Protesto de moradores da favela da Maré contra a chacina promovida em 2013 por militares da PMERJ, com 9 mortos.

O controle das armas de fogo pela burguesia

As armas de fogo são, sem dúvida, um dos inventos mais incríveis da humanidade, junto à pólvora. Essas invenções possibilitaram que quem se apropriasse delas também estivesse em posse da vida e da morte de outros como nunca antes, criando um instrumento estratégico de força para potencializar a realização de interesses de certos grupos em detrimento de outros. Como vivemos há muito tempo em sociedades em que predominam relações sociais de tipo desiguais, onde determinados grupos transformaram-se em classes e se sobrepuseram-se a outros, o controle das armas é vital para definir a dominação. Para a classe burguesa, em menor número, mas que apesar disso controla os meios de produção, limitar o porte e a posse de armas para os civis em tempos de estabilidade institucional é fundamental. Mas a burguesia não faz isso por princípio ou em defesa da paz. A história mostra que, para eliminar seus opositores ou para recuperar seu domínio, não há escrúpulo algum no armamento de grupos que façam sua defesa.

“Uma classe oprimida que não aspire a aprender a manejar as armas, a possuir armas, tal classe oprimida mereceria apenas ser tratada como são tratados os escravos. Pois não podemos esquecer, sem nos transformarmos em pacifistas burgueses ou oportunistas, que vivemos numa sociedade de classes e que dela não há nem pode haver outra saída que não seja a luta de classes. Em qualquer sociedade de classes, seja ela baseada na escravatura, na servidão ou, como agora, no trabalho assalariado, a classe opressora está armada. Não só o atual exército permanente, mas também a atual milícia, mesmo nas repúblicas burguesas mais democráticas, por exemplo na Suíça, são o armamento da burguesia contra o proletariado. Esta é uma verdade tão elementar que talvez não haja necessidade de nos determos nela em especial. Basta lembrar o emprego de tropas contra os grevistas em todos os países capitalistas.
(…)
Só depois de termos derrubado, vencido e expropriado definitivamente a burguesia no mundo inteiro, e não apenas num só país, é que as guerras se tornarão impossíveis. E, do ponto de vista científico, seria, portanto, completamente incorreto e completamente não-revolucionário se eludíssemos ou dissimulássemos exatamente o que é mais importante: o esmagamento da resistência da burguesia — o mais difícil, o que mais luta exige durante a passagem ao socialismo. Os padres «sociais» e os oportunistas estão sempre prontos a sonhar com o futuro socialismo pacífico, mas aquilo que os distingue dos sociais-democratas revolucionários é exatamente eles não quererem pensar e sonhar com a encarniçada luta de classes e com as guerras de classes para tornar realidade este futuro maravilhoso.” [1]

O controle pela classe dominante da pólvora e das armas de fogo não é só necessário, mas essencial para sua permanência no comando das instituições e do aparelho do Estado, salvaguardando seu controle exclusivo dos meios de produção. Sob o capitalismo há duas classes que estão opostas por seu lugar na produção: por um lado a classe capitalista, que tudo têm e que depende da compra da força de trabalho para ampliar seu capital, e do outro a classe trabalhadora, que tudo produz e que precisa vender sua força de trabalho aos capitalistas por nada possuir de significativo além dela. Essa oposição de base cria crises cada vez maiores no modo de produção, como Marx explica em sua obra “O Capital”, volume I. As crises trazem a iminência da derrocada do domínio político da burguesia quando estão unidas a um outro elemento: a organização armada do proletariado em torno da expropriação e apropriação coletiva dos meios de produção.

Atualmente o Estado é a instituição que exerce o controle sobre as armas de fogo no Brasil por estar sob o controle dos capitalistas através de seus representantes. A burguesia prefere controlar as armas por vias legais justamente para manter a máscara que atribui neutralidade e poder pacificador do Estado, como se ele estivesse acima da luta de classes e fora dela, no papel de um árbitro honesto – ou que precisaria ser. Convencer a pequena burguesia e o proletariado da insuperabilidade do Estado burguês é fundamental para o domínio da burguesia. Outro personagem que precisa ser convencido disso é a vanguarda organizada do proletariado, que sofre pressões constantes de adaptação ao pacifismo.

“Para o Sr. Dühring, a violência é a maldade absoluta. O primeiro ato de força é, em sua Bíblia, o pecado original, reduzindo-se todo o seu arrazoado a um sermão jeremíaco sobre o contágio do pecado original em todos os fatos históricos, e sobre a infame deturpação de todas as leis naturais e sociais por esse poder satânico, que é a força. Sabemos nós que a violência desempenha também, na história, um papel muito diferente, um papel revolucionário; sabemos que ela é, também, para usar uma expressão de Marx, a parteira de toda a sociedade antiga, que traz em suas entranhas uma outra nova: que é ela um instrumento por meio do qual se faz efetiva a dinâmica social, fazendo saltar aos pedaços as formas políticas fossilizadas e mortas. Mas, a respeito de tal aspecto, nada nos diz o Sr. Dühring. Reconhece unicamente, entre suspiros e gemidos, que, para derrubar o regime de exploração, não há outro remédio senão usar a violência: desgraçadamente, acrescenta, pois o emprego da violência desmoraliza sempre a quem a utiliza. E diz-nos essas palavras, esquecendo-se do elevado impulso moral e espiritual que emana de toda revolução triunfante! E diz-nos tal coisa aqui, na Alemanha, onde um choque violento – que se pode impor em caso necessário, ao povo (quem o duvida?) – teria ao menos a vantagem de varrer da consciência nacional essa espécie de submissão servil que dela se apoderou desde a humilhação da guerra dos Trinta Anos! E será esse pregador desconexo, sem seiva e sem força, quem pretenderá impor sua doutrina ao partido mais revolucionário que a história conhece? “[2]

O desarmamento civil traz no Brasil, por um lado, a estabilidade para o prosseguimento de um tipo de paz social que favorece a compra de força do trabalho pelos grandes capitalistas, e, por outro, o sentimento de impotência para a auto-organização nos partidos e organizações da classe trabalhadores. Em suma, o desarmamento civil atinge em cheio a vanguarda organizada do proletariado que controla os partidos de classe e os sindicatos. Não se vendo capaz de tomar os meios de produção por sua impotência frente às forças oficiais, a vanguarda é pressionada para se transformar em democrata-republicana, ou de centro-esquerda, defensora dos direitos civis e humanos, sempre na perspectiva das instituições e meandros do Estado burguês e em diálogo com o capital, fazendo os burgueses não se sentirem ameaçados.

Quando as massas da classe trabalhadora veem uma vanguarda submissa à classe que a explora, não se sentem confiantes para entregar a estes suas vidas e esperanças. Quando essa vanguarda cede à pressão para enquadrar suas reivindicações às instituições burguesas, mesmo com boas intenções, por não querer ser marginalizada ou criminalizada, ela adia para um horizonte borrado e “mais favorável” da conjuntura a tomada do poder político, que nunca chegará de maneira pacífica. Não será pacífico pois coloca em questão a tomada dos meios de produção. Mas repetimos: essa estabilidade que a burguesia busca, e que parte da vanguarda diz poder agir só através dela, é a estabilidade necessária para a dominação do proletariado, para a manutenção da ordem burguesa. Precisamos reconhecer, como diz Engels contra Düring, o impulso moral e espiritual que emana de toda revolução triunfante, e que uma revolução violenta não significa uma revolução sangrenta nem barbárie. Nada se compara ao sangue que jorra diariamente nas favelas, e “(…) nós devemos dizer: a sociedade capitalista foi e é sempre um horror sem fim.”[1]

Abaixo o relato de Trotsky sobre a tomada do Palácio de Inverno em 26 de outubro de 1917. Antonov era oficial do Comitê Militar Revolucionário e os ministros do governo provisório estavam sob sua guarda. Sua ação mostra que a utilização de meios militares pelo proletariado organizado não significa a aniquilação física dos opositores nem o caos social.

“Antonov chamou vinte e cinco homens armados, eleitos pelos primeiros destacamentos que tinham invadido o palácio, e encarrega-os de guardar os ministros. Os detidos, após o estabelecimento de um relatório, foram conduzidos para fora do palácio, para a praça. Na multidão que conta as vítimas, mortos ou feridos, rebenta uma verdadeira raiva contra os vencidos. “Fuzilem-os! Morte!” Certos soldados tentam bater nos ministros. Os guardas vermelhos dissuadem esses homens enraivecidos: não manchem a vitória proletária! Os operários armados cercam estreitamente os prisioneiros e a sua escolta. “Em frente, marcha!” [3]

As armas transformam-se em instrumento de barbárie não em uma revolução socialista, mas quando elas estão onde a burguesia julga ser necessário estarem. Traremos o exemplo do caso brasileiro: ou as armas estão nas mãos das instituições policiais e militares, ou nas mãos de varejistas das drogas nas favelas. Essa guerra artificial, com claro patrocínio do Estado por via de seus agentes que ajudam na chegada das armas nas grandes cidades, é alimentada e existe porque contribui com o sentimento da necessidade de um “Estado neutro”. Junto com os lucros da guerra para ambos os lados, mas onde apenas um fica marcado publicamente como vilão, nasce o controle militar nos territórios mais pobres das cidades, criando assim uma espécie de estado de exceção para a classe operária, para o proletariado pobre e para os estratos baixos da pequena burguesia. No campo acontece algo similar. Os fazendeiros ricos usam da própria polícia e de milícias organizadas para reprimir por meio das armas o movimento social organizado desarmado, taxando os ativistas de invasores e criminosos, mesmo quando ocupam territórios grilados e o latifúndio improdutivo, mesmo quando agem em consonância com a Constituição Federal.

[1] – V. Lenin. O Programa Militar da Revolução Proletária. <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/09/programa.htm>. Acessado em 23 de março de 2018.

[2] – Friedrich Engels. Anti-Düring. <https://www.marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/cap18.htm>. Acessado em 23 de março de 2018.

[3] Leon Trotsky. História da Revolução Russa. <https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap45.htm>. Acessado em 23 de março de 2018.