Foto: ONU

O retorno das tropas brasileiras no Haiti e a violência que a mídia burguesa não mostrou

No dia 31 de agosto aconteceu a cerimônia de encerramento do Exército Brasileiro na “missão de paz” da ONU no Haiti. Até o dia 15 de outubro, todas as tropas, veículos e armamentos foram retirados do país. De acordo com o Exército, desde o início da operação, cerca de 20 mil soldados atuaram no território da nação caribenha. De acordo com Tahiane Stochero, em reportagem ao portal de notícias G1, a operação custou ao Estado brasileiro 2,5 bilhões de reais.

As tropas brasileiras foram enviadas para o Haiti durante o governo Lula e permaneceram durante os mandatos de Dilma. Além do papel deplorável praticado pelo governo petista, é perceptível a falta de interesse na divulgação do que realmente acontecia no país. Sob uma máscara de falsa paz alimentada pela imprensa burguesa nacional e internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu uma ditadura militar responsável pelo massacre de milhares de trabalhadores, jovens e crianças.

Elaboramos um texto sobre a violência desta missão e a atuação da mídia diante desse massacre.

O país, a Minustah e papel desempenhado pelo Exército Brasileiro

Em 30 de abril de 2004, a ONU criou a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah). Um pouco antes disso, o presidente democraticamente eleito pela maioria dos haitianos Jean-Bertrand Aristide sofreu um golpe militar – não por parte das forças armadas de seu país, mas a mando do imperialismo mundial representado pela ONU.

Jean-Bertrand Aristide havia sido eleito pela segunda vez em 2001 para governar o país. Sua política, apesar de conciliadora, estava sendo pressionada por um crescente movimento de massas. Isso fazia com que várias de suas orientações passassem a ir contra a ordem direta dos Estados Unidos. Mas isso não podia ser aceito pela burguesia internacional.

Desde o tempo em que o país era colônia francesa, os haitianos – maior parte da população descendente do mercado de escravos, que foi forte na época do Império – demonstravam para o mundo uma disposição de luta sem precedentes. Muitos massacres foram realizados sobre este povo, que ousou ser o primeiro a se tornar independente e colocar um fim à escravidão. Desde então, a tentativa de massacrar até a última chama de luta tem sido um dos objetivos dos países imperialistas. O país é o mais pobre das Américas. Essa condição foi herdada da França – na segunda vez que proclamou a independência, um acordo foi feito. Este acordo previa o pagamento de uma imensa fortuna (150 milhões de francos-ouro que passou a 90 milhões em 1838), concluída apenas em 1883.

Nestes 13 anos de ocupação, foi levado tudo ao país, menos a tão divulgada paz. O depoimento do soldado  Tailon Ruppenthal no livro “Um soldado brasileiro no Haiti”[1], escrito por Ricardo Lísias (graduado em Letras e mestre em teoria literária pela USP), mostra as mudanças da relação da tropa com os haitianos que, no início, encaravam a Minustah como algo benéfico, mas gradualmente perceberam um aumento na violência com a presença do exército; e também os objetivos políticos da Minustah, que, de acordo com Ruppenthal, ignorou a história política do país, tentando criar uma nova história em prol de defender uma elite haitiana. Além dos incontáveis casos de estupro, da exploração sexual, da fome, dos assassinatos, o Brasil usou o Haiti como um campo aberto de treinamento para atuar em favelas brasileiras.

Ricardo termina o posfácio do livro “Um soldado brasileiro no Haiti”, dizendo que “a história da missão da ONU no Haiti precisa ser contada por diversas vozes e, sobretudo, não pode ser esquecida”. Mesmo que a intervenção brasileira tenha acabado, é importante conhecer a história que não é contada nas mídias oficiais, mas que é tão bem conhecida por cada haitiano. O livro do soldado Tailon Ruppenthal é um depoimento organizado pelo supracitado Lísias. Através dessa forte narrativa, é possível conhecer a realidade do Haiti, onde grande parte da população vive em miséria absoluta, isto é, com menos de um dólar americano por dia.

A missão deveria durar apenas seis meses e continuou sendo mantida até o encerramento em “hora apropriada”. Apropriada pois os Estados Unidos, principal responsável por enviar o dinheiro que sustentava a missão, anunciou que iria retirar esta “contribuição”. Também vem no momento oportuno, em que o Haiti está completamente entregue ao caos. A decisão para a retirada das tropas do país caribenho tem como base a determinação do Conselho de Segurança ONU, que prevê a substituição da Minustah pela instauração de uma força policial haitiana.

O que ainda restava para ser destruído depois do golpe de 2004, com os soldados e a invasão imperialista, foi atingido pelo terremoto de 2010 – que matou cerca de 300 mil haitianos, de uma população em torno de 10 milhões de habitantes. Novamente, o povo haitiano clamou pelo envio de médicos, de comida, de roupas. Em vez disso, recebeu a intensificação da repressão das tropas do exército. O aparato policial também promoveu outro desastre: o retorno da cólera.

Dominação imperialista

A submissão das massas haitianas a tanto sofrimento tem sua motivação econômica na garantia tanto da mais brutal e direta exploração de sua força de trabalho, quanto de um mercado certo para consumo de mercadorias norte-americanas. Embora representando um PIB pequeno, com 8,7 bilhões de dólares, o país está loteado entre empresas imperialistas, uma burguesia parasitária a seu serviço e um governo marionete de Washington.

Apesar de viver um boom do setor da construção civil desde o terremoto de 2010, sua economia está assentada na agricultura, no setor têxtil e nos serviços turísticos[2]. São nesses ramos que o proletariado haitiano trabalha, em sua maioria de forma informal. A balança comercial do Haiti deixa em evidência sua dominação imperialista, importando mais de o dobro do que exporta[3]. Os Estados Unidos são o destino de 962 milhões de dólares em exportações, enquanto em segundo lugar está a vizinha República Dominicana, com somente 51,3 milhões de dólares. Já as importações revelam o mesmo quadro dominado pelos EUA e pela nação vizinha.

Essa condição de país colonizado pelo imperialismo norte-americano determina o tipo de domínio capitalista que existe no país, assentado na extração de mais-valia absoluta das massas. Como explicada por Karl Marx, ao invés de se basear no investimento em tecnologia e na especialização do proletariado, a mais-valia absoluta se obtém por meio do aumento da exploração. A mesma se alcança pela intensificação do ritmo de trabalho, do tempo da jornada, redução de salários, imposição de uma série de impostos, e de um controle brutal sobre a jornada para que o trabalhador produza mais mercadorias e mais valor sem alterar-se as condições técnicas e o tempo em que se executa o trabalho.

Foram a esses interesses imperialistas que serviu o golpe de 2004. Para sua proteção e desenvolvimento agiu por 13 anos a Minustah dirigida pelas tropas brasileiras.

E o PT?

No dia 25 de fevereiro de 2014, o ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), escreveu um artigo sobre o aniversário de 10 anos de invasão ao Haiti para o jornal El País. A então presidente Dilma Rousseff visitou no mesmo o ano o país pela primeira vez e fez um pronunciamento no dia 4 de julho.

Os dois discursos foram permeados de elogios à “missão de paz” e ao valor do exército. Mas vão além. Falavam da estabilidade política do país, da diminuição da miséria, dos hospitais. Mas onde estava tudo isso, se a população continuava denunciando a total miséria, os famosos “biscoitos” de barro? Lula e Dilma discursaram bonito, enquanto escondiam o verdadeiro desejo por trás do envio das tropas brasileiras ao Haiti.

A intenção real, lá em 2004, era fazer mais uma aliança com a burguesia internacional – com quem realmente dá as cartas. Ao PT e seu governo cabia realizar a tarefa suja da repressão ao povo haitiano em troca de uma possível cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Aos imperialistas, a implementação de um golpe a seus interesses ocorria com o álibi de “missão de paz” – já que o Brasil não é um país imperialista e não é ativo nas muitas guerras dos imperialistas. Mais uma vez Lula e Dilma demonstraram a que vieram: para fazer uma política rasa de conciliação de classes, reformismos e ataques aos trabalhadores e explorados ao redor do mundo.

Tudo isso foi feito sob o discurso de “estabelecer a democracia”. Dilma falou: “Felicito, ainda, o presidente Martelly pela democracia haitiana, que se revela na qualidade da transição de um governo democraticamente eleito para outro e sua capacidade de formar novo governo de qualidade e em clima de respeito à diversidade”. Neste pequeno trecho, dos 20 minutos de discurso, Dilma deixa claro que está totalmente à disposição da democracia burguesa – que persegue e mata quem ousa confrontá-la. No primeiro Congresso da 3ª Internacional, em 1919, Lenin discursa sobre o engodo que é a democracia burguesa. Diz ele que todos os “clamores em favor da democracia não servem, na realidade, senão para defender a burguesia e seus privilégios de classe exploradora.”

Diante do ataque brutal que sofreu o país, os únicos países a se posicionarem contra foram a Venezuela – que vivia um processo revolucionário ainda com Hugo Chávez na direção – e Cuba. Ao governo brasileiro liderado pelo PT, que há tempos havia abandado o seu posicionamento de esquerda, coube fazer a parte mais suja do golpe.

O papel da mídia

Ao contrário do que muitos podem dizer, a Minustah não foi um fracasso. Do ponto de vista do imperialismo ela pode ser descrita como um sucesso. Como tantos outros espalhados pelo mundo que contaram com a “ajuda” da ONU, o país tem sua economia montada para interesses norte-americanos. O governo haitiano está empenhado em garantir a dominação estrangeira. Os Lavalas, principal grupo de resistência, foram praticamente dizimados, assim como qualquer um que ousou se levantar contra a operação.

Nos veículos de comunicação burgueses do Brasil e nas agências de notícias imperialistas, as manchetes falam de encerramento da “missão de paz”, de diminuição da violência – e este é um ponto importante. Foram 13 anos de um aparato policial forte e repressivo e ainda assim nem mesmo esses publicitários dos interesses norte-americanos conseguem dizer que a violência foi solucionada.

A miséria é tão gritante que o jornal O Globo publicou o seguinte trecho de uma entrevista:

“Eu imagino a dificuldade que você vai ter de descrever o que é a miséria do Haiti. Seus leitores não vão acreditar — afirma Ricardo Seitenfus, representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti entre 2009 e 2011 — Passam os anos e continua da mesma forma. Cerca de 90% do orçamento haitiano é de doações e de dinheiro enviado pela diáspora. O país não tem economia. E isso é uma demonstração da falência da Minustah.”

Nestes 13 anos, muito pouco se viu nos noticiários sobre a realidade do país. A miséria deste país não poderia ser mais gritante. Ainda assim, não houve um esforço para tentar relatar a realidade. E por que haveria? Os principais meios de comunicação estão à serviço da burguesia brasileira, a qual compartilha a condição de sócia-menor do imperialismo norte-americano. O objetivo dessa cobertura era proteger e manter o sistema opressor que permite a miséria não só do Haiti, mas de todo o globo.

Os casos de estupro, de exploração sexual, também são retratados com distanciamento. Não só o geográfico, mas quase como se não fosse algo real, cotidiano. Não há qualquer forma de contenção. A todo o momento, o que sai na mídia burguesa trata da “missão de paz”. A maneira como os soldados brasileiros são vistos pelos haitianos é camuflada. Há muito medo. As rondas em busca de “gangues” e “guerrilheiros” matam crianças, mulheres e os poucos idosos do país.

Isso também é explicado por Lenin. Em seu livro “La Información de Clase”, ele explica como surgiu a imprensa operária russa. A história da imprensa operária, diferente da imprensa burguesa, está ligada diretamente ao movimento democrático e socialista. Somente com a compreensão e conhecimento das etapas da emancipação dos trabalhadores é que a imprensa pode desempenhar um papel revolucionário.

Com os grandes veículos de comunicação subordinados aos interesses imperialistas, a verdadeira história sobre a “missão de paz” da Minustah será sempre omitida e distorcida.

A saída? Revolução!

A “missão de paz” foi tratada como necessária para os haitianos, para conter a violência e ajudar a reconstruir o país. E não como um aparato opressor, que matava diariamente em nome da paz, e que impunha uma ditadura militar a serviço dos Estados Unidos. O que é preciso é uma revolução, onde o povo faça valer mais uma vez sua história de rebeldia revolucionária, tome o poder e abra um futuro socialista para as massas haitianas. Esse seria um caminho para o fim desta barbárie.

A história de luta e resistência do povo haitiano é um exemplo para os explorados de todo o mundo: “O Haiti se tornou a primeira nação negra das Américas quando, após ter conquistado a libertação, em 1794, com uma insurreição dos escravos negros, expulsou a bala e a facão, em 1803, os colonialistas franceses”[4]. Essa é a história que os países que controlam a ONU precisam apagar e esconder. Não deixaremos que aconteça. Pela independência política do povo haitiano na luta por sua emancipação, fora as tropas da ONU, abaixo o capitalismo!

Tirem as mãos do Haiti!

Em defesa da revolução e da liberdade do povo haitiano!

[1]  Lísias, Ricardo. Um Soldado Brasileiro no Haiti. Globo Editora. 2007.

[2] United Nations,United Nations Statistics Division, National Accounts Main Aggregates Database,Basic Data Selection, New York, 2016. Acesso em: dez.2017.

[3] The Observatory of Economic Complexity. Acesso em: Dez/2017Site: https://atlas.media.mit.edu/pt/

[4] IBID.