O que está por trás das ações de Dória e Alckmin na Cracolândia

Em uma chuvosa manhã de domingo, dia 21 de maio, no curso de uma esvaziada Virada Cultural, o prefeito João Dória Jr. e o governador Geraldo Alckmin, promoveram uma megaoperação militar na Cracolândia, centro de São Paulo, região que engloba parte dos bairros da Luz, Santa Ifigênia e Bom Retiro. A operação conjunta – planejada pelo secretário de segurança pública, Mágino Alves Barbosa Filho e pelo alto comando da Polícia Militar paulista – contou com 900 agentes das polícias militar e civil e da Guarda Civil Metropolitana, com o apoio de helicópteros e carros blindados. O objetivo, segundo as fontes oficiais,  era sufocar o tráfico de drogas e liberar as principais ruas da região do fluxo, (como é conhecida a grande aglomeração de usuários de crack, onde a droga é vendida e pode ser consumida livremente). O que se viu naquela triste manhã foi um cenário de guerra, onde desproporcional força militar, bombas, gás e balas de borracha foram utilizados contra pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Entre uma ou outra apreensão de armas e drogas, barracas eram destruídas e objetos de uso pessoal eram confiscados pelos agentes da prefeitura. Hotéis, pensões populares e pequenos estabelecimentos comerciais foram invadidos pelos policiais. Alguns foram demolidos indiscriminadamente por máquinas pesadas nos dias que se seguiram, como foi o caso do hotel demolido com quatro pessoas dentro.

Na ânsia de se construir como quadro presidenciável do PSDB, não é a primeira vez que Dória se serve de ações apressadas e improvisadas. Nem a prefeitura e nem o governo do estado notificaram o Ministério Público e a Defensoria Pública, que foram surpreendidos pela ação. Agentes de saúde, entidades de assistência social e movimentos sociais e culturais que atuavam na região sequer foram consultados. A própria Secretária de Direitos Humanos Patrícia Bezerra, nomeada por Dória no início de sua gestão, se demitiu no dia seguinte ao ocorrido alegando desacordo com a política do prefeito, a qual qualificou de “desastrosa”. No dia seguinte à operação, tanto Dória quanto Alckmin não compareceram à entrevista coletiva e deixaram toda a imprensa falando sozinha e sem explicações.  Ávido por autopromoção o prefeito brada aos jornalistas e nos seus horrorosos vídeos de publicidade “O fim da Cracolândia”, quando na verdade a maior parte dela se mudou para a frente do Terminal Princesa Isabel, a 400 metros do local da ação. A outra parte dessas pessoas, se espalhou por mais de vinte pontos em todo o centro de São Paulo. A região está conflagrada. Trabalhadores, estudantes e pequenos comerciantes da região sofrem, ora com o comportamento imprevisível dos usuários privados da droga, que circulam pelas imediações, ora com as ações desproporcionais das forças de segurança. Dória agora trava uma intensa queda de braços com o Ministério Público pela liberação da internação compulsória dos usuários, medida que passa por cima de anos de conquistas da luta antimanicomial. Tenebrosos contêineres-alojamento do Redenção, projeto que a própria prefeitura não consegue explicar direito como funcionará, estão sendo montados no estacionamento do quartel-general da Guarda Civil Metropolitana na Luz, sob os olhares atentos da “guarda pretoriana” de Dória.

As ações draconianas não pararam por aí. Na manhã do último domingo (11/6), uma nova operação, semelhante a essa de três semanas atrás, foi deflagrada. Desta vez o alvo era o fluxo na frente do Terminal Princesa Isabel. Quase na mesma hora o instituto Datafolha divulgava uma pesquisa feita recentemente na Cracolândia, mostrando que tristeza, solidão, traumas ou simples curiosidade, motivaram o primeiro contato daqueles dependentes com o crack. A ação foi igualmente brutal. Parte dos usuários, instalados na nova concentração, optaram por fugir para outras regiões do centro, parte resolveu resistir e atear fogo nas barracas, colchões e cobertores, causando um grande incêndio na frente do Terminal. Alckmin e Dória declararam aos principais veículos de imprensa que a “operação muito bem planejada” foi um sucesso. Dois pequenos traficantes e um usuário foram presos e menos de um quilo da droga foram apreendidos. No final da tarde de domingo, a imprensa noticiava que o fluxo estava novamente instalado na Rua Helvetia, local da ação do dia 21 de maio. As soluções militares dos dois parceiros de PSBD têm se revelado verdadeiras quixotadas.

De Hollywood paulistana e Boca do Lixo ao reinado do crack:

Esta região do centro de São Paulo que compreende as imediações das avenidas Duque de Caxias, Ipiranga, Rio Branco, Cásper Líbero, Rua Mauá e Praça Princesa Isabel já viveu dias gloriosos. Já foi o grande centro de lazer e negócios da elite paulistana no final do século XIX e início do XX. Com a construção da Estação da Luz, o comércio do entorno se expandiu para atender os viajantes com hotéis, restaurantes e cabarés – alguns deles bem luxuosos que tinham como sua clientela principal a aristocracia cafeeira e uma burguesia que ainda “engatinhava” naqueles anos. Nas décadas de 20 e 30 se tornou uma espécie de Hollywood paulistana, conhecida em todo país por abrigar os estúdios da Paramount, da Fox e da MGM. Com o tempo essas grandes companhias atraíram distribuidoras de filme, fábricas de equipamentos e empresas especializadas em serviços técnicos de manutenção da aparelhagem cinematográfica. Até hoje a região se notabiliza pelo forte comércio de eletroeletrônicos, possivelmente uma tradição herdada daqueles tempos. No final da década de 60 até início dos anos 80, tornou-se um reduto do cinema independente. Foi batizada de Boca do Lixo no período do Cinema Marginal, em referência às personagens do “submundo” que cada dia mais surgiam por ali. Nos anos de 1970, se expandiu e floresceu na pornochanchada, com suas comédias, dramas policialescos, bang bangs, filmes de terror e de artes marciais, todos de baixo custo e com forte apelo sexual mas sem cenas muito explícitas, já que essas eram proibidas pelo censura da Ditadura Militar. Alguns foram sucessos de bilheteria, como A Viúva Virgem de Rovai e Giselle, de Victor di Mello. Neste período passaram pela Boca, cineastas como José Mojica Marins, (Zé do Caixão), Juan Bajon, Claudio Cunha, Carlos Reichenbach, Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Walter Hugo Khouri. Mais de 700 títulos foram produzidos ali nesses anos. Com a redemocratização no início dos 80, veio o fim da censura às cenas de sexo explícito, com isso a pornochanchada “perdeu o sentido” e entrou em franco declínio. Primeiro foram os estúdios de cinema estrangeiros, hotéis, cafés, cabarés e restaurantes de luxo, agora também os estúdios independente estavam migrando para outros bairros da cidade abrindo assim um processo de imensa desvalorização imobiliária. As recorrentes cheias do Rio Tietê e Tamanduateí e a degeneração do transporte ferroviário também contribuíram paulatinamente com esse processo.

Em 1961, a inauguração da antiga Rodoviária de São Paulo – histórica porta de entrada dos fluxos migratórios vindos de vários pontos do país – também colaborou muito com o início da degradação da região. Desde então vicejou nas cercanias do terminal, o ramo de bares e hospedarias de caráter mais popular, bem como o baixo meretrício e o tráfico de drogas. Houve um aumento significativo dessas atividades em paralelo com a intensa urbanização do centro da cidade a partir do final dos anos 70. No caso da prostituição, até hoje muito se explora essa atividade no bairro, não apenas nas ruas do entorno da Estação da Luz, mas também em prédios inteiros como é o caso do edifício nº 69 da Rua dos Andradas, um dos famosos “cabarés verticais” do centro. Porém foi o surgimento do crack na década de 1990 que deu contornos de tragédia a essa história. A escalada da urbanização trouxe também mais desigualdade social e o crescimento de um lumpemproletariado urbano que migrou para aquele canto esquecido da cidade, atraído pela grande oferta e possibilidade de livre consumo da pedra de crack. Aos poucos essas pessoas abandonaram o uso da cola de sapateiro e aderiram massivamente ao crack, mais barato, mais acessível, mais brutal e mais eficaz no sentido de fazer-lhes esquecer a fome, a doença, o frio e o abandono. Eles passam dia e noite em função da droga. Praticam mendicância, pequenos furtos e assaltos ou trabalham com reciclagem de materiais para sustentar o vício. Muitos se prostituem em troca de quantias módicas, tendo assim que fazer diversos “programas” por dia para conseguir comprar a droga. Na maioria das vezes, os “programas” acontecem sem a utilização de preservativos em locais com péssimas condições de higiene. Essas moças e rapazes, muitos deles menores de idade, contraem facilmente doenças sexualmente transmissíveis ou engravidam, aprofundando assim esta calamidade de saúde pública para além do vício. É importante salientar que nem todos os frequentadores da Cracolândia são usuários de crack. Há quem prefira outras drogas ilícitas, há quem só consome bebidas alcoólicas de péssima qualidade, como também há quem não é viciado em droga alguma e está na rua apenas por falta de qualquer oportunidade diferente. Todos vivem o mesmo drama, que se agravou ainda mais com as incursões imediatistas e midiáticas do prefeito João Dória.

A Nova Luz de Kassab e Dória. Haddad e suas políticas de assistência social dentro dos limites da conciliação de classes:

Não é a primeira vez que um prefeito tenta resolver a tragédia da Cracolândia apenas com soldados. Em 2005, como parte do programa de governo de José Serra, surge o Projeto Nova Luz. Trata-se de um projeto de revitalização urbanística do perímetro, que seria feito por meio de concessão urbanística*, que a grosso modo é uma medida privatista. Em 2007 a Câmara de Vereadores aprova o projeto no qual destaca-se a renúncia fiscal da prefeitura ao IPTU, visando estimular as reformas das fachadas de imóveis de valor venal inferior a R$300.000,00, entre outras medidas propostas. Serra abandonou a prefeitura em 2006 para enfrentar Lula nas eleições presidenciais, coube ao seu vice Gilberto Kassab, (então do DEM) seguir com o projeto. Requentado este ano por Dória, o projeto vai ainda mais adiante na concessão do espaço público à iniciativa privada. A concessionária que vencer a licitação para o projeto da Nova Luz deverá desapropriar, comprar e demolir ou reformar 546 imóveis, totalizando 23% da área construída e 55% da superfície da área a ser revitalizada. No lugar dos imóveis demolidos, terá que de construir e poderá explorar parcialmente, empreendimentos imobiliários, infraestrutura urbanística e equipamentos urbanos, segundo o que for definido no projeto. Mesmo antes da aprovação e lançamento do Nova Luz em 2007, as ações de zeladoria da prefeitura paulistana já apontavam para o higienismo. Desde 2005 pequenas hospedarias, bares e ocupações de movimentos culturais e de luta por moradia, vem sendo desocupados e fechados. Outra medida foi o  aumento da repressão policial, com a justificativa de inibir a venda e o consumo de drogas e a prostituição no local. Nenhuma ação de assistência social foi oferecida aos grupos mais vulneráveis que lá vivem e trabalham. Assim como na atual gestão, pessoas em situação de rua eram sumariamente expulsas. O trabalho dos catadores de material reciclável era dificultado e dependentes de crack eram proibidos de se reunir, sendo obrigados a vagar sem rumo pelos bairros vizinhos. O objetivo por trás do ambicioso Projeto Nova Luz – tanto o de Serra/Kassab quanto o “ressurreto” de Dória – é transformar a Cracolândia, área muito bem localizada, em um grande balcão de negócios da especulação imobiliária. Este é o estado burguês tratando o patrimônio público como se fosse sua propriedade privada. Em janeiro de 2012, ano das eleições municipais, Kassab tentou a sua última cartada com a “Operação Centro Legal”, que também foi uma megaoperação militar que visava desmantelar os fluxos e promover a internação compulsória dos dependentes. A repercussão da “caçada humana” e a pulverização da Cracolândia por 27 bairros vizinhos, resultado da ação inglória, foi o “enterro político” de Kassab. Neste mesmo ano Fernando Haddad se elegeu prefeito de São Paulo.

Em relação à Cracolândia, a gestão Haddad apontou para um horizonte mais humano. Além de arquivar o projeto higienista e privatista de seu antecessor, implantou o programa social De Braços Abertos. Esse programa – prontamente apelidado pela imprensa burguesa de “Bolsa Crack” – foi baseado na estratégia de redução de danos e reintegração do usuário ao meio social tirando-o da situação de rua e lhe dando a possibilidade de trabalho e salário. Os participantes do programa trabalhavam na varrição das ruas, tinham moradia garantida em pequenos hotéis da região pagos pela prefeitura e uma remuneração de R$15,00 por dia. O programa é um modelo do que já havia sido feito na Alemanha e na Holanda em relação a esse problema social e de saúde pública. A medida teve reconhecimento nacional e internacional. Porém de nada adianta batalhões de médicos, enfermeiros e assistentes sociais se não se enfrenta o problema nas diversas frentes em que se manifesta. Haddad não encarou com coragem a especulação imobiliária. Ao contrário disso, em 2014, promoveu junto com Geraldo Alckmin a violenta reintegração de posse da ocupação do Edifício São João, o que muito contribuiu para o aumento da população em situação de rua na Cracolândia. Em 2013 já era, e ainda é, grande o número de prédios vazios no centro de São Paulo, em situação de total abandono, devendo milhões de reais em imposto para prefeitura que poderiam ser expropriados para fins reforma urbana ou como zonas de interesse social. Haddad poderia ter avançado mais neste sentido, com o apoio dos movimentos de luta por moradia e das bases que confiaram no seu programa, já que dentro da própria lei burguesa isso poderia ser arranjado, como foi o caso da expropriação do Clube de Regatas Tietê, onde hoje funciona um clube escola da prefeitura. Cabe acrescentar que o ex-prefeito, com as bênçãos dos cofres federais, ampliou a militarização da GCM com a criação de uma divisão de choque e um batalhão de operações especiais, em um período que compreende o fim das Jornadas de Junho de 2013 e o início da Copa do Mundo de 2014. Após esse processo, o número de denúncias de agressões e apreensões de barracas e pertences pessoais de moradores de rua, teve um salto quantitativo. Procurando conciliar classes sociais com interesses distintos, Haddad saiu do executivo paulistano, incensado por setores da pequena burguesia, a quem procurou agradar, porém saiu derrotado no primeiro turno pelo fraco Dória e abandonado pelas bases que o elegeram em 2012.

O programa De Braços Abertos não é ruim. Na verdade foi a tentativa mais avançada no sentido de resolver esse complexo problema social e de saúde pública. Entretanto, este é um problema sistêmico. É tarefa dos marxistas explicar que, por mais humana que seja a medida para pôr fim à Cracolândia ela será ineficaz e limitada dentro do sistema capitalista. Um sistema que prioriza o lucro em detrimento de vidas humanas não têm interesse no esgotamento dessa situação. O capitalismo permite a existência de drogas tão nocivas e viciantes como o crack, justamente porque utiliza-se delas para desmobilizar e destruir o proletariado. Ao mesmo tempo que lucra com a venda de drogas, permitindo “por debaixo do pano” sua circulação e comercialização, lucra com a venda de armas para combater o tráfico. Se justificando com o argumento hipócrita da “guerra às drogas”, o estado burguês monta seu aparato de guerra para reprimir, amedrontar e exterminar jovens e trabalhadores. Com o aprofundamento da crise econômica mundial, a destruição de forças produtivas se tornou imprescindível para a salvação dos negócios da burguesia e nesses casos a barbárie se faz cada vez mais presente. Com a ressurreição do Projeto Nova Luz, Dória e Alckmin apenas cumprem o seu papel classista, tentando de todas as maneiras “varrer do mapa” o lumpemproletariado – setor mais vulnerável entre os explorados – para dar lugar aos lucrativos negócios da especulação imobiliária. A solução definitiva para questão da Cracolândia passa pela superação do sistema capitalista. Só será possível acabar com a especulação imobiliária das empreiteiras e grandes conglomerados extinguindo a propriedade privada dos grandes meios de produção. Só será possível oferecer cura a essas pessoas doentes, proporcionando-lhes um serviço de saúde de qualidade, especializado, eficaz e gratuito. Só será possível lhes trazer novas perspectivas e restituir sua a dignidade, dando-lhes o direito à moradia. Só um governo dos trabalhadores terá condições de abrir esse novo horizonte. Ainda assim será um processo duro e demorado, porém livre da sede de lucro e da exploração capitalista. Enquanto ainda não temos as condições concretas para a revolução, seguiremos denunciando e desmascarando o higienismo de Dória e Alckmin, denunciando a especulação imobiliária e cerrando escudos com os que lutam pelo direito à moradia, pela regeneração e reabilitação dos dependentes e pessoas em situação de rua, por um serviço de saúde público, gratuito e para todos, contra a repressão policial e pela construção de uma sociedade justa e igualitária.

* Concessão urbanística: É quando Estado atribui o exercício de um serviço público a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco,nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela própria exploração do serviço, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários do serviço.”