Foto: Fernando Frazão/ABr

Marielle Franco: Um rito fúnebre

I

GUARDA
Então vou falar! O morto… alguém há pouco
o sepultou e foi-se embora; apenas pôs
alguma terra seca recobrindo as carnes
e praticou deveres outros de piedade
CREONTE
Que dizes? Quem? Que homem se atreveu a tanto?
(Antígona de Sófocles, versos 281 a 285)

Antígona não se dobrou a Creonte, mesmo sabendo que com isso arriscava sua vida. Não importava a ela se o Estado e o desejo de poder transformaram seus dois irmãos em inimigos, tombados no chão pelas mãos gêmeas numa luta mortal. Como ela poderia deixar seu irmão Polinices sem os devidos rituais fúnebres, tal como decretara Creonte? Deixar seu corpo ser devorado por aves carniceiras e ser desmoralizado na eternidade?

Os gêmeos herdeiros do Rei Édipo haviam acordado de alternarem-se no trono; no entanto, após o primeiro ano no comando, Etéocles não cumpriu o combinado de ceder o poder a Polinices. A peça de Sófocles acontece na idade heroica da Grécia, que precede a criação de sua democracia no século 6 antes da Era Comum. Nesse período o ideal de guerreiro impunha a violência como principal via para resolução de conflitos.

Creonte não suportava o fato de Polinices ter fugido para Argos, uma cidade rival de Tebas, ter se casado com a filha do Rei e ainda ter conseguido forte apoio de seu exército para derrubar o ilegítimo governo de Etéocles. Isso motivou o decreto que proibia o sepultamento do corpo traidor.

Na cena inicial de Antígona, a irmã da heroína lamenta a desgraça que recai sobre sua família, a repetição da hamartía, ou seja, do erro trágico que determina o destino dos heróis, os submete e esmaga.

ISMENE
[…] nossos irmãos
num mesmo dia entremataram-se (coitados!),
fraternas mãos em ato de extinção recíproca”
(Antígona de Sófocles, versos 62-64)
E ao saber dos planos da irmã, de desobedecer o decreto de Creonte e ir contra o Estado, Ismene adverte:
ISMENE
Ferve o teu coração pelo que faz gelar
ANTÍGONA
Mas dou satisfação àqueles que, bem sei,
tenho dever de, mais do que todos guardar.
ISMENE
Se houvesse meios… Mas desejas o impossível.
ANTÍGONA
Quando sentir faltar-me a força, pararei.
ISMENE
Mas o impossível não deves nem tentar.
(Antígona, versos 98 a 103)

II

“Mas o impossível não deves nem tentar”, esse é o recado dado a nós milenarmente, por nossas irmãs e irmãos, maridos, esposas, amigos e amigas, mães, pais, tiranos, capitalistas. À época da tragédia grega, antes mesmo de Aristóteles chegar em Atenas, havia uma importante discussão sobre a construção dos novos valores construídos a partir da queda da aristocracia e da ideologia do Rei Justiceiro, cujo auge foi no século 12 antes da Era Comum.

A tradição do Rei Justiceiro foi construída pelos poetas, funcionários do Estado treinados desde a infância com técnicas mnemônicas para cantar versos cuja função era justificar a atual organização injusta da sociedade a partir da graça ou desgraça divinas. É claro que isso só era possível pelo apoio bélico da classe dos guerreiros que os poetas representavam.

Portanto, a poesia no período heroico da Grécia, tempo em que vivem os personagens de Antígona, tinha um valor muito próximo ao que hoje em dia tem a indústria da (des)informação em nível planetário, sobretudo ao considerarmos a propriedade dos meios de produção. A diferença central é que no caso grego quem pagava o almoço era a aristocracia guerreira e no nosso caso é a classe burguesa, que além de tudo usa todo avanço tecnológico contra a própria humanidade. A voz do poeta arcaico seria hoje os efeitos especiais e todo avanço técnico e científico empregado para produzir e reproduzir uma única verdade: que não há vida fora do capital.

Apenas no século 8 a. E. C. os gregos descobriram o alfabeto sírio-fenício. Isso quer dizer que o auge da dominação da aristocracia guerreira, assim como o valor de verdade (a-létheia) da palavra do poeta estão condicionados ao fato de que a tradição da Grécia Arcaica era essencialmente oral, por isso, a palavra do poeta era considerada como parte da própria natureza (physys).

Ao invocar a deusa da Memória, Mnemosýne, o poeta arcaico retirava do rio do Esquecimento, Léthe, os acontecimentos e as pessoas dignas de serem lembrados segundo uma estratégia de apagamento e compensação da desigualdade entre os homens e mulheres.

Os concursos trágicos, surgidos no século 6 a. E. C., se inseriram na vida pública de Atenas como verdadeiras instituições de debate sobre as formas jurídicas em plena elaboração da democracia, que não podemos deixar de ver o quanto era muito limitada, pois excluía da vida política todos aqueles que não eram considerados cidadãos: mulheres, escravos e estrangeiros.

Portanto, tanto no tempo na peça (antes do século 8 a. E. C.) quanto no tempo de sua primeira encenação (por volta do ano 441 a. E. C.), a força de uma mulher que se revolta contra a ordem vigente é muito grande, uma grandeza que o tirano Creonte sequer podia supor, como vimos quando ele interroga o guarda: “Que homem se atreveu a tanto?”.

III

Não foi um homem, foi uma mulher, Seu Estúpido!

Uma mulher negra assassinada para nos dizer: “Isso é impossível!”.

As grandes corporações midiáticas, em especial a Rede Globo, poetas brasileiros do império, ao mesmo tempo que criam as condições para a morte de Marielle, usam seu papel representativo para fomentar o medo e o desespero em toda a classe trabalhadora.

Criam uma novela empobrecida em nossos noticiários: de um lado os tiras maus contra os tiras bons, os homens de família contra os defensores de bandidos, de outro, os homens contra as mulheres, os negros contra os brancos, e nosso papel enquanto marxistas é demonstrar, munidos do materialismo dialético, que essas falsas oposições só servem para desorganizar a classe trabalhadora em sua luta pela emancipação.

O que os malditos capitalistas não sabem é que já vivemos no impossível.

Impossível é não sepultar o corpo e lhe prestar os devidos rituais fúnebres, honrando sua memória com o fortalecimento da luta por aqueles a quem “devemos guardar”, como diria Antígona, que sabia que seu irmão amaldiçoado estava do lado da verdadeira Justiça.

Não há melhor honra a se prestar aos que morreram por lutar por uma sociedade mais justa que não o fortalecimento das organizações de trabalhadores com vistas a construir uma política independente, contra os ataques e pressões do capitalismo, que incidem na nossa carne hoje pelas mãos dos governos Temer e Pezão, pelo parlamento e pelos braços militar e paramilitar do Estado brasileiro.

A morte de Marielle, ao contrário do que possa parecer, é o sinal de que a política da representatividade na melhor das hipóteses deixa os representantes isolados e vulneráveis, como poetas que devido à dissonância fossem eliminados no meio de seu canto. Ela é também um sinal de que não há democracia dentro do capitalismo, de que vivemos sob o império da mercadoria.

O mesmo aconteceu com o ex-presidente Lula e sua esposa. Não é à toa que a operação que o condenou se chamou ALÉTHEIA. É para mostrar que mesmo um ex-presidente pode ser submetido a um judiciário fora da lei, como amplamente ocorre com os trabalhadores e filhos de trabalhadores, sobretudo os negros pobres de periferia, lançados a “verdadeiras masmorras” que, por si só, como disse o ex-chefe do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Levandowiski, acrescentam uma pena maior do que a do futuro veredito. No caso de Marielle foi a pena de morte.

Não há dúvidas de que discordaríamos em muitos pontos, Marielle, mas o debate político não se faz com eliminação da diferença! Nós dois sabemos disso, e lutamos com distintas estratégias para assegurar esse direito inalienável de cada homem e de cada mulher.

O tempo nos falta, como o ar para terminar as frases contraditórias que iniciamos na luta histórica pela emancipação da humanidade. No entanto, vamos prosseguir até que nos falte a força, como dizia Antígona, e mesmo além dela, como você e tantos outros que dedicaram e perderam suas vidas pela igualdade e pelo socialismo.

Até a vitória sempre!