O samba ficou triste: menos um malandro no mundo

 

 
 
 Carlos Roberto de Oliveira, ou simplesmente Dicró, como era mais conhecido e gostava de ser chamado, sambista de inspiração autenticamente carioca, nascido na favela do bairro de Jacutinga, município de Mesquita, em 14 de fevereiro de 1946, morreu hoje, 26 de abril de 2012, em Magé, Estado do Rio de Janeiro. Dicró era diabético e ao voltar para casa após uma sessão de hemodiálise, sentiu-se mal e foi internado às pressas em um hospital de Magé, sucumbindo horas depois em decorrência de um infarto.
 

Dicró iniciou-se como sambista na própria favela onde nasceu, ao frequentar ainda criança as rodas de samba patrocinadas por sua mãe, que era mãe de santo, em seu próprio terreiro. A semente plantada em solo sáfaro logo germinou e se desenvolveu, fazendo brotar um sambista de primeira linha.
 
Junto com Moreira da Silva, Osmar do Breque, Germano Mathias e Bezerra da Silva formou um poderoso bloco de sambistas que utilizavam a sátira e a linguagem coloquial como meio de comunicação com o seu público. Encarnava a inspiração popular e era um verdadeiro cronista de costumes da vida nas favelas, através de uma linguagem viva, às vezes contundente, e sempre cheia de mordacidade. Suas letras simples, curtas e ferinas formavam um registro musical absolutamente popular, dentro das mais ricas tradições do samba carioca.
 
Este pequeno trecho de um de seus sambas, Anulação de Casamento, serve para nos dar uma amostra de sua verve cheia de duplos sentidos:
Anulação de Casamento
“Senhor juiz, eu peço seu consentimento
“Pra anular o casamento da mana com o Cornélio.
“O meu cunhado quando vai comer, fracassa
“Diz que a fome anda escassa, ele já se acha velho
“Ele só come uma vezinha por semana
“Diz que a comida lhe provoca indigestão
“A mana sempre faz cardápio variado
“E ele só acostumado a comer arroz com feijão…”.
Era por esta linha de inspiração que Dicró produzia o seu samba. E tinha público garantido: o povo trabalhador gosta de ri de si próprio, às vezes mais do que deveria, e Dicró não economizava nisto. A figura da sogra, de todas as sogras, menos da sogra da mulher dele, a única que ele elogiava, se tornou com ele antológica no cenário do samba. Não duvido nem um pouco que as sogras, todas as sogras e não somente a sogra de sua mulher, seriam as que mais apreciavam sua música. O povo trabalhador tem um senso de humor especial que o faz rir de si mesmo, desde que seja ele mesmo quem faça a piada.  
Vejamos este samba sobre o tema das sogras:
A vaca da minha sogra
“Ninguém aguenta mais a vaca da minha sogra…
“Vaca da minha sogra (refrão).
“A família da minha mulher
“Vejam que situação
“Todo mundo da família
“Tem um animal de estimação.
“Mas a vaca da minha sogra
“Virou um problema para o povo
“Assustando as criancinhas
“E correndo atrás dos outros.
“(…)
“(…)
“E quem comprar essa vaca
“Ainda leva o cavalo do meu sogro
“E o veadinho do meu cunhado
“A cadela da minha cunhada tá no cio tô dando de graça”.
E vai por aí, neste galope.  
Mas Dicró também expressava, à margem ou dentro de suas inúmeras músicas e letras, um profundo senso de solidariedade de classe com os seus admiradores mais próximos, o povo trabalhador, os pobres urbanos, os moradores de favelas, o público que o alimentava, o seu público. É de sua autoria uma frase que se inscreveu definitivamente em sua antologia pessoal e que revela uma profunda e aparentemente insuspeitada acuidade social: “Para o pobre, o destino é ser ou pedreiro ou artista”. Isto vale uma reflexão.