Egito: duas faces da reação, o Exército de El-Sissi e a Irmandade Muçulmana de Morsi

O exército egípcio está massacrando a Irmandade Muçulmana que por sua vez organiza provocações e massacra cristãos e incendeia igrejas cooptas. Os dois buscam estrangular a revolução começada em 25 de Janeiro que derrubou Mubarak e que, em 30 de junho, se aprofundou derrubando Morsi.

Nesse dia, com uma mobilização de massas sem precedente na história, como diz a Resolução da Corrente Marxista Internacional (CMI) sobre a situação internacional, “Com 17 milhões de pessoas nas ruas determinadas a derrubar Morsi, a cúpula do exército, que representa a coluna vertebral do Estado egípcio, interviu removendo Morsi para evitar a derrubada de todo o regime”.

E mais adiante:A situação é de impasse e nenhum dos lados pode reclamar vitória total. É isto que permite ao exército se elevar acima da sociedade e se apresentar como o árbitro supremo da Nação, embora, na realidade, o poder real estivesse nas ruas. A confiança expressada por algumas pessoas no papel do exército demonstra extrema ingenuidade. O Bonapartismo representa um sério risco para a Revolução Egípcia. Esta ingenuidade será extirpada da consciência das massas pela dura escola da vida”.

O exército reagiu ao movimento antecipando-se e buscou manipular o sentimento popular como se estivesse a seu favor. O general Al-Sissi pediu um “mandato” ao povo nas ruas para agir em seu nome: “Peço a todos os egípcios honestos e de confiança que saiam à rua na sexta-feira”, disse Sissi na declaração transmitida ao vivo pela televisão estatal. “Porquê saírem? Para me darem um mandato e uma ordem para que eu possa confrontar a violência e o potencial terrorismo”. O mesmo exército assassino que sustentou a ditadura de Mubarak agora pretendia “representar o povo”.

O incrível é que os dirigentes jovens e desorientados do Tamerod (Rebelião), a oposição burguesa como El-Baradei, e a maioria dos dirigentes das três centrais sindicais imediatamente se alinharam com os generais e se incorporaram ao governo. O presidente da nova e principal Central Sindical, a Federação Egípcia dos Sindicatos Independentes (EFITU), Kamal Abu Aita, declarou: “Os trabalhadores, que eram campeões em greve durante o regime deposto, devem tornar-se agora os campeões da produção!”. E imediatamente assumiu o cargo de Ministro do Trabalho do governo nomeado pelos generais.

 Honra seja feita a Fatma Ramadam, da Executiva da EFITU, que combateu a capitulação com uma declaração onde se lê: Foi-nos pedido hoje [sexta-feira 26 de Julho] para sairmos [às ruas] dando assim, cobertura, à festa assassina de Al-Sissi. Descobrimos que as três federações sindicais estão de acordo: a estatal Federação Sindical Egípcia (ETUF), o Congresso Trabalhista Democrático Egípcio (EDLC) e a Federação Egípcia dos Sindicatos Independentes (EFITU), de cujo comité executivo sou membro.

Debati o assunto com os membros do comité executivo da EFITU a fim de convence-los a não fazer uma declaração pública apelando aos seus membros e ao povo egípcio a que saíssem às ruas no dia 26 de Julho, confirmando [com essa declaração], que o exército, a polícia e o povo constituem uma unidade, uma só mão – como diz a declaração. Fiz parte da minoria, conquistando quatro outras vozes contra nove. Assim, as três federações sindicais fizeram apelo aos trabalhadores para que se juntassem às manifestações, com o pretexto de combater o terrorismo.

… A Irmandade Muçulmana cometeu crimes pelos quais deve ser responsabilizada e levada a julgamento, da mesma maneira que a polícia, bem como os oficiais e os soldados que apoiam o regime de Mubarak devem ser considerados responsáveis e perseguidos pelos seus crimes. Não se deixem enganar substituindo uma ditadura religiosa por uma ditadura militar.”

O exército egípcio agindo desta forma busca se elevar acima das classes e representar o “interesse geral do povo”. Mas, isso não existe. O que existe são classes em luta e os generais de Mubarak, assim como a Irmandade Muçulmana fazem parte da classe burguesa de milionários que dominam o Egito e massacram e exploram seus trabalhadores. A ultrarreacionária Irmandade Muçulmana conclama a insurreição para restabelecer Morsi no poder e o exército utiliza a provocação para desatar uma onda de violência, de massacres e de sangue sem precedentes.

Em um só dia mais de 500 mortos e milhares de feridos. As forças de repressão atiram para matar durante toda a quarta-feira sangrenta, 14 de agosto de 2013. A violência é tamanha que El-Baradei toma distância e se demite da vice-presidência denunciando a sanguinária repressão. Governos imperialistas cínicos de todo o mundo apressam-se a condenar a violência e apontar o caminho do “diálogo”. Eles sabem que ninguém pode prever onde vai parar esta situação mas em nenhum caso será “boa para os negócios”.

O objetivo da Irmandade Muçulmana é restabelecer Morsi na presidência para enterrar a revolução egípcia ou levar o país à guerra civil prolongada. O objetivo do exército é estabelecer o terror sangrento e desmontar a revolução aterrorizando todo o povo. Um precedente é conhecido. Na Argélia, em 1991, a FIS, um partido islâmico ganhou o primeiro turno das eleições presidenciais. O exército interviu, cancelou as eleições, ilegalizou a FIS e colocou seus dirigentes na cadeia e perseguiu seus apoiadores. O resultado foi mergulhar o país numa guerra que custou 250 mil mortos e quase destruiu o país e sua economia.

O fator decisivo para a queda de Mubarak foi a entrada em cena dos trabalhadores da região do Canal de Suez que eram proibidos de ter sindicato e trabalhavam como escravos para as multinacionais de todo o mundo ali instaladas.  Isso não mudou com Morsi e a Irmandade Muçulmana. Pelo contrário, além de manter tudo como estava o governo Morsi organizava verdadeiras provocações, repressão e assassinato de trabalhadores em luta. Foi isso, junto com a revolta da maioria do povo que se sentia fraudada e atacada pelos dirigentes islamistas que detonou as mobilizações que colocaram 17 milhões nas ruas e derrubaram Morsi. E é exatamente a mesma situação que o exército pretende manter.

É uma situação terrível de todas as maneiras. Mas, que é agravada imensamente pelo fato de que não há um partido revolucionário marxista no Egito capaz de abrir uma saída para as massas que só pode ser contra o exército contrarrevolucionário e contra a arquirreacionária Irmandade Muçulmana.

Mas, a luta de classes é mais forte que os aparatos e é o mundo material, concreto, que move a roda da história. A luta de classes continua e os trabalhadores do Egito se reagruparão com seus dirigentes mais lúcidos, com aqueles que preservarem a independência de classe e abrirem a perspectiva de luta pelo socialismo, para enterrar de vez o regime da propriedade privada dos meios de produção, neste extraordinário país.

Após o primeiro choque a reação começará nos sindicatos e na juventude. Sem que se possa prever ritmos e prazos, uma coisa é certa nesta potente revolução. A ditadura imunda será derrubada pela terceira onda da revolução egípcia e junto com ela será varrida definitivamente o lixo político e social chamado Irmandade Muçulmana.

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A seguir reproduzo o capítulo sobre Egito da Resolução sobre a Situação Internacional adotada pelo Comitê Executivo Internacional da CMI, em 24/07/2013. o texto integral está em https://www.marxismo.org.br/?q=content/resolucao-da-cmi-sobre-situacao-atualegito-brasil-turquia-terremotos-da-revolucao-mundial

A Segunda Revolução Egípcia

 Períodos de aguda luta de classes irão se alternar com períodos de cansaço, apatia, calmarias e até mesmo de reação. Mas estes períodos serão apenas o prelúdio para novas e até mesmo mais tempestuosos desenvolvimentos. A Revolução Egípcia mostra isto com clareza. 

 No Egito, depois de meses de desilusão e cansaço, 17 milhões de pessoas tomaram as ruas em um levantamento popular sem precedentes. Sem nenhum partido, nenhuma organização ou liderança, elas conseguiram em apenas alguns poucos dias derrubar o odiado governo de Morsi. Com 17 milhões de pessoas nas ruas determinadas a derrubar Morsi, a cúpula do exército, que representa a coluna vertebral do Estado egípcio, interviu removendo Morsi para evitar a derrubada de todo o regime.  

Os meios de comunicação ocidentais tentaram caracterizar isto como um golpe. Mas um golpe de Estado é, por definição, um movimento de uma pequena minoria que conspira para tomar o poder à revelia do povo. Aqui o povo revolucionário estava nas ruas e era a verdadeira força motriz por trás dos acontecimentos. 

Em cada genuína revolução é o movimento elementar das massas que proporciona a força motriz. No entanto, ao contrário dos anarquistas, os marxistas não cultuam a espontaneidade, que tem seus pontos fortes, mas também suas fraquezas. Devemos entender as limitações da espontaneidade.

No Egito, as massas poderiam ter tomado o poder no final de junho. De fato, elas tinham o poder em suas mãos, mas não estavam cientes disto. Esta situação tem algumas semelhanças a Fevereiro de 1917 na Rússia. Lênin afirmou que a única razão por que os trabalhadores não tomaram o poder então nada tinha a ver com as condições objetivas, mas foi devido ao fator subjetivo:

“Por que não tomaram o poder? Steklov diz: por este e por aquele motivo. Isto é um absurdo. O fato é que o proletariado não está organizado e não tem suficiente consciência de classe. Deve-se admitir isto: a força material está nas mãos do proletariado, mas a burguesia acabou se revelando mais preparada e mais consciente. É um fato monstruoso e deve ser franca e abertamente admitido e o povo deve ser informado de que não tomaram o poder porque estava desorganizado e não consciente o suficiente.” (Lênin, Obras, vol. 36, p. 437, ênfase nossa).

Os trabalhadores e os jovens egípcios estão aprendendo rápido na escola da Revolução. É por isso que a revolta de junho foi muito mais ampla, mais profunda, mais rápida e mais consciente do que a Primeira Revolução que ocorreu há dois anos e meio. Mas eles ainda não têm a experiência necessária e a teoria revolucionária que permitiriam à Revolução alcançar uma vitória rápida e relativamente indolor.

A situação é de impasse e nenhum dos lados pode reclamar vitória total. É isto que permite ao exército se elevar acima da sociedade e se apresentar como o árbitro supremo da Nação, embora, na realidade, o poder real estivesse nas ruas. A confiança expressada por algumas pessoas no papel do exército demonstra extrema ingenuidade. O Bonapartismo representa um sério risco para a Revolução Egípcia. Esta ingenuidade será extirpada da consciência das massas pela dura escola da vida.

Os abertamente contrarrevolucionários da Irmandade Muçulmana foram expulsos do poder, mas devido aos limites de sua natureza puramente espontânea (isto é, desorganizada), a Revolução falhou em tomar o poder. Por um lado, os islâmicos reacionários estão organizando uma rebelião contrarrevolucionária que ameaça mergulhar o país em guerra civil. Por outro, os elementos burgueses, os generais e os imperialistas estão manobrando para roubar das massas a vitória que elas ganharam com seu sangue.

A Revolução foi forte o suficiente para alcançar o objetivo imediato: a derrubada de Morsi e da Irmandade Muçulmana. Mas não foi forte o suficiente para evitar que os frutos de sua vitória fossem roubados pelos generais e pela burguesia. Ela terá que passar através de uma outra dura escola, a fim de se elevar ao nível necessário para mudar o curso da história.

A Revolução capacita as pessoas a aprender rápido. Se há dois anos existisse no Egito um partido equivalente ao Partido Bolchevique de Lênin e Trotsky, mesmo com apenas os oito mil militantes que este tinha em Fevereiro de 1917, toda a situação seria inteiramente diferente. Mas tal partido não existia. Ele terá que ser construído no calor dos acontecimentos.

Os estrategistas do Capital ficaram seriamente alarmados com esses desenvolvimentos. Deixando de lado todos os elementos não essenciais e acidentais, estes movimentos foram inspirados e dirigidos pelas mesmas coisas. O que temos aqui é um fenômeno internacional: a tendência para um movimento revolucionário mundial. Estamos vendo desenvolvimentos similares começando na Europa”.