxista italiano vai romper com Stalin e o regime burocrático soviético, o que vai lhe valer uma expulsão secreta do PCI efetuada, pelo até então, seu melhor amigo, Palmiro Togliatti.

Antonio Gramsci esteve a frente do movimento dos conselhos operários de fábrica, em Turim, no período de 1919-20, sendo o editor do jornal L’Ordine Nuovo (A Nova Ordem). Este jornal foi pensado por Gramsci como um periódico dos conselhos de fábrica. O movimento dos conselhos de fábrica deu uma nova dimensão ao pensamento de Gramsci e a política do L’Ordine Nuovo:

“Temos que estudar a organização da fábrica como instrumento de produção; devemos dedicar toda a atenção aos sistemas capitalistas de produção e de organização; devemos trabalhar para que a atenção da classe operária e do partido se dirija para este objetivo…

…Temos que estudar o que ocorre no seio da classe operária. Existe na Itália, como instituição da classe operária, algo que possa se comparar com o soviet, que tenha algo de sua natureza? Algo que nos autorize a afirmar: o soviet é uma forma universal, não é uma instituição russa, exclusivamente russa; o soviet é a forma na qual, em qualquer lugar que tenha proletários em luta para conquistar a autonomia industrial, que manifesta a vontade da classe operária em se emancipar; o soviet é a forma de autogoverno das massas operárias; existe um germe, uma veleidade, uma tímida incubação de governo dos soviets na Itália, em Turim?

Sim, existe na Itália, em Turim, um germe de governo operário, um germe de soviet; é a comissão interna (das fábricas); estudemos esta instituição operária, façamos uma pesquisa, estudemos também a fábrica capitalista, porém não como organização da produção material, porque para isso necessitaríamos de uma cultura especializada que não temos; estudemos a fábrica capitalista como uma forma necessária da classe operária como organismo político, como território nacional do autogoverno operário”. (O programa de L’Ordine Nuovo, Antonio Gramsci, Antologia, Ed. Siglo XXI, México, 1970).

Como podemos ver, Gramsci dá uma importância crucial aos conselhos operários como uma forma superior de frente única, permitindo a classe operária superar os limites do sindicalismo e do corporativismo e a sua divisão política. As teses da III Internacional elaboradas nos 3° e 4° Congressos (1921-22), sobre a tática da frente única, da luta pelas conquistas parciais da classe operária, sobre as reivindicações transitórias e o papel do governo operário, elaboradas por Lenin e Trotsky, vão ser defendidas por Gramsci dentro do PCI, dentro de uma luta enérgica que se travou dentro da Internacional Comunista em defesa da frente única operária.

Em seu famoso texto “Alguns temas sobre a questão meridional”, encontrado por Camila Ravera entre os papeis de Gramsci logo após a sua prisão e publicados somente em 1930 na revista teórica do PCI, “Lo Stato Operaio”, em Paris, Gramsci avança na questão da frente única:

Mas o que importa observar aqui é que o conceito fundamental dos comunistas turinenses não era a fórmula mágica da divisão do latifúndio, as a aliança política entre os operários do Norte e camponeses do Sul, com o objetivo de afastar a burguesia do poder do Estado…”

“Contudo, éramos pela formula muito realista e nada mágica da terra para os camponeses, mas queríamos que ela fosse inserida numa ação revolucionária geral das duas classes aliadas, sob a direção do proletariado industrial…”

“Os comunistas turinenses haviam formulado de modo concreto a questão da ‘hegemonia do proletariado’, ou seja, da base social da ditadura proletária e do Estado operário. O proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de alianças de classe, que lhe permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora. Na Itália, nas reais relações de classe existentes na Itália, isso significa: na medida em que consegue obter o consenso das amplas massas camponesas… Portanto, conquistar a maioria das massas camponesas significa para o proletariado italiano, assumir como próprias estas duas questões do ponto de vista social, compreender as exigências de classe que elas representam, incorporar tais exigências em seu programa revolucionário de transição, pôr tais exigências entre suas próprias reivindicações de luta”.

Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci precisa o conceito de hegemonia do proletariado:

“Um grupo social (Gramsci está se referindo ao proletariado) pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições principais para a própria conquista do poder); depois quando exerce o poder e mesmo se o mantem fortemente nas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também dirigente”.

Carlos Nelson Coutinho, um grande estudioso da obra de Gramsci na esquerda brasileira, comenta sobre as reflexões do marxista italiano em relação ao conceito de hegemonia:

“Essas reflexões permitem a Gramsci dar uma resposta à questão do fracasso das revoluções no Ocidente – e, ao mesmo tempo, indicar uma nova estratégia adequada às condições específicas das sociedades capitalistas nas quais exista um nível elevado de socialização da política. A presença em tais países de uma sociedade civil complexa, inexistente nas formações de tipo ‘oriental’, como na Rússia de 1917, impõe às classes sociais interessadas numa transformação radical da sociedade a necessidade de um longo e amplo debate pela hegemonia e pelo consenso. Gramsci afirma que Lênin havia compreendido essa diferença estrutural e suas implicações estratégicas quando propôs, no III Congresso da IC, em 1921, a adoção de uma política de ‘frente única’; e quando observou que, enquanto na Rússia fora fácil tomar o poder e difícil construir o socialismo, no Ocidente ocorreria  precisamente o inverso. Mas, segundo Gramsci, Lênin não teria tido tempo necessário para desenvolver essas ideias. Coube precisamente ao autor dos Cadernos a tarefa de desenvolver de modo criador as lições de Marx, Engels e Lênin, a partir do contato com realidades novas e mais complexas”. (Introdução à coletânea “O Leitor de Gramsci”, Ed.Civilização Brasileira, 2011).

Assim, o famoso conceito gramsciano de hegemonia, presente nos tempos do L’Ordine Nuovo, vai sofrer uma evolução nos Cadernos do Cárcere.

Nos meios intelectuais Gramsci está na moda. Muitos o fazem por motivos justos e outros o fazem por querer inventar a roda. Encontramos esta tese entre as inúmeras elaborações sobre o marxista italiano nos meios universitário, escrita por Syrlei Teresa dos Reis, utilizando as coletâneas de Gramsci feitas por Carlos Nelson Coutinho:

“Gramsci, ao analisar a conjuntura sociopolítica da Europa Ocidental e Central, afirma ser necessária a invenção de novas estratégias que viabilizem as propostas do socialismo. Defenderá a tese de que às condições objetivas (base material na vertente economicista de tradição marxista) deveria agregar-se a ação política com vistas à hegemonia. Logo, para tornarem-se classe dirigente, os sujeitos coletivos organizados (em partidos, principalmente) deveriam superar o corporativismo, a fragmentação e tornar-se classe nacional dominante (aquela cujas ideias obtiveram o consenso), em outras palavras, “tornar-se protagonista das reivindicações de outros estratos sociais (…) realizando com eles uma aliança na luta contra o capitalismo” (GRAMSCI, apud COUTINHO, 1999:67-68), avançando rumo ao socialismo via uma Guerra de Posições, processual, em lugar da Guerra de Movimento, explosiva.

Gramsci também observa essa transitoriedade histórica, tanto quanto Marx e Engels em relação às suas primeiras obras e, acrescenta às afirmativas marxistas, uma teorização ampliada do Estado renovando a estratégia de transição ao socialismo através das novas táticas para superação do bloco dominante. Resume sua contribuição ao marxismo no que denomina Guerra de Posição, isto é, um conjunto de intervenções da classe operária organizada, em nível nacional, para defesa dos interesses coletivos, desarticulando os aparelhos estatais repressivos ao ocupar seus espaços e abrir, neles, lacunas pelas quais se consolidaria a ação revolucionária. Surge uma nova dimensão (e não ruptura) epistemológica é associada à noção de luta de classes, classe em si e classe para si. Trata-se da luta por hegemonia, da direção política ou do consenso, que conduzirá ao socialismo desde que os operários possam vir a responder às questões ideológicas, ao confronto cultural, aos interesses gerais e permanentes de classe, superando o corporativismo e o sindicalismo.

Metodologicamente, a formação dos partidos políticos, a ocupação estratégica de funções no aparato estatal e a atuação de intelectuais orgânicos, que não subestimem a condição proletária de aprendizado, a conquista do parlamento, são etapas do processo de transformação que institui um novo bloco de poder, com forças democráticas e populares. Essas batalhas, afirmava Gramsci, devem ser travadas, inicialmente, no âmbito da sociedade civil, visando à conquista de posições, a direção político-ideológica e de consenso dos setores majoritários da população, como condição para o acesso ao poder de Estado e sua posterior conservação.” (A Estratégia Revolucionária de Gramsci, Syrlei Teresa dos Reis).

 A autora consegue sintetizar o centro da estratégia de Gramsci contido nos Cadernos do Cárcere. Mas da mesma forma que Coutinho, segue prisioneira das ambiguidades contidas nestas notas de Gramsci que a induz a afirmar que “renovaram” a estratégia de transição ao socialismo.

Para Gramsci o conceito de hegemonia implica em ganhar a maioria do proletariado para “afastar a burguesia do poder” por meio de políticas de frente-única e alianças entre as classes exploradas, afirmando a liderança da classe operária na luta pelo socialismo. O proletariado deve ser dirigente antes de ser dominante, na política, na ideologia e na cultura. Este é o sentido de hegemonia defendida por Gramsci, mas que deixa margem para muitas ambiguidades, como veremos mais adiante. Mas escapa a Carlos Nelson Coutinho e a sua dedicada discípula Syrlei o fato de que muitos dos elementos contidos nas reflexões de Gramsci sobre o capitalismo do início do século XX e sobre a necessidade de se conquistar a maioria da classe trabalhadora, através de políticas de frente única, prévias à luta pelo poder, se devem a Leon Trotsky, legado que o próprio Gramsci nunca vai admitir.

Mas em defesa de Gramsci ressaltamos que as suas reflexões políticas, tanto da fase dos conselhos e do L’Ordine Nuovo, assim como do período prolongado nas prisões do fascismo italiano, os Cadernos do Cárcere, procuram responder as questões de preparação do proletariado para a luta política pelo poder. Existe aí uma contribuição verdadeira ao pensamento marxista, uma continuidade de um pensamento que perante o chamado “fracasso das revoluções no Ocidente”. Neste sentido, Gramsci está longe de ser o precursor de uma estratégia reformista de conquista gradual de poderes dentro do Estado burguês. Pelo contrário, Gramsci afirma na necessidade de uma unidade do proletariado e de suas organizações para afastar a burguesia do poder. O seu pensamento caminha nessa direção. No entanto, suas formulações são incompletas, ambíguas e muitas vezes confusas, grande parte por razões óbvias, o isolamento provocado por um longo período de prisão. Em parte também porque Gramsci nunca entendeu claramente o que estava em jogo referente a discussão aberta pela Oposição de Esquerda desde 1923, no partido comunista russo e na Internacional Comunista. Ver especificamente o seu texto “As lutas internas do Partido Comunista soviético”, escrito em 1926 onde Gramsci afirma que:

“Declaramos agora que consideramos fundamentalmente justas a linha política da maioria do Comitê Central do PC da URSS e que é, nesse sentido, certamente, que se pronunciará a maioria do Partido Italiano, se se tornar necessário que ele enfrente toda a questão… Repetimos que nos impressiona o fato de que a atitude do bloco de oposições (a Oposição Unificada de Esquerda) envolva toda a linha política do Comitê Central, atingindo o coração mesmo da doutrina leninista e da ação política de nosso partido na URSS”. (L’ Ordine Nuovo, 1926).

Realmente Gramsci não estava entendendo nada do que estava acontecendo na URSS e reafirma sua adesão à política burocrática de Stalin-Bukharin no VI Congresso da Internacional Comunista, que sacramentou o socialismo num só país, o apoio ao malfadado comitê anglo russo dos sindicatos e a adesão do partido comunista chinês ao Kuomintang. Gramsci só vai romper com o stalinismo após a sua prisão, onde seu sucessor na liderança do PCI, Palmiro Togliatti vai exigir que ele apoie incondicionalmente Stalin. Como Gramsci se recusa a isso, pois critica duramente a linha do “terceiro período”, preconizada por Stalin, que nega a política de frente única entre as organizações operárias, vai ser expulso secretamente do PCI e “esquecido” na prisão pelos stalinistas.

Portanto, é um exagero de Carlos Nelson Coutinho, atribuir a Gramsci uma compreensão clara dos acontecimentos que levou a derrota do proletariado europeu perante o fascismo no período histórico que precedeu a Segunda Guerra Mundial. Gramsci tem razão em afirmar que as táticas de frente única nunca foram assimiladas corretamente pela Internacional Comunista. Mas só vamos encontrar as verdadeiras respostas a esse problema, o “fracasso das revoluções no Ocidente”, se procurarmos no legado deixado pela Oposição de Esquerda na Internacional Comunista; na crítica à burocratização da URSS e ao regime totalitário que se construiu, à política levada a cabo por Stalin e pela burocracia soviética que visava “construir o socialismo num só país” fazendo de tudo para bloquear qualquer possiblidade revolucionária do proletariado internacional. Estão aí as razões da derrota. Até mesmo porque a política da IC sob regime stalinista dividia permanentemente a classe operária, com as políticas do “social-fascismo” e depois com as “frentes populares”, que levaram o proletariado a derrotas na Alemanha, permitindo a ascensão do nazismo, ao revés na França e à tragédia da revolução espanhola. 

Não é o objetivo deste texto aprofundar os temas abordados por Antonio Gramsci em seus escritos, suas contribuições ao marxismo e os limites de seu pensamento. Mas sim, demonstrar que o revolucionário italiano nada tem a ver com a “via italiana para o socialismo” do stalinista Palmiro Togliatti e tampouco com a estratégia eurocomunista de Enrico Berlinguer do “compromisso histórico” entre o PCI e a Democracia Cristã na Itália. E queremos demonstrar igualmente que a linha da “revolução democrática” preconizada pela DS, que se diz inspirada no conceito de hegemonia de Gramsci é na realidade uma cópia descarada da estratégia eurocomunista aplicada na Itália pelo PCI nos anos 70-80.

Será o “bloco histórico” com Sarney, Collor, Sergio Cabral & Cia o executor testamentário do legado de Antonio Gramsci?

Os dirigentes da DS quando falam da “revolução democrática” utilizam frequentemente os conceitos gramscianos de “hegemonia” e “bloco histórico”, para justificar uma “guerra de posição” dentro das instituições do Estado capitalista. É neste sentido que explicam a participação nos governos Lula-Dilma e em diversos governos coligados com a burguesia nos estados e municípios. Mas uma análise, mesmo que ligeira, da obra de Gramsci em seu conjunto demonstra que é uma autêntica impostura invocar o parentesco do marxista italiano com a orientação neo-reformista da “revolução democrática”. Embora reconhecendo que o pensamento de Gramsci evoluiu entre o momento da fundação de L’Ordine Nuovo em 1919 e a redação de seus Cadernos do Cárcere, não há qualquer prova que se possa aduzir em apoio da tese segundo a qual Gramsci teria abandonado a concepção da revolução socialista como implicando a destruição do aparelho do Estrado burguês e a substituição da democracia parlamentar por uma democracia socialista, fundada nos conselhos operários, democráticos e livremente eleitos.

Essa foi a lição colhida por Gramsci da experiência da revolução russa de 1917 e alemã de 1918-19, bem como da crise revolucionária na Itália, de 1919-20. Essa foi sobretudo a conclusão extraída de uma análise da própria natureza do proletariado – única classe verdadeiramente revolucionária da sociedade burguesa – e das condições organizacionais e psicológicas ao ascenso e ao triunfo de seu movimento de emancipação.

O famoso conceito gramsciano de hegemonia, elaborado na prisão, é incontestavelmente ambíguo. Mas mesmo quando interpretado no sentido mais favorável à mistificação dos eurocomunistas no passado e agora na cópia feita pela DS dessa mistificação, aplica-se essencialmente ao período prévio e preparatório da crise revolucionária, propriamente dita. De modo nenhum se identifica com a conquista do poder, nem afirma a ideia de que a crise revolucionária possa de qualquer maneira ser evitada. Nada no conceito de hegemonia, tal como foi elaborado por Gramsci, implica a ideia de uma “conquista gradual de poderes” de maneira quase imperceptível, passo a passo, que está no centro da estratégia da “revolução democrática”, assim como estava nas estratégias dos eurocomunistas e dos sociais democratas, para a reforma do capitalismo.

A contribuição positiva de Gramsci para a teoria marxista consiste no fato de ter sublinhado que hegemonia ideológica e coerção mutuamente se complementam no exercício do poder de classe, que nenhum Estado pode subsistir quer exclusivamente pela força, quer exclusivamente pelo “consenso” dos explorados. Mas não se trata aqui de mais do que do desenvolvimento de ideias já apresentadas por Marx. Este sublinhou claramente que a origem primeira, tanto do poder ideológico como do poder de coação do Estado burguês, se encontra na própria relação capital-trabalho.

O que tem de válido no conceito de hegemonia refere-se ao fato incontestável de que todo o ascenso revolucionário no seio de um modo de produção já em decadência histórica se faz acompanhar de uma série de processos que progressivamente enfraquecem os mecanismos de dominação e as posições políticas da classe dominante antes que o seu poder político seja frontalmente atacado e abatido. Foi esse o caso do ascenso da burguesia no seio da sociedade feudal e semifeudal, muito bem analisados por Gramsci nas suas notas sobre Maquiavel e nas suas análises sobre o “Rissorgimiento” na Itália do século XIX, que levou à unificação do país. E pode ser também, com certos limites, o caso do proletariado no seio da sociedade capitalista.

Entre esses processos deve classificar-se a contestação da ideologia da classe dominante pela elaboração teórica e ou ideológica da classe revolucionária; a diferenciação progressiva entre as ideologias, e mais geralmente entre as “camadas intermediárias da sociedade”, entre defensores e adversários da ordem estabelecida, entre aniquiladores e apologistas da revolução social; a emancipação progressiva de crescentes setores da classe revolucionária e do povo da influência preponderante da ideologia das classes dominantes; a crescente organização da classe revolucionária com vista a atacar a ordem estabelecida; o progressivo declínio da influencia, sobre o conjunto da sociedade, dos “valores” que contribuem para a reprodução sistemática das relações de produção dominantes; as progressivas divisões e “crises de consciência” no seio da própria classe dominante, sobretudo da sua juventude. Todos esses processos podem resumir-se melhor através do conceito de uma crise global das relações sociais, que subentende e engloba um modo de produção determinado, crise que precede a crise revolucionária propriamente dita.

Existe, porém uma diferença fundamental entre o lugar ocupado pela burguesia revolucionária na sociedade semifeudal e o lugar que ocupa o proletariado revolucionário dentro da sociedade capitalista. A primeira é uma classe possuidora pela sua própria natureza, independentemente do fato de estar ou não no poder; a segunda continua sendo uma classe que nada possui, explorada e oprimida até que chegue a hora de se apoderar do poder. Disso ocorre uma diferença não menos fundamental entre os mecanismos de preparação e de eclosão da revolução proletária: a revolução burguesa foi preparada por aqueles que já verdadeiramente dominavam a economia, enquanto que a revolução proletária deve ser preparada pelos que permanecerão dependentes e explorados até o dia seguinte da expropriação da burguesia. É aqui que conceitos reformistas do tipo “revolução democrática” se esvaziam completamente.

Por esse fato, é evidentemente irrealista, por parte da estratégia da “revolução democrática”, esperar que o proletariado possa conquistar, antes da tomada do poder, um tipo de “hegemonia” no seio da sociedade capitalista análogo ao que a burguesia efetivamente conquistou no seio da sociedade semifeudal, tal como Gramsci incontestavelmente pensou: “um grupo social pode e até deve ser dirigente antes de conquistar o poder governamental (é uma das principais condições para a conquista do poder)”. (Gramsci, Cadernos do Cárcere).

A “hegemonia” pensada por Gramsci refere-se a preparação do proletariado para tomar o poder e jamais foi concebida como uma estratégia gradualista para tomar o poder. O “bloco histórico” segundo Gramsci é uma política de alianças do proletariado com as outras classes exploradas, especialmente o campesinato e não uma coligação do proletariado com a burguesia nos moldes das “frentes populares” como faz o PT no Brasil. A “guerra de posição” (lutas por reivindicações parciais, frente única) na concepção de Gramsci visa alterar as relações de força ainda desfavoráveis ao proletariado em uma situação que a questão da conquista do poder ainda não se colocou. Jamais foi concebida como uma estratégia de reformas do Estado capitalista como querem fazer crer os ideólogos da “revolução democrática” quando falam em “refundar” o Estado burguês.

Escapa aos defensores do “socialismo democrático” o fato de que a burguesia no passado pode conquistar a hegemonia no seio da sociedade, antes de tomar o poder, como no “Rissorgimiento” italiano ou na Revolução Francesa, pelo simples peso de sua fortuna e de seus capitais. Achar que o proletariado possa fazer o mesmo hoje, ser dirigente da sociedade antes de ser dominante, criar uma “hegemonia” na política, na cultura, na ideologia e nas instituições do Estado, criar “blocos históricos” que afirmem essa hegemonia, antes de “afastar a burguesia do poder”, é a mesma coisa que acreditar em Papai Noel.

Para o proletariado, a articulação específica dos mecanismos de dominação econômicos, políticos, ideológicos e culturais é tal no seio da sociedade capitalista que o seu peso nessa sociedade não pode ir além de certo limiar se não atacar diretamente os dois fundamentos do poder de classe da burguesia: a propriedade privada dos meios de produção (e de troca) e o aparelho do Estado burguês.

Pior ainda, a “acumulação primitiva” de forças e de posições do movimento operário no seio da sociedade burguesa arrisca-se a produzir a sua própria negação. Arrisca-se a transformar as grandes organizações operárias, cada vez mais sob pressão da sociedade capitalista, de uma força de contestação dessa sociedade numa força de integração nessa sociedade, exatamente na medida em que se limita o horizonte das organizações operárias a um quadro de convivência pacífica com a sociedade capitalista.

Foi o que aconteceu com a socialdemocracia na virada do século XX, depois com os partidos comunistas stalinistas depois do VII Congresso do Comintern, que estabeleceu as “frentes populares” e que acabou acontecendo também com o PT no Brasil A linha de considerar as conquistas parciais e o “programa mínimo” como objetivo final do movimento operário em detrimento do “programa máximo”, o socialismo, leva, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde, a uma integração com os objetivos da sociedade burguesa. E em consequência disso, o próprio esvaziamento na natureza “operária” das organizações de massa da classe trabalhadora.

Mas por outro lado, quando as conquistas parciais são concebidas e tratadas como provisórias e não decisivas, pelas organizações operárias, quando estas incorporem reivindicações transitórias na sua prática e no seu programa, quando praticam uma democracia operária real, dando poder de controle da base sobre o aparato, nestas condições podemos falar em um “acúmulo de forças” que fortalece a luta de classes do proletariado.

A tentativa da DS de copiar a estratégia eurocomunista dos anos 70-80 baseada numa concepção gradualista da conquista dos poderes do Estado, tal como pensaram os ideólogos do PCI é completamente irrealista. Em nada evita a luta de classes, em nada evita as crises do capitalismo e em nada evita as situações revolucionárias.

Mais absurdo ainda é a tentativa de formar um “bloco histórico” com a burguesia, com o PMDB e demais partidinhos da “base aliada”.  A DS dá a esta questão um tratamento deliberadamente ambíguo: falam em um “bloco histórico” entre as forças populares, mas ao mesmo tempo dizem que o PT não deve fazer alianças com os neoliberais, especialmente o PSDB. Mas dá a entender que com o resto pode. O que vemos hoje é que este “bloco histórico” que a DS defende se resume na coligação com Sergio Cabral, Sarney, Collor, Michel Temer, políticos da burguesia, todos eles não só notórios defensores da propriedade privada dos meios de produção como também das políticas neoliberais. Ou esqueceram que o PMDB foi aliado do neoliberal Fernando Henrique?

Mas segundo a direção do PT, e também da própria DS, não está na ordem do dia o questionamento do capitalismo. Argumentam que é necessário o apoio político das “classes médias” capaz de viabilizar a governabilidade do PT. Mas aí é que está o problema: a aliança com os partidos burgueses ao serviço do grande capital acaba impondo uma política ruinosa para as chamadas “classes médias”, que em sua maioria são também assalariados do grande capital. Não precisa ser um grande economista para entender que a política de favoritismo dos governos Lula-Dilma em relação a “emergente classe média brasileira” é uma bomba de efeito retardado baseada em “bolhas de crédito” e endividamento crescente dos cidadãos. Isto nunca acaba bem, como a atual crise do capitalismo mundial o está demonstrando.

Assim, ao invés de se orientar para a adesão das classes médias assalariadas a um projeto político do proletariado, isto é, para uma luta a favor da liderança política do proletariado sobre todas as classes assalariadas e trabalhadoras da nação, a política tipo “frente popular” consolida o contrário, ou seja, a hegemonia política da burguesia sobre as classes médias, semeando ao mesmo tempo a divisão e discórdia no seio da classe operária. Porque, identificar os êxitos de uma “política de aliança” com o respeito da propriedade privada e da ordem burguesa implica inevitavelmente na recusa da unidade de ação da classe operária.

A estratégia reformista, e incluímos neste conceito a “hegemonia” e a “revolução democrática”, defendidas pela DS, implica que o conjunto da classe trabalhadora aceite a subordinação sistemática dos seus interesses de classe – tanto imediatos como históricos – aos da burguesia, presente nos blocos “democrático-populares” através de uma ou de outra de suas frações políticas.  A pretexto de uma aliança “anti-neoliberalismo” o que temos é uma aliança com partidos burgueses, antipopulares, vinculados a grandes grupos capitalistas, ao agronegócio, aos monopólios. Nestas condições, esta política de alianças implica, pois em um corte inevitável entre a ala mais combativa e mais consciente do proletariado, que progressivamente vem assimilando a independência de classe com a ala mais atrasada, sob a completa influencia da estratégia reformista. É o que aconteceu no movimento sindical, com as rupturas na CUT e que permitiu a formação de outras centrais sindicais, CONLUTAS, Intersindical, engendrando o fenômeno oposto, o do sectarismo e do ultra-esquerdismo.

E a perspectiva não é nada melhor quando se aborda o problema da “revolução democrática” sob o angulo do famoso “consenso”, outro conceito mágico paralelo ao da “hegemonia”, ambos retirados da estratégia eurocomunista do PCI, da tentativa fraudulenta de se apropriar das concepções de Antonio Gramsci, e que não deram certo na Europa. Numa sociedade dividida em classes antagônicas, e a fortiori, numa fase em que as contradições de classe tendem a se exacerbar, por todo o contexto econômico e político, nenhum “consenso” é possível entre o proletariado e a burguesia. Não existe nem pode existir, da parte da burguesia, “consenso” para a passagem para o socialismo, tal como não existe nem pode existir “consenso” do proletariado para a defesa do lucro capitalista, para a defesa das políticas implementadas pelo governo PT baseadas na defesa da propriedade privada.