O que é o dinheiro? (Parte 5: o futuro do dinheiro)

Análise sobre o papel do dinheiro na sociedade capitalista, suas origens e a relação com a produção de mercadorias.

Na parte final de sua série sobre a história e desenvolvimento do dinheiro, Adam Booth explora como as teorias e os sistemas monetários mudaram ao longo do tempo em respostas às crises, e examina as “soluções” propostas para superar as contradições que o sistema monetário enfrenta atualmente. Como vamos quebrar o feitiço da chamada “raiz de todos os males” e nos livrarmos destas “correntes de ouro”.


Mudanças de paradigma

O colapso do sistema de Bretton Woods e a crise mundial dos anos 1970 assinalaram a sentença de morte tanto do padrão-ouro internacional quanto do “consenso Keynesiano”. Em seu lugar, respectivamente, vieram o sistema das taxas de câmbio flutuante e o programa econômico do monetarismo, que deram ênfase à política monetária apertada e às medidas pelo “lado da oferta” – isto é, manter baixa a inflação restringindo a oferta monetária e reduzindo os custos de produção, acima de tudo os custos do trabalho (ou seja, os salários). Estas ideias foram, por sua vez, consubstanciadas teoricamente por Milton Friedman e, politicamente, pela administração Reagan nos EUA e pelo governo Thatcher na Grã-Bretanha. Como mencionado anteriormente, entretanto, sua guerra à inflação na realidade tornou-se uma folha de parreira para uma guerra à classe trabalhadora em benefício dos capitalistas e seus lucros.

O que vimos nos últimos 100 anos, então, como o demonstram os exemplos do padrão-ouro, do acordo de Bretton Woods e, agora, da moeda única europeia, é que todos os sistemas monetários ou políticas monetárias eventualmente alcançam os seus limites. Cada um desses sistemas monetários internacionais citados foi capaz de se cristalizar em um período de auge capitalista e de estabilidade geopolítica global, em que as contradições do capitalismo e do estado-nação podiam ser temporariamente encobertas. Por sua vez, a presença de um sistema monetário internacional se converteu em uma fonte de estabilidade, facilitando o crescimento do comércio, a expansão do mercado mundial e, dessa forma, o desenvolvimento das forças produtivas.

Mas em todos os casos, ante a emergência de uma crise mundial, esses pontos fortes do sistema monetário internacional com o tempo se convertem em seu oposto e agem como uma camisa de força sufocante, servindo para amplificar essas contradições e convertendo-se em uma fonte de grande instabilidade econômica e geopolítica. O sistema monetário, incapaz de conter suas tensões e antagonismos internos, é destroçado, somente para ser substituído por um novo sistema quando o equilíbrio econômico é (de forma temporária e parcial) restaurado.

De fato, o que se vê no plano da política monetária é um tipo de “mudança de paradigma” – uma mudança qualitativa na política, teoria e ideologia – que surge das crises e da acumulação de contradições no velho sistema, e que, por sua vez, expõe as falhas e fraquezas desses sistemas.

Em última análise, contudo, as crises de cada um desses sistemas monetários – o padrão-ouro, Bretton Woods ou o Euro – são somente um reflexo da crise geral do capitalismo. São as contradições subjacentes do capitalismo – e as crises gerais do sistema capitalista – que estão na raiz do problema.

Neste sentido, não é de admirar vermos, hoje, os chamados “experts” econômicos arrancando os cabelos e escavando nos miolos para encontrar soluções. Nem o monetarismo nem o Keynesianismo podem oferecer uma saída, uma vez que são os dois lados da mesma moeda capitalista. Enquanto isto, dadas a amplitude e profundidade da crise atual, o livro de regras está sendo rasgado e os textos acadêmicos estão sendo reescritos rapidamente, e os bancos centrais e governos estão considerando (e a promulgação) de políticas monetárias – tais como “helicopter drops” [helicopter drop seria uma ferramenta de política monetária, hipotética e pouco convencional, que envolveria a impressão de enormes somas de dinheiro – NDT] e Flexibilização Quantitativa – que, há não muito tempo, eram consideradas impensáveis e sacrílegas.

Os sintomas e a doença

Com os “experts” à deriva na escuridão, uma série de teorias antes marginais ganharam proeminência, oferecendo um remédio para o mal-estar monetário da sociedade. Em primeiro lugar, estão os que propõem um retorno ao padrão-ouro, na esperança de que isto porá um fim à impressão de dinheiro pelos governos e à condução de políticas monetárias inflacionárias. Em essência, este comboio hayekiano de pensamento acentua os problemas associados à acumulação da dívida pública e privada, que, por sua vez, é atribuída à intervenção do governo – por exemplo, ao estimular bolhas de crédito mediante o estabelecimento de taxas de juros muito baixas.

O que este campo não considera, contudo, é: o que aconteceria se os governos não interviessem na economia e o crédito não fosse expandido? Podem as crises ser evitadas pela mão mágica e invisível do mercado? Os Hayekianos modernos imaginam que sem a interferência governamental, as forças de oferta e demanda do mercado resolveriam todos os problemas; que as crises ainda poderiam ocorrer, mas que seriam apenas um alarme menor em comparação à profunda recessão que estamos experimentando agora.

Como já explicamos, contudo, o crédito não cria a crise, apenas a retarda. Na ausência da expansão do crédito, a crise dos anos 1970 simplesmente teria continuado e se desenvolvido em um nível mais alto. Foi necessária a expansão do crédito para manter a capacidade de consumo da classe trabalhadora face aos ataques aos salários – ou seja, ao poder de compra – destes mesmos trabalhadores, tudo em nome da manutenção dos lucros dos capitalistas. Sem a expansão do crédito, a expansão das forças produtivas teria se chocado com um mercado limitado – isto é, com uma falta de demanda efetiva – muito mais cedo. As empresas teriam cessado a expansão da produção em face da queda da demanda dos bens de consumo; o desemprego teria se elevado; o ciclo vicioso da recessão teria se instalado.

Hoje, de forma similar, em vez de estabelecer um equilíbrio estável, um retorno ao padrão-ouro levaria rapidamente a uma explosão social e política, enquanto os governos de todo o mundo – na ausência de qualquer política monetária independente – tratariam de atacar a classe trabalhadora para exportar sua saída da crise através da “desvalorização interna”. A este respeito, como Trotsky sublinhou em seus discursos à Internacional Comunista na esteira da I Guerra Mundial, cada ação que a classe dominante tomar, numa tentativa de restaurar o equilíbrio econômico somente servirá para destruir o equilíbrio social e político – e vice-versa.

Em outros lugares, campanhas como Positive Money [Positive Money é uma organização baseada no Reino Unido que faz campanha contra o sistema bancário de reserva fracional – NDT], pedem que o sistema bancário seja submetido ao “controle democrático”, com uma regulação que detenha a criação de dinheiro pelos bancos e os empréstimos apenas para realizar um lucro (através dos juros) – de fato, um fim para a banca de reserva fracional.

Essencialmente, esses ativistas estão tentando destacar o mesmo problema enfatizado pelos Hayekianos – o da criação do crédito, de capital fictício e de bolhas especulativas – mas estão demandando a solução oposta: não por menos intervenção governamental, e sim por mais. Por sua vez, Positive Money sugere uma forma de “Flexibilização Quantitativa do povo”, como também é colocada pelos assessores econômicos de Jeremy Corbyn, em que novo dinheiro é criado, sem qualquer dívida correspondente, por um tribunal monetário “independente”. Tal dinheiro, propõem a campanha, somente seria lançado na “economia real” – através do gasto, não do empréstimo – para financiar o investimento na indústria e na infraestrutura etc.

Duas falhas fundamentais devem ser realçadas com estas propostas, contudo. Em primeiro lugar, como explicado acima, o desenvolvimento das finanças (incluindo o sistema bancário de reserva fracional) e a enorme expansão do crédito não são o resultado da “ganância dos banqueiros”, mas são o resultado das exigências do sistema capitalista de crescer constantemente e de se expandir além dos limites do mercado. Em outras palavras, como discutido anteriormente, o crédito não é simplesmente imposto à sociedade pelos bancos, mas surge das necessidades do sistema de superar suas próprias contradições – fundamentalmente, a da superprodução.

Em segundo lugar, devemos colocar a pergunta: por que se necessita desta “FQ do Povo” para injetar dinheiro na economia real? Por que há tanta especulação e tão pouco investimento privado em coisas socialmente necessárias como escolas, hospitais, transporte, energia verde e novas moradias?

Afinal, o problema não está simplesmente na natureza antidemocrática do sistema bancário, e sim no problema da propriedade privada dos meios de produção e dos altos comandos da economia. A propriedade pública e o controle democrático dos bancos seriam um grande passo na direção certa, mas, dentro do capitalismo, não resolveriam a questão fundamental: não se pode planejar o que não se controla, e não se pode controlar o que não se tem.

Neste sentido, sob o capitalismo, os governos não têm qualquer poder real sobre os bancos e grandes empresas; são os bancos e grandes empresas que dominam os governos. Se quisermos investir em coisas que a sociedade realmente necessita, então necessitamos tomar o controle dos principais monopólios e das multinacionais, e nacionalizá-los sob o controle dos trabalhadores como parte de um plano socialista de produção. Na ausência disto, quaisquer reformas do sistema bancário apenas levarão a uma greve de investimentos pelos capitalistas – um ato de sabotagem econômica realizado pela classe capitalista, como se vê atualmente na Venezuela.

Por último, mais uma vez à semelhança dos Hayekianos, existem anarquistas libertários que culpam o governo e os bancos centrais por terem o monopólio sobre a capacidade de criar dinheiro e estabelecer as taxas de juros. Sua solução: criar “moedas digitais”, como o exemplo mais famoso, Bitcoin, que são descentralizadas em sua estrutura, e, portanto, fora do controle destes mesmos governos e bancos centrais.

Diferentemente das moedas normais, que são, em última análise, respaldadas pelo estado, a rede Bitcoin é mantida por voluntários, que recebem Bitcoins em troca para manter a rede – um processo referido como “mineração”. As transações são indelevelmente registradas na “cadeia de blocos” – um livro de contabilidade de todas as transações realizadas – do qual cada usuário Bitcoin tem uma cópia. Esta configuração descentralizada torna impossível para uma pessoa ou entidade controlar a moeda; em vez disso, quaisquer mudanças na rede têm que ser acordadas com todos os que trabalham para mantê-la.

Apesar de toda a conversa “libertária”, contudo, a realidade de Bitcoin ficou um pouco abaixo de suas promessas utópicas. Para começar, dada a ausência de qualquer apoio de qualquer governo ou banco central, Bitcoin está tendo problemas para se tornar amplamente aceito e permanece à margem da economia; por exemplo, nas transações anônimas através de mercados online, tais como Silk Road [Silk Road é um mercado negro online. O site foi lançado em 2011. Os compradores podem registrar-se na Silk Road de graça – NDT].

Em segundo lugar, como uma decorrência do fato de que não é generalizado ou ancorado de alguma forma na economia real, Bitcoin é extremamente vulnerável a mudanças voláteis em seu preço e a ser sequestrado como um veículo para a especulação, não o tornando melhor como uma alternativa ao dinheiro do que as moedas tradicionais.

Finalmente, é interessante notar que a comunidade Bitcoin está agora passando por seu próprio cisma, ou “guerra civil”, como colocou um comentarista, refletindo precisamente as pressões contraditórias dentro de qualquer sistema monetário para cuja superação as moedas digitais foram inventadas: por um lado, a necessidade de aumentar a oferta de dinheiro (ou sua velocidade de circulação, como é o caso com a atual divisão de Bitcoin) para se manter em dia com as demandas do mercado em expansão de transações crescentes; e, por outro lado, a necessidade de impedir que a oferta de dinheiro se divorcie da economia real a que se destina a representar.

Como outras áreas da teoria anarquista, a experiência do Bitcoin está condenada ao fracasso por causa da análise utópica e idealista do dinheiro que está por trás dele. Tal como acontece com as questões do Estado ou da Lei, como ficou demonstrado neste artigo, o dinheiro não foi imposto à sociedade por qualquer força de cima (neste caso, como nos diz os cruzados do Bitcoin, os bancos centrais e o governo), mas é – como a linguagem, por exemplo – uma ferramenta social que emerge das necessidades da produção; no caso do dinheiro, das necessidades de um sistema baseado no mercado de produção e troca de mercadorias.

Em suma, o problema não é a “intromissão” dos bancos centrais, mas a anarquia do mercado, que surge da propriedade privada; e nenhuma quantidade de experiências utópicas vai ajudar. E, da mesma forma como nas chamadas “soluções” de retornar ao padrão-ouro ou de “democratizar os bancos”, devemos olhar o problema de forma materialista e dialética para enfrentar, não os sintomas que a sociedade enfrenta, mas a enfermidade subjacente: a sociedade de classe e a propriedade privada.

O futuro do dinheiro

Como podemos ver em tantas áreas da sociedade, da política e da economia, a natureza conservadora da classe dominante, que deseja manter, sempre e em todos os lugares, o status quo que opera em seu favor, com demasiada frequência blinda os fenômenos em uma atmosfera de misticismo atemporal. Como era no início, como é agora, e sempre será: este é o hino dos exploradores, que se afanam por reforçar a ilusão de que a presente situação representa a ordem “natural” e “ideal”, e é, portanto, eterna e imutável.

Os Marxistas, pelo contrário, pretendem ser os mais consequentes materialistas, entendendo as origens do fenômeno em termos das condições materiais concretas e traçando seu desenvolvimento histórico de mudanças através da contradição. Através de um procedimento deste tipo, pode-se não apenas explicar as leis internas reais e o movimento de um processo, como também entender como tais fenômenos se verão afetados pelos acontecimentos em outras partes da sociedade.

Em seu O Capital e em outros escritos econômicos, Marx aplica rigorosamente este método à questão do dinheiro, despindo-o de seus atributos aparentemente místicos e mágicos para revelar sua real natureza subjacente. Em lugar de qualquer reverência ao dinheiro, Marx descobre a base material do dinheiro e, dessa forma, o expõe como ele realmente é: o resultado necessário da produção e troca de mercadorias em uma certa etapa de desenvolvimento.

Apesar do que nos diz a Bíblia, o dinheiro não é a “raiz de todo o mal”. Como este artigo demonstrou numa visão retrospectiva e ao analisar as origens históricas e o desenvolvimento do dinheiro, ele é um dispositivo social que surge de um sistema de produção e troca de mercadorias, e esta, por sua vez, está ligada à questão da propriedade privada, em que a produção não é mais para o consumo direto, mas para a troca, e em que homens e mulheres se confrontam entre si não mais como pessoas, mas como mercadorias.

À medida que a produção e troca de mercadorias se generaliza, assim também ocorre com o sistema monetário (e de crédito). Por sua vez, as relações sociais se transformam crescentemente em relações monetárias, e o aparente poder e controle onipotente do dinheiro cresce. O capitalismo – e, de fato, o imperialismo – é a etapa mais alta deste processo; o ponto em que a produção e troca de mercadorias se tornou completamente universal e generalizada, na medida em que a força de trabalho – a capacidade de trabalho dos trabalhadores – se converteu, ela própria, em uma mercadoria a ser comprada e vendida no mercado, e o sistema de crédito transformou todo o dinheiro em capital: em valor que se autovaloriza.

O dinheiro, em suma, não pode ser abolido simplesmente. Para livrar o mundo do dinheiro e de seus flagelos, necessitamos nos livrar do sistema de produção e troca de mercadorias que lhe dá origem. Ou seja, necessitamos nos livrar da propriedade privada dos meios de produção e retornar à propriedade comum sobre as ferramentas, a tecnologia e a riqueza da sociedade. Tal sociedade não seria aquela do “comunismo primitivo”, experimentada por nossos ancestrais tribais, mas um comunismo baseado em um nível muito mais elevado de desenvolvimento econômico, científico e cultural – uma sociedade de superabundância.

Então, qual é o futuro do dinheiro? Por exemplo, haveria dinheiro em uma sociedade socialista?

Para responder estas perguntas, devemos lembrar o que se disse acima: que o dinheiro surge como parte de um sistema de produção e troca de mercadorias. A existência de mercadorias, por sua vez, implica a existência da propriedade privada – da propriedade privada sobre os meios de produção e os produtos do trabalho. Os primeiros passos de uma sociedade socialista, portanto, seriam o de se apossar das alavancas fundamentais da economia – os bancos, os maiores monopólios, a infraestrutura e a terra – e colocá-los sob um plano racional e democrático de produção; em outras palavras, socializar a produção e colocar a riqueza da sociedade em mãos públicas.

Com esse passo, a grande maioria dos valores-de-uso da sociedade agora seria produzida e possuída de forma social. Já não haveria mais necessidade de troca de bens e serviços; em vez disso, as pessoas contribuiriam para a sociedade com seu trabalho “de acordo com suas capacidades” e tomariam do fundo comum “de acordo com suas necessidades”. Os produtos do trabalho – produzidos socialmente, possuídos socialmente e não mais trocados – perderiam, então, seu status anterior como mercadorias.

Certamente, a produção e troca de mercadorias ainda continuaria a existir parcialmente nas primeiras etapas de uma sociedade socialista, visto que toda a economia não pode ser submetida a um plano democrático comum de um só golpe. Pequenos produtores e proprietários – a pequena burguesia – continuariam a existir por algum tempo. Mas as principais “alavancas de comando” da economia fariam parte de um plano de produção socialista, e, assim, a maioria da riqueza não se encontraria na forma de mercadorias. E, ao longo do tempo, enquanto a eficiência e a superioridade da economia democraticamente planificada se comprovam, os pequenos produtores seriam convencidos e incentivados a aderir a este plano social, e, assim, toda a produção remanescente de mercadorias enfraqueceria.

Paralelamente a este definhamento da produção e troca de mercadorias, a necessidade social do dinheiro – como a necessidade social do Estado – enfraqueceria. Cada vez menos bens e serviços seriam trocados; em vez disso, poderiam simplesmente ser fornecidos gratuitamente através de lojas, supermercados e restaurantes comunais, etc.

Já vemos este processo em embrião sob o capitalismo, com serviços como o Serviço Nacional de Saúde (NHS, em suas siglas em inglês), por exemplo, em que qualquer pessoa pode entrar em um hospital e receber tratamento sem gastar qualquer dinheiro. Dentro do capitalismo moderno, onde a classe trabalhadora conseguiu garantir ela própria – através da luta – serviços com financiamento público, tais como o NHS, e um estado do bem-estar, a “renda” recebida pelo trabalhador é, portanto, efetivamente dividida em duas partes: um salário pago ao empregado em troca de sua força de trabalho, e um “salário social” relativo aos serviços e benefícios que são gratuitos no ponto de uso e fornecidos com base na necessidade.

Na transição do socialismo ao comunismo, a proporção entre estes dois componentes mudaria dramaticamente em favor do último. O salário social “invisível” seria enormemente aumentado, enquanto o salário pago em troca do tempo de trabalho diminuiria. Em vez de apenas receber cuidados de saúde sem a exigência de qualquer transação monetária, o transporte, a moradia, a eletricidade, a alimentação, as roupas etc., tudo isto, e ainda coisas atualmente consideradas como “itens luxuosos”, seriam fornecidos sem qualquer troca, como parte de um plano socialista de produção.

Todo o conceito de valor se tornaria gradualmente sem sentido, e em vez de agir como uma representação do valor-de-troca – ou seja, de tempo de trabalho socialmente necessário – em vez disse podem ser fornecidas fichas para indicar o direito de qualquer indivíduo a uma porção do produto comum do trabalho. Em alguns aspectos, isto seria como os cartões de racionamento vistos durante a II Guerra Mundial, em que todos tinham direito a um mínimo básico de bens; só que agora, sob o socialismo, o sistema estaria em um nível qualitativamente superior de desenvolvimento econômico, com os produtos da sociedade não mais racionados e restritos na base da escassez, mas compartilhados ampla e livremente na base da superabundância. Além do mais, na base da tecnologia atual, até mesmo estes símbolos físicos podem ser substituídos por mera informação digital.

Enquanto isto, na base de um enorme investimento na ciência, tecnologia e automação, a capacidade produtiva à disposição da sociedade aumentaria enormemente, e a “renda” total – isto é, a quantidade de bens e serviços que poderia ser alocada a cada indivíduo – também iria aumentar muito. Em suma, as condições de vida melhorariam massivamente e de maneira geral.

Nas etapas iniciais dessa transição, o dinheiro e as sinalizações dos preços da oferta e demanda ainda seriam necessários para indicar onde há escassez, e, dessa forma, onde a economia planificada necessita investir. A esse respeito, os bancos também seriam necessários. Mas, no lugar de todo este aparato financeiro sendo utilizado para dirigir e canalizar o dinheiro dos capitalistas para fins de lucro, o sistema bancário – sob o controle social e democrático do estado dos trabalhadores, como parte de um plano socialista de produção – seria utilizado para proporcionar investimento para eliminar a escassez, melhorar a produtividade e atender às necessidades sociais.

À medida em que, cada vez mais, a economia se ajusta a este plano socialista de produção e a escassez for erradicada, a necessidade do dinheiro e das sinalizações dos preços também enfraqueceria e a sociedade, em vez disso, poderia escolher democraticamente os objetivos a priorizar, e, assim, como e onde investir os recursos materiais, tecnológicos e humanos de que dispõe.

O elevado nível de planificação que se vê atualmente dentro das gigantescas empresas multinacionais em nome do lucro, poderia ser implementado em escala global para nos livrar da anarquia e do caos da mão invisível e assegurar um mundo de abundância para todos. E, com as enormes forças produtivas em escala mundial ao nosso alcance, não há nenhuma razão pela qual não pudéssemos nos mover rapidamente a uma sociedade de superabundância em que todas as nossas necessidades seriam supridas livremente e à vontade, sem necessidade alguma do dinheiro, salvo no conhecimento de que a escassez é uma aberração histórica do passado.  

A classe dominante atualmente tenta constantemente vender o mito de que “capitalismo é liberdade”. Mas, como o protagonista de Ragged Trousered Philanthropists de Robert Tressell, Frank Owen, afirmou, sob o capitalismo estamos todos “amarrados e acorrentados com cadeias de ouro”; governados por uma ditadura de banqueiros. Sob o socialismo, no entanto, com o controle real da economia em nossas mãos, a sociedade seria finalmente livre no sentido verdadeiro: livre do poder do capital e da mão invisível do mercado. Nas palavras de Engels, seria “a ascensão do homem do reino da necessidade ao reino da liberdade”.

Deixemos a última palavra sobre este tema com Leon Trotsky:

“Na sociedade comunista, tanto o estado quanto o dinheiro desaparecerão. Sua morte gradual deve começar sob o regime socialista. Só se poderá falar de vitória real do socialismo a partir do momento em que o estado não seja mais que um semi-estado e o dinheiro comece a perder a sua força mágica. Isto significará, então, que o socialismo, libertando-se dos fetiches capitalistas, começa a estabelecer entre os homens, relações mais límpidas, mais livres e mais dignas.

“As reivindicações de ‘abolição’ do dinheiro, ‘abolição do salário, ‘eliminação’ do estado e da família, características do anarquismo, só apresentam interesse como modelos do pensamento mecanicista.

 “O dinheiro não poderá ser arbitrariamente ‘abolido’, assim como o estado ou a família não poderão ser ‘eliminados’; eles terão que esgotar a sua missão histórica, perder todo o significado e desaparecer. O fetichismo do dinheiro só receberá o golpe de misericórdia quando o ininterrupto crescimento da riqueza social libertar os homens da sua avareza a respeito do minuto suplementar do trabalho e da sua humilhante inquietação quanto à quantidade das rações. Quando perder o seu poder de trazer a felicidade e de lançar o homem no vazio, o dinheiro se reduzirá a um meio cômodo de contabilidade para a estatística e para o plano. Como consequência, se viverá no futuro, provavelmente sem necessidade desta espécie de aval. Mas este desejo poderemos abandoná-lo aos nossos netos que não deixarão de ser mais inteligentes que nós”.


Artigo publicado originalmente em 15 de setembro de 2016, no site da seção britânica da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “What is money? – part five: the future of money“.

Tradução Fabiano Leite.