Grã-Bretanha por um fio

Na Grã-Bretanha, acabamos de experimentar uma ruptura fundamental na situação. Ocorreu um oceano de mudanças políticas, sociais e econômicas. A Grã-Bretanha é agora um dos países mais instáveis da Europa. Na sequência da profunda recessão de 2008, a classe trabalhadora enfrentou uma realidade nova e brutal de austeridade e de queda dos padrões de vida. Isso produziu uma reação anticapitalista e anti-establishment entre amplas camadas da população, particularmente a juventude. E está forçando muitas pessoas a tirar conclusões radicais e até revolucionárias.

É isso precisamente o que Trotsky quis dizer quando se referiu ao processo molecular da revolução socialista. Um acúmulo lento e gradual de descontentamento se desenvolve sob a superfície, despercebido pelos observadores superficiais, até alcançar o ponto crítico onde a quantidade se transforma em qualidade com consequências explosivas. Agora, o movimento no rumo da revolução está se refletindo no plano político.

A classe dominante britânica, que governou a Grã-Bretanha durante os últimos 200 anos, também está dominada por uma sensação de desespero e desânimo, enquanto as coisas vão de mal a pior. Nos anos 1930, Trotsky se referia à classe dominante “escorregando para a catástrofe”, uma adequada expressão. Ele acrescentou: “A economia, o estado, a política da burguesia e suas relações internacionais estão completamente arruinados por uma crise social característica de uma situação pré-revolucionária da sociedade” (O Programa de Transição).

Em muitos aspectos, estamos hoje diante de uma situação similar. De fato, os eventos na Grã-Bretanha têm uma semelhança impressionante com a situação que existia em 1931, que Trotsky descreveu como uma situação pré-revolucionária. Apesar de todo o poder em suas mãos, o establishment capitalista aparentemente perdeu o controle da situação. Certamente, perderam o controle sobre o Partido Trabalhista, que, no passado, consideravam como uma escora útil ao sistema capitalista.

As oscilações do pêndulo

Pasmados, os estrategistas do capital são forçados a reavaliar o que está acontecendo. Segundo The Economist, um porta-voz da direita: “Durante os últimos 40 anos, a Grã-Bretanha foi dominada pelo neoliberalismo, um credo que buscava adaptar alguns dos princípios do liberalismo clássico do século XIX a um mundo em que o papel do estado havia se tornado muito maior. Enfatizava as virtudes de se fazer retroceder essa situação através da privatização, da desregulação e da redução de impostos, particularmente para os ricos; de abraçar a globalização, particularmente a globalização das finanças; de controlar a inflação e equilibrar os orçamentos; e de permitir que a destruição criativa reinasse plenamente”.

Tão arraigadas se tornaram essas ideias que, nas palavras de Stewart Wood, um ex-conselheiro de Gordon Brown: “Uma das grandes realizações de Margaret Thatcher foi a de transformar uma fé fundamentalista nos mercados livres no selo de qualidade do centrismo moderado para a próxima geração de líderes”.

The Economist prossegue explicando que o pêndulo agora oscilou noutra direção, “fundamentado nos fracassos do neoliberalismo”. E continua:

“O maior fator foi a crise financeira global de 2008. Ela golpeou de forma particularmente dura a Grã-Bretanha porque os serviços financeiros desempenham um papel enorme na economia do país, gerando 8% de seu PIB, e por causa de sua ‘leve’ regulação. A crise fez com que os britânicos ficassem significativamente mais pobres: os trabalhadores britânicos viram seus salários (ajustados pela inflação) caírem 10% entre 2008-2014, e é improvável que alcancem os níveis anteriores à crise até pelo menos 2020. Isso causou estragos nas finanças públicas: diante dos grandes déficits, a coalizão de governo escolheu reduzir os gastos públicos….

“A crise também abalou a fé do público em seus governantes…. Muitos políticos britânicos também se saíram muito bem, e não somente com suas despesas. Políticos como Mr. Blair, Peter Mandelson e Mr. Osborne ganharam milhões oferecendo consultoria a bancos, fazendo discursos e transformando-se de guardas-florestais em caçadores furtivos….

“Mas a crise financeira não consolidou apenas a desconfiança e a raiva. Também levantou problemas de longo prazo na economia….

“Esta divisão se tornou mais nefasta pelo fato de que a elite tinha se dado muito bem nos anos neoliberais. Em 1980, o CEO [Diretor Executivo] médio de uma empresa cadastrada no índice FTSE All Share ganhava 25 vezes mais do que um empregado médio. Em 2016, os chefes ganhavam 130 vezes mais. Entre 2000 e 2008, o índice caiu 30%, mas o pagamento aos CEOs que administram as empresas do índice aumentou 80%.

“A privatização também produziu ressentimentos. A promessa do Partido Trabalhista de renacionalizar as ferrovias, que seria impensável há dez anos, hoje é popular: graças às tarifas elevadas e ao lucro privado. As partes do setor público que permaneceram estatizadas também fizeram um bem enorme aos seus administradores. Mark Thompson, então diretor-geral da BBC, viu o seu contracheque subir de 609 mil libras em 2005-06, a 788 mil libras em 2007, e a 834 mil libras no ano seguinte. O salário médio de um vice-chanceler da universidade é agora de mais de 250 mil libras….

“E, por todo um tempo, a Brexit vai estar prejudicando a economia. Inclusive defensores da Brexit admitem que a Grã-Bretanha vai sofrer choques no curto prazo, enquanto renegocia suas relações com seu maior mercado único. A maioria dos especialistas independentes também prevê danos no longo prazo….

“O resultado provavelmente será uma reprise parcial dos anos 1970. A política estará paralisada – desta vez, renegociando a Brexit em vez das lutas com os sindicatos. A economia vai estagnar graças a uma mistura de incerteza e flutuações de negócios. Os serviços públicos serão espremidos. O descontentamento que produziu a Brexit vai encontrar novos alvos. Na década de 1970, contudo, a Grã-Bretanha bordejou arduamente o seu caminho para resolver os problemas de sua bobagem anterior. É muito mais difícil vê-la fazendo o mesmo desta vez.” (The Economist, 17 de junho de 2017).

Ponto de inflexão

Mas não há solução para esta crise em curso. O sistema capitalista encontra-se em uma crise orgânica, o que significa que alcançou os seus limites como sistema socioeconômico. É um sistema em declínio terminal. No entanto, isso não significa que simplesmente entrará em colapso. Precisará ser derrubado. Esse pessimismo quanto ao futuro do capitalismo é também compartilhado por Wolfgang Munchau no Financial Times, o órgão do capital financeiro, que fala de um “ponto de inflexão histórico”.

“A vitória do capitalismo sobre o comunismo foi o acontecimento mais formativo para muitos comentaristas e analistas de hoje, como eu. Nossa geração aceitou plenamente os paradigmas do capitalismo financeiro global, embora possamos ter tido uma visão cética sobre a euforia do fim da história dos anos 1990. Celebramos o advento do pragmatismo de centro-esquerda e uma nova geração de líderes de centro-esquerda.

“Nossa falha foi confundir o que era politicamente prático com a universalidade verdadeira. A crise financeira transformou o que exteriormente parecia um ambiente político e financeiro estável no que os matemáticos e físicos chamariam de um sistema ‘dinâmico’. A principal característica de tais sistemas é a incerteza radical. Tais sistemas não são necessariamente caóticos – embora alguns o possam ser – mas são certamente imprevisíveis….

“A incerteza radical é um enorme desafio, porque é impossível ter certeza de algo. Em particular, não se pode mais ter certeza de que se pode extrapolar as tendências do passado no futuro. As pesquisas de opinião estão se tornando menos relevantes (mesmo que sejam capazes de produzir uma fotografia correta da opinião a qualquer momento). Mesmo ferramentas ultramodernas como a análise de redes sociais não podem penetrar em um futuro desconhecido. A utilidade dessas ferramentas está limitada a explicar o que deu errado no passado.

“Em um mundo de incerteza radical, as apostas se tornam mais difíceis porque a informação em que se baseiam é menos confiável. Isso é naturalmente verdadeiro para os investidores, mas também o é para os políticos. Não é de admirar que os grandes jogos políticos de nosso tempo, como os recentes referendos no Reino Unido e na Itália, tenham fracassado….

“Uma vez que aceitemos que nosso mundo globalizado tem características de um sistema dinâmico, muitos de nossos pressupostos cairão como pedras de dominó, e também os partidos políticos que a eles se aferram” (FT, 19/6/17).

Seu velho modelo claramente se quebrou. O capitalismo é sem dúvida um sistema dinâmico e caótico, onde crises periódicas de superprodução são endêmicas. Marx explicou isto há mais de 150 anos. Os estrategistas do capital, no entanto, estão cegos para o fato de que seu sistema se encontra em um completo impasse, que está causando esta profunda instabilidade em todos os níveis.

É esta a razão das novas convulsões na sociedade britânica. O referendo escocês, que teve conotações revolucionárias; o choque da eleição de Jeremy Corbyn como líder do Partido Trabalhista; a eleição geral de 2015, quando o Trabalhismo foi aniquilado na Escócia; o resultado da Brexit; e agora os resultados inesperados da eleição geral de 2017: tudo isto é um reflexo desse sistema assolado pela crise.

O assassinato da Torre Grenfell

Em cima disso vem a tragédia da Torre Grenfell na zona Oeste de Londres, onde possivelmente 100 pessoas perderam suas vidas. Este acontecimento horroroso produziu ondas de choque através da sociedade. Pessoas comuns tomaram as ruas e confrontaram todos os poderes que encontraram pela frente, particularmente a primeiro-ministro, Theresa May, que foi perseguida e vaiada por multidões de residentes irados.

Os ricos e seus governos desprezam a classe trabalhadora, que vem sendo tratada como refugo pelas autoridades, funcionários e câmaras de vereadores igualmente. “Não temos nenhuma voz”, todos repetem. Mas as pessoas já estão dizendo que basta. Estão desafiando toda a autoridade e exigindo ação agora. Ao mesmo tempo, não confiam no establishment e em seus compinchas.

John Sweeney, um repórter da BBC Newsnight, que acompanhava a multidão, falou de um estado de ânimo sombrio e de possíveis distúrbios. “A política deixou o parlamento e foi para as ruas”, disse um visivelmente abalado Sweeney. “A BBC não é popular aqui”, uma referência à hostilidade dirigida à mídia burguesa.

Fala-se de se apoderar de pavimentos vazios e outras medidas radicais. Sintomaticamente, os jovens nas ruas inclusive falavam da necessidade de uma revolução. John McDonnel, o chanceler-sombra, pediu um milhão de pessoas para tomar medidas para expulsar o governo, o que elevou ainda mais o humor já radicalizado.

Sob pressão para ser vista fazendo alguma coisa, Theresa May se encontrou com alguns residentes numa igreja local, mas quando foi embora foi perseguida por uma multidão que gritava “vergonha”, “escória” e “assassina”! Todos sabem que a tragédia era evitável. Não aconteceria aos imóveis dos milionários do bairro, onde a expectativa de vida é 14 anos mais elevada do que nos imóveis mais pobres. A tragédia levou a questionamentos sobre a austeridade e a qualidade inadequada do fornecimento de moradias em nossas cidades. Mas também coloca as questões dos ricos e dos pobres e do sistema podre em que vivemos.

Um escândalo após o outro! Agora descobrimos que o novo chefe de pessoal de May é o ex-ministro da moradia, Gavin Barwell, o ministro Tory que “se sentou” em um informe de advertência sobre riscos de incêndio nos blocos da torre! A culpa por Grenfell vai até o topo do governo, aumentando ainda mais a possibilidade de sua queda.

Segundo o jornal Tory, o Telegraph, a resposta oficial foi “lamentável”, enquanto “o governo parece estar à deriva, sem timão, aturdido pelo resultado eleitoral e esmagado pela magnitude de todas as outras tarefas que enfrenta, nada menos que as negociações da Brexit, que começam na segunda-feira”.

Qualquer coisa que o governo fizer dará errado. Cada passo que der produzirá efeitos contrários. Cada palavra errada simplesmente inflamará ainda mais a situação. Foram pegos em uma espiral viciosa. Mas isto é simplesmente um reflexo do mal-estar político e da falta de contato com a situação real no terreno.

Tories em crise

A turbulência política da Grã-Bretanha se entrincheirou. Desde as eleições gerais – há apenas duas semanas – Theresa May vem lutando desesperadamente por sua sobrevivência política. A cada dia que passa, sua autoridade política esvazia-se inexoravelmente.

Não surpreende. A popularidade de May caiu como uma pedra. O desastre da Torre Grenfell e sua abordagem a ele podem ser sua ruína final. Uma recente pesquisa YouGov mostrou que sua taxa líquida de popularidade caiu para menos de 34 pontos depois da eleição, abaixo dos 44 pontos em abril.

A situação sem precedentes abriu divisões dentro do partido Tory. A observação de Osborne de que May era uma “mulher no corredor da morte” não está longe do alvo. “É quase esmagador”, disse um deputado Tory. “As coisas estão mudando muito rápido. A suposição é que Theresa May tem apenas semanas ou meses”. Um desafio à liderança depois do Verão é totalmente provável, com Boris Johnson e outros se alinhando para chegar ao topo.

May foi acusada de tomar decisões no âmbito de uma pequena camarilha, com a exclusão de seus ministros. Destacados Tories agora estão exigindo um governo de Gabinete e estão flexionando seus músculos neste vácuo de poder. O chanceler, Philip Hammond, que repetidamente enfrentou May e seu círculo, agora está apresentando sua própria agenda, particularmente sobre a Brexit. Seus pontos de vista estão mais em linha com os interesses das grandes empresas enquanto elas buscam manter o acesso aos mercados europeus.

David Cameron tem apelado publicamente por uma Brexit “mais suave”, refletindo mais uma vez os temores dos bancos e da City de Londres. Ele disse que May deveria conversar com a oposição Trabalhista para desenvolver uma abordagem mais consensual. Por razões óbvias, Downing Street está resistindo a esses movimentos por temor de despertar um ninho de vespas dentro do partido Tory sobre a questão da Europa. Enquanto emergem diferenças nas negociações da Brexit, May pode se ver forçada a fazer concessões. Em resposta, os apoiadores linha dura da Brexit dentro do partido Tory vão criar enormes problemas para o governo minoritário de May, que será empurrado em diversas direções. Uma guerra civil dentro do partido Tory é uma forte perspectiva.

Um governo Corbyn no horizonte

É evidente que o governo de crise de May está pendendo por um fio. Converteu-se no para-raios da ira pública.

Em um lance final dos dados, a primeiro-ministro voltou-se para o sectário DUP para regatear apoio e um colete salva-vidas parlamentar. Mas isto provocou alarma, mesmo nos círculos Tory. Sir John Major, o ex-primeiro-ministro Tory, viu este acordo como um sério risco ao Acordo da Sexta-Feira Santa, que já se encontra em situação difícil. O executivo e a assembleia de compartilhamento do poder de Stormont entraram em colapso. E qualquer acordo com o DUP colocará em risco as tentativas de restaurar o governo no Norte da Irlanda.

Mesmo que um acordo com o DUP seja alcançado, o que já está se mostrando mais difícil do que May esperava originalmente, dará ao governo uma maioria de somente dois assentos parlamentares, dificilmente um governo “forte e estável”. No caminho rochoso à frente, o governo enfrentará revoltas após revoltas, bem como o assédio de uma oposição encorajada. Será, portanto, um Verão político muito quente e o governo pode cair no Outono.

Tal cenário abrirá a perspectiva de uma nova eleição geral dentro de meses. Dada a impopularidade dos Tories, isto também abre a perspectiva real de um governo Trabalhista de esquerda sob a liderança de Corbyn. Essa eventualidade levará o establishment britânico ao pânico.

Um governo de esquerda estaria sob pressão da classe trabalhadora para realizar reformas ousadas. Mas também enfrentaria a sabotagem das grandes empresas. Os capitalistas e banqueiros se engajarão em uma greve de capital na tentativa de derrubá-lo ou de deixá-lo de joelhos.

Um governo Corbyn enfrentaria uma dura escolha: ajoelhar-se à chantagem das grandes empresas ou introduzir medidas de emergência para tomar o controle sobre a economia. Nesta época de crise capitalista não há mais espaço para compromissos.

Os líderes Trabalhistas devem fazer o mesmo que propuseram com relação à catástrofe de Grenfell: adotar medidas de emergência de requisição de imóveis vazios para serem usados para abrigar os sem-teto. “Em medidas de emergência, como vimos em períodos de guerra, pode-se requisitar propriedades”, disse McDonnell. Você precisa de poderes para fazer isto. Temos esses poderes”.

“Eu teria convocado o parlamento imediatamente para produzir mais legislação dentro de 24 horas, se fosse necessário. Não podemos ficar em uma situação em que temos pessoas que perderam suas casas e que estão lutando para encontrar alojamento alternativo enquanto temos imóveis construídos vazios. Ocupá-los, comprá-los compulsoriamente, requisitá-los – há um monte de coisas que podemos fazer”, disse ele.

Absolutamente correto! Mas, com a mesma ênfase, dizemos que, se um governo Corbyn enfrentar a sabotagem e uma greve de capital, ele deve tomar medidas emergenciais para assumir os bancos, as empresas de seguros e os gigantescos monopólios que dominam a economia, e planificá-los no interesse da maioria. Deve-se lançar um apelo aos trabalhadores para ajudar a realizar esta tarefa através da ocupação de seus locais de trabalho e estabelecendo comitês de defesa do governo.

Qualquer tentativa de remendar o capitalismo em crise ou de se comprometer com ele terminará em desastre. Esta é a lição dos anteriores governos Trabalhistas.

A situação na Grã-Bretanha está se abrindo agora de uma forma que teria sido muito difícil de se prever não há muito tempo. O ritmo dos acontecimentos está se acelerando a cada dia. Entramos em um novo capítulo tempestuoso. É mais urgente do que nunca que construamos as forças do Marxismo para proporcionar as necessárias ideias e determinação para assegurar uma conclusão vitoriosa.

Publicado originalmente em 23 de junho de 2017, no site da seção britânica da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “Britain on the brink“.

Tradução de Fabiano Leite.