O capitalismo na produção do sofrimento psíquico

Reflexões sobre a influência e os interesses do capitalismo no sofrimento psíquico de um número cada vez maior de seres humanos ao redor do mundo.

“Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência.”

A afirmativa de Marx de que são as condições materiais que determinam a consciência tem sido muito pouco considerada na análise do sofrimento psíquico. Muito embora Marx não fosse um cientista do comportamento humano, mas sim um combatente da luta de classes, como disse Mehring na biografia de Marx “Nenhum homem fez tanto quanto Karl Marx para destruir pela raiz as causas dos “sofrimentos da humanidade”. “

Os estudos sobre o ser humano, incluindo-se a Psicologia, têm sido desenvolvidos sob diferentes perspectivas. Dentre as diferentes abordagens psicológicas, é possível constatar a hegemonia de uma visão organicista com base nos pressupostos da genética e das neurociências. Tal abordagem tem simplificado e naturalizado o sofrimento psíquico, como também, patologizado comportamentos, os quais não consegue compreender.

Uma das questões mais emblemáticas desta naturalização e patologização do comportamento humano, é o caso do chamado TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. O diagnóstico desse possível transtorno tem sido realizado por meio de critérios clínicos, não havendo métodos de avaliação que atestem a existência de uma anormalidade orgânica.

Chama a atenção o fato do transtorno ter modificado suas características. No princípio compreendia-se que este seria algo transitório, relativo ao período da infância, com restritas possibilidades de avançar até a adolescência. Os critérios diagnósticos foram ampliados e a medicação começou a ser prescrita para adultos. Atualmente o TDAH é considerado como um transtorno que pode perdurar a vida toda.

A droga mais conhecida no tratamento do suposto transtorno é a Ritalina. O estimulante é comercializado desde os anos 1950 nos EUA, Suíça e Alemanha. No início, não havia um diagnóstico específico para seu uso. O psicofármaco era indicado para tratar a fadiga presente em vários quadros psiquiátricos, como também para tratar o cansaço em idosos. Nessa época, o uso de tranquilizantes menores também começava a ser recomendado para o tratamento de crianças com vários tipos de problemas de comportamento (Singh, 2007; Dupanloup, 2004).

De acordo com a ONU (2008), entre os anos de 1990 e 2006 a produção da droga em escala mundial cresceu mais de 1200%. No Brasil, no ano 2000, o consumo nacional foi de 23 Kg, contudo, apenas 6 anos depois, fabricava-se 226 Kg e ainda eram importados outros 91 Kg. É ainda mais assustador quando se compara a produção da Ritalina com a somatória de todos os outros psicoestimulantes. Enquanto todos os outros psicoestimulantes juntos chegam a uma produção mundial de 34 toneladas, a produção de Ritalina (Somente a Ritalina!) chegou a 38 toneladas (ONU, 2008).

Tendo em vista que a droga é utilizada majoritariamente no tratamento do TDAH, questiona-se o motivo pelo qual este transtorno tem sido recorrentemente encontrado, principalmente em crianças em idade escolar. Para se ter uma ideia, estudos nacionais e internacionais, os quais fazem uso dos critérios do DSM IV  indicam uma prevalência de 3 a 6% do transtorno em crianças que estão em idade escolar (FARAONE et al, 2001). A pediatra da Unicamp Maria Aparecida Moyses faz duras críticas quanto a alta prevalência do transtorno. Explica que percentuais acima de 5% devem ser compreendidos como um produto social, e não uma doença de cunho biológico, o que seria supostamente o TDAH. Em Medicina, no que se refere a doenças desse tipo fala-se em 1 para 100 mil ou em 1 para 1 milhão. Assumir que de 3 a 6% das crianças possuem este transtorno, seria admitir a epidemia de uma doença mental!

Acrescenta-se que alguns estudos apontam “possibilidades” de alterações cerebrais. Mas aí cabe colocar que o cérebro se molda não somente por fatores genéticos, mas também tem a capacidade de se modificar a partir das experiências do indivíduo. Torna-se ainda mais problemático levar em conta tais “possibilidades” de alterações cerebrais, quando são os próprios donos das indústrias farmacêuticas os financiadores das pesquisas ditas “científicas”.

O fato é que a medicação para o tratamento do “transtorno” tem sido produzida em larga escala. Toneladas e mais toneladas desta anfetamina vem sendo comercializada e despejada no organismo de indivíduos que estão em fase de desenvolvimento. Assume-se o medicamento como tratamento exclusivo e muito pouco se pergunta a respeito das condições que vem sendo o pano de fundo do suposto transtorno.

Além da medicalização dos estudantes, há que se ressaltar o adoecimento dos professores. Para se ter uma ideia, cerca de 22,6% dos professores pedem afastamento por licenças médicas decorrentes de estresse, distúrbios vocais e esgotamento físico e mental. Uma pesquisa realizada pela psicóloga Nádia Maria Beserra Leite, da Universidade de Brasília (UNB), com mais de oito mil professores da educação básica da rede pública na região Centro-Oeste do Brasil, revelou que 15,7% dos entrevistados apresentam a síndrome de Burnout, que reflete intenso sofrimento causado por estresse laboral crônico.

As indústrias farmacêuticas lucram. As escolas são destruídas. Condições cada vez mais precárias no ensino público levam as crianças a criarem uma ojeriza cada vez maior do espaço escolar. Professores são tratados como lixo pelo governo, recebem salários miseráveis, são colocados em rotinas exaustivas e não lhes é dada a mínima perspectiva de melhores condições de trabalho.

É completamente questionável esta leitura “biologizante” que vem sendo colocada quando estamos frente a alunos que não aprendem. Colocar a pecha de TDAH é um reducionismo que só traz benefícios aos donos das indústrias farmacêuticas. A Economia é de fato o motor da história, mais especificamente, a luta de classes é a mola propulsora do desenvolvimento social. Enquanto os jovens e crianças da classe trabalhadora, os professores e outros trabalhadores da educação padecem sob condições cada vez mais precárias, a indústria farmacêutica financiada pela burguesia produz “soluções” de classe. Individualiza o problema, transforma comportamentos em patologia e reduz a vida material a um funcionamento cerebral alterado. 

Questões políticas, econômicas e sociais, as quais repercutem diretamente na saúde física e mental das pessoas. Questões ligadas diretamente ao sistema social vigente. Sistema social no qual estão imersos os indivíduos, e também diferentes instituições, como a escola por exemplo. Este sistema é o capitalismo, sistema que prioriza o enriquecimento de uma minoria às custas da exploração e a crescente degradação das condições de vida de uma maioria. Este sistema propaga a mentira, esconde a realidade, promove a miséria e o adoecimento. Pela promoção da saúde, por melhores condições de vida e em prol do desenvolvimento humano é emergente a derrubada deste sistema!

 

SINGH, I. Not just naughty: 50 years of stimulant drug advertising. In: TONE, A.; WATKINS, E. (Orgs.). Medicating modern America: prescription drugs in history. New York: New York University Press, 2007. p.131-55.

DUPANLOUP, A. L’Hyperactivité infantile: analyse sociologique d’une controverse socio-médicale. 2004. Tese (Doutorado) – Université de Neuchâtel, Neuchâtel. 2004.

ONU. International Narcotics Control Board. Psychotropic substances: statistics for 2006: assessments of annual medical and scientific requirement. 2008. Disponível em: < https://www.incb.org/incb/en/psychotropic-substances/technical_reports/technical_reports-index.html >.

Faraone SV, Sergeant J, Gillberg C, Biederman J. The worldwide prevalence of ADHD: is it an American condition? World Psychiatry. 2003;2:104-13.

A ritalina e os riscos deum ‘genocídio do futuro’: http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro

Problemas de saúde afastam professores da escola: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/conteudoJornal.html?idConteudo=19

Burnout: síndrome afeta mais de 15% dos docentes: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/conteudoJornal.html?idConteudo=38