O Golpe de 1964: algumas lições

Um estudo feito sobre o golpe de 64 que ajuda-nos a compreender a necessidade da independencia do movimento operário.

No dia 1º de abril de 1964 uma nova etapa na luta de classes no Brasil se consolida. A burguesia, por meio do exército brasileiro, realiza um golpe militar que derrubou o governo eleito de João Goulart “Jango”, e iniciou uma ofensiva contra-revolucionária no país. As lições dos papéis das direções naquele momento nos ensinam até hoje.

Para compreender o sentido do golpe civil-militar de 1964 no Brasil temos que buscar suas origens no contexto político-econômico que o antecedeu, onde a relação da burguesia com o governo de Getúlio Vargas (GV), e a repercussão de seu suicídio abriu o período do “desenvolvimentismo” com JK que resultaria mais adiante em um grande endividamento externo e na abertura galopante da economia ao capital privado internacional, com aumento da inflação e grande descontentamento entre os trabalhadores.

As classes dominantes não conseguiam controlar as massas, o que antes era feito através do Estado “paternalista” com apoio da política da direção “pecebista”. A organização popular institucionalizada era precária, particularmente pela fragilidade do quadro político-partidário, mas o movimento de massas ganhava força ultrapassando o controle populista e stalinista. O Parlamento tornou-se palco de conflitos com os enfrentamentos entre a Frente Parlamentar Nacionalista, liderada pelo PTB e desde os bastidores pelo PCB que, sob pressão popular, são empurrados no sentido das reformas de base, e a reacionária Ação Democrática Parlamentar, liderada pela UDN-PSD, conspirando e incitando à reação.

As disputas no (e além do) governo Jango

O governo Jango, caracterizado como de frente popular (de coalizão de classes), foi apenas o estopim. É certo que os setores conservadores jamais o quiseram, mas o que realmente preocupava a burguesia eram as mobilizações dos trabalhadores que ganhavam corpo. Em 1961 ao ser empossado, Jango teve seus poderes de presidente tolhidos por um “parlamentarismo” arranjado. Nos anos seguintes e, malograda a experiência parlamentar, João Goulart volta a ter plenos poderes em uma realidade conturbada e de crescente ascenso revolucionário das massas trabalhadoras do país.

Embora contasse com o apoio do PTB (o partido contava então com uma importante ala esquerda nacionalista), onde então estavam as principais direções sindicais e do PCB, que na ilegalidade (ou semi-legalidade) mantinha ainda uma forte expressão no movimento dos trabalhadores da cidade e do campo. Algo que por si só não era o suficiente liderar, e, ao mesmo tempo, controlar as lutas dos trabalhadores, pois a ascensão da luta dos trabalhadores era maior que a representação política institucionalizada até então.

Ocorria, então, um avanço no processo de consciência das massas que se refletiam nas lutas pela terra e nas greves operárias que acabam por ameaçar as tradicionais relações entre capital-trabalho-Estado, ameaçando romper o pacto social e político que funcionava desde Getúlio Vargas.

Ao contar com o apoio dessas duas organizações (PTB e PCB) que dirigiam a classe trabalhadora, o governo de Goulart tinha claras características populistas, assim como as Ligas Camponesas, principal movimento camponês, era dirigido por Francisco Julião, um deputado do PSB. Vale lembrar que o PSB defendeu a posse e o governo do vice-presidente João Goulart em 1961, e quando esse assumiu o governo o apoiou. A UNE, outra importante entidade da época, defendia a reforma universitária no contexto das reformas de base propostas pelo governo Jango. Assim, os principais movimentos populares e partidos de esquerda ou estavam no governo de Jango, ou o apoiavam.

Nas cidades, as greves, manifestações e a organização da classe trabalhadora preocupavam a burguesia brasileira e o seu “patrão”, o imperialismo norte-americano. Não bastasse isso, este último tentava ainda deglutir o grande problema que seria o surgimento de um regime comunista no seu quintal. Cuba era então uma fonte interminável de problemas para o imperialismo ianque e todos os seus aliados na América Latina. A política norte-americana era clara: isolar e derrotar a revolução o mais rápido possível.

Entre 1961 e 1964 quadruplicou o número de greves econômicas nos serviços e na indústria. Os grevistas chegaram a 5,6 milhões, caracterizando o maior ascenso grevista da história do país até aquele momento. Em outubro de 1963 ocorreu uma grande greve, conhecida como a greve dos 700 mil, resultado da unificação de diversas campanhas salariais de diversos setores operários, como químicos, alimentação, metalúrgico, têxteis, calçadistas, entre outras. No campo, as Ligas Camponesas no nordeste e a ULTAB, principalmente no sul, ocupavam terras e realizavam lutas em defesa dos trabalhadores.

No entanto, o que mais era assustador para a burguesia foi a ruptura da cadeia de comando nas forças armadas. Em 12 de setembro de 1963 uma rebelião promovida por cabos, sargentos e suboficiais, sobretudo da Aeronáutica e da Marinha do Brasil, em Brasília, motivada pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de reafirmar a inelegibilidade dos sargentos para os órgãos do Poder Legislativo, conforme previa a Constituição de 1946, ficaria conhecida como a revolta dos sargentos.

João Goulart tentou ter uma política “independente” e em 23 de novembro de 1961 reatou relações diplomáticas com a URSS, rompidas no governo Dutra; manifestou-se contrário às sanções impostas ao governo cubano e recusou-se a apoiar a invasão a Cuba, proposta pelo presidente Kennedy. Ao mesmo tempo, tornou explícita sua crítica ao regime político cubano e atuou, a pedido dos Estados Unidos, como mediador junto a Havana, externando a preocupação brasileira com a instalação de mísseis soviéticos na ilha. Tal “linha política” era inaceitável para Washington.

Parcelas da burguesia nacional, assustadas com a emergência popular, impossibilitadas de manterem seus acenos reformistas, saltam para a subordinação aberta ao imperialismo. Os interesses dos grupos dominantes começavam a ser ameaçados por uma crescente mobilização das bases populares.que seguia sem um partido que lhes representasse. O PCB seguia preso à política de aliança de classes.

A radicalização das posições aumentou no final de 1963 e início de 1964. Algumas medidas nacionalistas reformistas provocaram o descontentamento da grande burguesia. O conflito entre as classes se acirrou. Seguem-se as ocupações de empresas estrangeiras e concessionárias de serviços públicos; recrudescem as tentativas de estabelecer o monopólio estatal da importação e do refino de petróleo; exige-se a revisão dos contratos de concessão das jazidas minerais; aprovação da lei que estabelecia um controle mais rigoroso do capital internacional. No campo exige-se a reforma agrária, nas cidades aceleram-se as lutas por aumentos salariais. Ao mesmo tempo começa a radicalizar o quadro de rebeldia nas camadas subalternas das Forças Armadas. A burguesia sente-se ameaçada pelo espectro do comunismo.

Polarizam-se duas concepções: o reformismo, com grande participação do Estado na economia com apoio de diversos setores populares; de outro lado a burguesia associada abertamente ao imperialismo. As classes dominantes, desesperadas e temerosas de que as massas rompessem o cerco do reformismo e da aliança de classes, não vêem outra saída a não ser o golpe, unindo todos os setores reacionários para “salvar o Brasil do perigo do comunismo e da desordem”. Era essencial buscar a unidade no interior das Forças Armadas. Os legalistas rumam para o setor conservador e concordam com a intervenção no governo. Sob o argumento de que o governo Goulart praticava desordem e desvios constitucionais conseguem unificar a Escola Superior de Guerra (ESG), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Estas articulações serão fundamentais para preparar as condições do golpe que foi antecedido pela Marcha com Deus em Defesa da Família e da Propriedade, pela Operação Brother Sam, e pela elaboração do projeto de tutela aos EUA.

Cria-se um aparato militar para enfrentar tentativas de resistências e por meio de uma grande campanha ideológica da burguesia contra o governo Goulart (na verdade contra as massas), aterrorizam a pequena burguesia. Bastava apenas a gota d’água, e ela veio com o discurso de João Goulart na Central do Brasil, em 13 março de 1964, no Rio de Janeiro, anunciando as reformas. Não havendo laços orgânicos entre os trabalhadores e o governo, com a recusa do PCB de levantar as massas, não havendo um partido revolucionário da classe trabalhadora que tivesse autoridade e implantação no movimento operário, realiza-se e impõem-se o golpe, com prisões, fechamento de jornais, tanques nas ruas, proibição de reuniões e organização.

A última cartada da burguesia

Assim, o governo de Goulart se encontrou preso em múltiplas contradições. Primeiro, por ser um governo burguês atípico, com uma importante parcela que não o reconhecia como seu, mas ao contrário, viam-no como uma porta para a entrada do “comunismo”. Em segundo lugar, a necessidade de se apoiar em setores do movimento de massas obrigava-o a avançar, ao menos nos discursos, em direção às reformas, mas, ao mesmo tempo, tinha que combater as “alas mais radicais” desses movimentos. E, por fim, a situação internacional obrigava-o a buscar um equilíbrio difícil entre ter uma política internacional “independente” e não se confrontar com o imperialismo estadunidense.

Essas contradições, com a clara impossibilidade de equilibrar-se, levaram de forma inelutável ao golpe de estado reacionário de 1º de Abril de 1964. As políticas do PCB e PTB, de apoio ao governo até a véspera do golpe, arrastaram a classe trabalhadora junto na derrota de Jango e desarmaram política e ideologicamente esta mesma classe trabalhadora para o enfrentamento com a ditadura militar.

Durante todos os anos seguintes as massas buscam tirar suas lições desse trágico período contra-revolucionário, mas, em especial, da importância de compreender o período que antecedia ao golpe, analisando as posições políticas das principais entidades que representavam a classe trabalhadora naquele período. O vacilo, os erros de avaliação, a cooptação, a subestimação da classe trabalhadora, entre outros elementos, são claramente vistos ao se analisar o contexto pré-golpe. Tais lições e reflexões “caem como uma luva” para o debate na atualidade. Por isso, seus estudos são imprescindíveis.

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