Engenharia do átomo e bomba atômica

Para entender melhor o que está por trás do acordo Brasil-Irã.

O Brasil acaba de assinar um acordo com a Turquia e o Irã para aumentar o enriquecimento do urânio processado no Irã de 3,5% para 20%. Pelo acordo, o urânio será levado à Turquia e trocado por urânio enriquecido vindo da França. Apesar disso, as primeiras declarações da União Européia são de que este acordo é um erro. Para Israel, Brasil e Turquia estão sendo enganados pelo Irã. Alega-se que o reator nuclear do Irã não será paralisado e continuará o enriquecimento do urânio visando a chegar a um urânio com 90% de enriquecimento, capaz de produzir a bomba atômica.

Um pouco de história

A engenharia do átomo começa nos anos 1930-40. Ela se baseia em duas teorias físicas: uma, mais conhecida, a teoria da relatividade, explica que massa (matéria) e energia são a mesma coisa, em formas diferentes, sendo que a transformação se faz através da fórmula E=mc2. Em termos simples, a Energia que uma pequena quantidade de matéria produz é igual à massa (comumente chamada de peso na linguagem coloquial) multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado. Como a velocidade da luz é muito grande (300 mil km/s) isso implica que uma massa muito pequena produza muita energia se for totalmente transformada em energia.

Mas, será fácil fazer isso? O exemplo maior que conhecemos disto feito na natureza são as estrelas, dentre elas o Sol. Na maioria delas o hidrogênio é fusionado entre si para produzir o Helio, levando a liberação de uma parte da massa existente como energia, que é esta que recebemos (luz e calor) e que faz as estrelas brilharem. Existiria outra?

Na verdade, quando a pesquisa começou em 1930 já eram conhecidos diversos elementos ditos “radioativos”, ou seja, que emitiam energia espontaneamente, através da transformação atômica em seu interior. O mais famoso era o Radio, cujas propriedades foram descobertas por Marie Curie (física polonesa, que estudou na França e se casou com um físico francês, Pierre Curie) no começo do século XX. O estudo desses elementos combinou-se então com a outra descoberta física: a mecânica quântica.

Hoje, a mecânica quântica tem sido muito usada para uma série de pseudociências, devido aos seus resultados pouco compreendidos. Ao invés de trabalhar com uma lógica do tipo cartesiano, onde as coisas têm implicação direta (se João é casado com Maria e Pedro é o pai de Maria, então João é o genro de Pedro). Na mecânica quântica vigora uma lei de implicação estatística, com regras bem definidas.

O melhor exemplo é jogar um dado. Embora eu não saiba o resultado de uma jogada individual, posso prever com segurança que após um numero grande de jogadas, terei obtido seis em aproximadamente um sexto das jogadas que fiz. É assim que trabalha a mecânica quântica.

Por que isso nos interessa? Porque no decorrer da década de 1930 começou-se a perguntar se era possível transformar matéria em energia. Afinal, matéria é disponível sempre na natureza e energia é algo não tão fácil de usar. Mas a vida não é tão fácil quanto imaginam os pseudo-cientistas e nem toda matéria se transforma em energia de forma tão fácil. O que a fórmula de Albert Einstein previa é que se a matéria fosse transformada em energia, qual seria o tanto de energia resultante. Ela nunca disse que a matéria viraria energia espontaneamente.

A busca por esta transformação levou a algumas hipóteses ousadas. Duas delas se destacaram – a possibilidade de construir usinas para produção de eletricidade e a possibilidade de uma transformação rápida, ou seja, uma bomba. Em termos práticos, as duas questões se ligaram.

Para produzir a energia atômica e também a bomba atômica é necessário refinar o urânio existente na natureza (aonde a maior parte é o isótopo U-238, 99,3% e a menor parte o U-235, 0,7%). Por quê? Porque o Urânio 238, tendo mais nêutrons tende a ser mais estável que o U-235. Assim, refinando o Urânio poderíamos conseguir uma percentual maior de U-235 que permitisse a fissão nuclear (quebra do átomo de urânio e subseqüente transformação de uma parte deste urânio em energia). Ocorre que isto não é tão simples.

A solução para este problema envolve vários aspectos que podem ser consultados nos documentos que estão linkados acima. Quais os principais aspectos?

  • Concentrações de urânio com maior percentual de U-235 são necessárias para iniciar o processo. Afinal, é uma questão estatística, sabemos que o U-235 desintegra-se, mas quanto maior a quantidade, maior a velocidade de desintegração.
  • Necessita-se de uma matéria que absorva a radiação. A melhor delas é a água pesada (água cujo hidrogênio tenha um nêutron e um próton, ao invés de somente um nêutron). Para se ter água pesada é necessário que ela seja refinada também.
  • Depois, monta-se o reator, ou seja, montamos blocos de minerais que contenham urânio, com “moderadores” que permitam que os nêutrons emitidos pelo U-235 percam energia e possam, portanto, ser capturados por outro U-235
  • Tem-se o cuidado de não colocar muito U-235 junto senão a coisa pode explodir.

Na prática, o último cuidado é inexistente. Caso se ultrapasse a chamada “massa crítica”, ou seja, a quantidade de U-235 junto para se ter uma explosão, ela seria muito rápida e dispersaria o U-235 sem ser uma bomba atômica.

Quando a construção começou, descobriu-se que era produzido outro elemento radioativo, o Plutônio, de número atômico maior, que tinha propriedades semelhantes ao U-235. Em outras palavras, se temos um reator funcionando por bastante tempo (e dependendo do tamanho também) teremos como resultado um outro elemento que também servirá para alimentar um reator igual… ou também uma bomba atômica.

O físico Bohr entendeu isso muito bem, assim como outros. Heisenberg, na Alemanha empenhou-se em construir uma bomba atômica. Einstein escreveu ao Presidente Roosevelt dos EUA (leia aqui a carta) explicando porque deveria ser pesquisada a bomba atômica. Bohr, num episódio “mal esclarecido” não ajudou a construir bomba nenhuma e escreveu aos presidentes dos EUA, ao primeiro ministro da Inglaterra e a outros tentando impedir esta construção (leia mais sobre isso aqui).

Mas, a roda da história e do desenvolvimento científico gira e a bomba atômica foi construída, primeiro nos EUA (que demoraram 3 anos entre a construção do primeiro reator até a construção da bomba).

O que precisa para uma bomba? O que precisa para um reator nuclear produzir energia? Existem outros usos para a energia atômica?

Para ter uma bomba é necessário atingir a massa crítica, ou seja, aquele tanto em massa necessário para que continue a reação originada. Num reator isso é feito de forma controlada. Numa bomba, tem que ser colocado de uma vez. Assim, a melhor forma é simplesmente colocar um elemento detonador que una as duas partes que separadas não têm a massa crítica. Embora uma idéia inicial tenha sido de juntar duas esferas, em termos práticos, o melhor é ter um cilindro oco e um “miolo”, sendo que o detonador impele o miolo para dentro do cilindro em um tempo muito rápido. A partir daí, a massa crítica é atingida (na prática, é melhor estar com um valor bem acima) e a bomba explode.

O problema então é simples: se você possui tecnologia para produzir combustível para o reator nuclear, você tem então a tecnologia para produzir a bomba? Falso, pelo menos de início. Afinal, você pode produzir a massa critica do U-235 (50 kg) com um reator que tenha 3% somente de U-235, ele fica parado em terra (a maioria dos reatores funciona desta forma). Para se ter uma bomba você precisa produzir U-235 com pureza de 90% (o que exigiria, só de urânio, um peso de quase 100 kg para a bomba, mais os detonadores). Einstein supunha que a bomba seria tão grande que teria que ser carregada por um navio e não caberia num avião!

O problema é que se alguém possui a tecnologia para refinar o urânio a 3%, teoricamente você pode continuar até chegar a 90%. Qualquer engenheiro ou químico poderá lhe dizer que não é tão simples assim. Uma coisa é refinar algo para produzir 3%, outra para se chegar a 90%. Além disso, existe outro uso para a energia nuclear: uso médico e outros. Para tal, é necessário um urânio enriquecido a 20%.

É irrelevante discutir aqui as formas de enriquecimento do urânio. A questão é que para se conseguir dominar a tecnologia, tem que se dominar o enriquecimento. Por outro lado, há um subproduto dos reatores: o plutônio. Se separado (e é mais fácil separar o plutônio, porque ai se trata de reação química e não de métodos físicos de separação de substancias iguais pelo peso) ele também serve como combustível e para construir uma bomba.

AIEA e o controle dos armamentos

Lênin já explicou que a burguesia conseguiu desenvolver o mercado em alguns países e, a partir daí, com a exportação de capitais, exportou o capitalismo para o mundo inteiro. Na prática temos países imperialistas e países semi-coloniais. Todos os países imperialistas estão hoje numa situação que possuem bombas – como EUA, Inglaterra ou França – ou estão no “limiar”, quer dizer, possuem a tecnologia para construí-la e podem fazê-la se assim o quiserem – Alemanha, Japão, Itália, Espanha. Outros países construíram a bomba, roubando tecnologia dos EUA (URSS, China, Índia, Paquistão, Coréia do Norte) ou então tendo esta tecnologia generosamente cedida (Israel, África do Sul). A África do Sul destruiu o material quando da possibilidade do fim do regime racista. Países como Coréia do Sul também têm tecnologia capaz de chegar rapidamente à bomba nuclear.

A AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) e o Tratado de Não-Proliferação Nuclear pretendem dar um freio a essa situação. De forma geral, pretendem que um país que tenha a bomba possa continuar com ela e outro que não tenha não a construa. Isso representa realmente uma desigualdade gritante. E, no caso do Irã, se vê que não é só a bomba. Afinal, por receio que o Irã chegue no “limiar”, que tenha a tecnologia e não construa a bomba, mas possa fazê-la quando quiser, quer se impedir que o Irã desenvolva a tecnologia capaz de produzir os isótopos radioativos que o país precisa para uso médico ou industrial.

O Brasil encontra-se numa situação semelhante, já que vem desenvolvendo tecnologia para produzir combustível próprio e também para produzir submarinos atômicos (com energia gerada por reatores nucleares). A Argentina, embora não muito falada no momento, também se encontra com problema semelhante. Turquia idem. Em outras palavras, os países imperialistas querem ditar qual a tecnologia que os países semi-coloniais podem ter.

Por isso, não espanta que Brasil, Turquia e Irã tenham conseguido um “acordo” e que este vá ser detonado pelos países imperialistas, como começou a fazer a União Européia logo após a assinatura do acordo.

É bom existirem bombas nucleares, de urânio, plutônio ou as de hidrogênio? Claro que não. Mas este foi o resultado do desenvolvimento capitalista que ao lado da construção e descobertas que beneficiam a humanidade, faz uso destas descobertas contra a própria humanidade.

É possível um mundo ser armas nucleares? Sim, é possível, mas este mundo não será o mundo capitalista, dividido em classes sociais e em nações antagônicas, mas sim o resultado da revolução socialista e de uma União Mundial das repúblicas soviéticas.

* Luiz Bicalho é formado em física pela UnB e milita na Esquerda Marxista do PT.

Deixe um comentário