Historia regulamentada?

“Farinha pouca, meu pirão primeiro”: a lógica anti-classista na Regulamentação da Profissão do Historiador.

No último mês fomos surpreendidos com a aprovação do Projeto de Lei do Senado que regulamenta a profissão de Historiador. De autoria do Senador Paulo Paim, o projeto foi aprovado na Comissão de Assuntos Sociais de forma terminativa, ou seja, ele não precisou passar pelo plenário da Casa. Agora o projeto segue para a Câmara Federal para a apreciação dos deputados.

Mas o que significa regulamentar a profissão de Historiador?

A regulamentação de uma profissão é só a criação de um estatuto jurídico que permite fixar os requisitos para o exercício da mesma. No caso da História, o requisito central é a formação universitária, o diploma de historiador(1). Desta forma, a defesa da regulamentação da profissão se pauta no combate aos leigos, ou seja, os não-formados em História (embora possam ter outra formação, como sociólogos, geógrafos, filósofos, etc…). Este debate esteve em voga recentemente quanto a necessidade ou não da diplomação em jornalismo, para exercício do mesmo.

Mas o que está em jogo?

Os defensores da Regulamentação afirmam que ela seria uma forma de garantir espaço no mercado de trabalho para os formados na área. Vejamos:

“[…] a regulamentação da profissão de historiador poderia abrir novos espaços ou talvez, sendo mais exata, tal arcabouço jurídico venha sendo requerido para que se garanta a presença desse profissional em atuações que vêm sendo geradas e também são geradoras por/de novos espaços que poderiam ser um ponto de mudança em nossa profissão. É notório como o conhecimento histórico tem ocupado espaços na publicidade, nas produções televisivas, cinematográficas, jornalísticas, como empresas privadas e públicas têm se preocupado com organizações de memoriais etc.”(2)

A citação acima, de uma historiadora e defensora da regulamentação, é clara quanto a defesa de um marco regulatório para o preenchimento de vagas no mercado de trabalho para os historiadores. Tal argumentação se pauta em uma lógica perversa: a de que o exercício do ofício de historiador é exclusividade do diplomado em História. A lógica é perversa porque parte de um pressuposto corporativista, no mais puro sentido medieval do termo(3). A saída apontada pelos defensores da regulamentação é opor trabalhador contra trabalhador na busca por postos de trabalho, já escassos e com uma perspectiva bem limitada de ampliação.

De fato, devemos nos preocupar com o campo de trabalho para o contingente de historiadores que ano a ano saem das universidades. Porém, não podemos, nem de longe, culpar os ditos “leigos” pela falta de oportunidades de emprego.

No movimento para gerenciar suas crises – próprias de seu metabolismo – o capitalismo apresenta diversas conseqüências drásticas para a classe trabalhadora, entre elas a formação do chamado exército industrial de reserva(4) e o processo de precarização generalizada do trabalho. A regulamentação profissional não resolve estas questões. Mesmo que confiemos nas visões apologéticas dos defensores da regulamentação de que esta abriria novos campos de trabalho, nada nos garante que estes espaços não sejam precarizados.

É inevitável: nosso maior campo de trabalho ainda é o magistério. A docência continua absorvendo a imensa maioria dos graduandos e pós-graduandos em História. E esta área não precisa de regulamentação. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com a exigência de licenciatura plena, já cumpre esse papel. As outras áreas de atuação são espaços supostamente “emergentes”. As poucas oportunidades de emprego que existem na área de pesquia e patrimônio, quando não no serviço público, são quadros temporários e de baixa remuneração. A regulamentação não evita a precarização do trabalho. Repetimos, a regulamentação apenas delimita quem pode e quem não pode trabalhar em determinada função.

Nossa luta deve ser em defesa da regulamentação do trabalho(5), pela diminuição da carga horária e contra a retirada de direitos. Regulamentar uma profissão nada mais faz do que fragmentar a luta geral da classe trabalhadora. Esse desentendimento entre trabalhadores só traz benefícios à burguesia, e nós alertamos que somente o entendimento e a organização dos trabalhadores, historiadores ou não, trará condições para que se reverta esse quadro de total exploração.

Desta forma, nos posicionamos de forma contrária à regulamentação da profissão de Historiador. O fazemos porque nossas posições estão intrinsecamente ligadas ao projeto histórico da classe trabalhadora, em defesa de sua emancipação e da luta por, finalmente, alcançar uma sociedade socialista, uma sociedade em que a exploração e a injustiça tornar-se-ão coisas do passado bárbaro e capitalista.

Notas:

1: “Art. 3º O exercício da profissão de Historiador, em todo o território nacional, é privativa dos: I – portadores de diploma de curso superior em História, expedido por instituições regulares de ensino; II – portadores de diploma de curso superior em História, expedido por instituições estrangeiras e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação; III – portadores de diploma de mestrado, ou doutorado, em História, expedido por instituições regulares de ensino superior, ou por instituições estrangeiras e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação.” Brasil, Projeto de Lei do Senado, n° 368, de 2009, Regula o exercício da profissão de Historiador e dá outras providências. Brasília, Senado Federal, 2009.

2: OLIVEIRA, M. M. D. de. Licenciado em História, Bacharel em História, Historiador: desafios e perspectivas em torno de um profissional. Disponível em: http://www.anpuh.uepg.br/historia-hoje/vol1n4/licenciado.html

3: Na idade média as chamadas “corporações de ofício” eram associações tipicamente urbanas, integradas por grupos de artesãos que se dedicavam a um mesmo tipo de atividade produtiva. O trabalho artesanal assim regulamentado eliminava quase que por completo a concorrência e a competição econômica entre aqueles que desempenhavam uma mesma atividade produtiva (ofício). A terminologia ao longo da história foi mudando de significado, mas mantém um mesmo cerne: uma forma associativa que tem por objetivo assegurar privilégios e proteção para seus membros.

4: “Toda forma de movimento da indústria moderna nasce, portanto, da transformação constante de uma parte da população trabalhadora em desempregados ou parcialmente empregados.” (MARX, Karl. O Capital, capítulo XXIII, Livro I, Vol 2). Para Marx, o exército industrial de reserva, suas formas de existência e sua importância no sistema capitalista, é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista. Os métodos de produção da mais valia são os métodos da acumulação, e todo aumento da acumulação torna-se meio de desenvolver aqueles métodos.

5: A regulamentação do trabalho consiste em uma estratégia de defesa dos interesses imediatos dos trabalhadores e trabalhadoras que passa pela reivindicação da formalidade do trabalho e conquistas nesse campo, ou seja, carteira assinada, salário, férias, décimo terceiro, licença maternidade, entre outros.

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