Dez anos após a crise, por que necessitamos da teoria marxista?

Enquanto milhões de pessoas nos EUA estão em busca de uma saída para o impasse do sistema capitalista, fincar raízes nas sólidas fundações da teoria marxista nunca foi tão importante. Há dez anos, poucos estadunidenses se consideravam socialistas, e menos ainda estavam abertos a isso. Mas a vida ensina e as condições determinam a consciência. Uma década de crise, a campanha de Bernie Sanders e a eleição de Trump levaram milhões de pessoas a buscar uma saída no socialismo. O crescimento vertiginoso dos Socialistas Democráticos da América depois das eleições de 2016 é apenas um exemplo das mudanças dramáticas na consciência que se desenvolvem em nosso entorno, um processo que ainda está em sua infância.

O texto que se segue é uma introdução atualizada à segunda edição de “Clássicos Marxistas: Volume Um”.

Publicamos “Quatro Clássicos Marxistas” inicialmente em 2007, às vésperas da crise de 2008. Bem antes de Wisconsin, Occupy, Black Lives Matter e a eleição de 2016, estava claro que uma nova geração estava começando a questionar o sistema e a buscar explicações. Nosso objetivo era o de produzir um volume acessível de livros de “leitura obrigatória” que todos os marxistas em desenvolvimento deveriam ler e reler para lançar as necessárias e firmes bases teóricas para começarem a entender organicamente essas ideias. A partir daí, edições similares foram produzidas em todo o mundo, e centenas de cópias foram vendidas nos EUA, uma modesta contribuição ao “processo molecular da revolução” que se infiltra sob a superfície da sociedade estadunidense.

Em fevereiro de 1917, os bolcheviques tinha apenas 8 mil membros, mas em nove meses eles tinham se transformado de um poderoso partido capaz de liderar os trabalhadores e camponeses à tomada do poder. Foto: Domínio Público

No centésimo aniversário da Revolução Russa – sem dúvida o mais inspirador acontecimento da história humana –, existe uma sensação opressiva de que a sociedade chegou a um impasse. A ressonância da ideia de “capitalismo tardio” reflete o sentimento entre milhões de pessoas que estão vivendo em um mundo de contradições absurdamente distópicas. Os meios para abolir a fome global, o analfabetismo, a falta de moradias, as doenças evitáveis, a guerra e a pobreza estão postos bem à nossa frente, no entanto, esses males continuam a arruinar as vidas de bilhões de pessoas. Sem uma luta conduzida por líderes trabalhistas e sem nenhum partido de massas da classe trabalhadora, reinam a confusão ideológica e organizacional e o ecletismo. Existe vontade mais que suficiente de lutar e se sacrificar para mudar o mundo. Mas não é suficiente lutar e se sacrificar – a classe trabalhadora necessita de uma clara linha de ataque, de estratégia e de táticas, e de uma organização que possa canalizar essa energia para realizar mudanças duradouras e fundamentais.

Como se costuma dizer, não se confiaria em alguém sem formação odontológica para nos fazer um tratamento de canal dentário – então por que não deve haver uma liderança revolucionária, que está encarregada da tarefa infinitamente mais complexa de dirigir a transformação da sociedade, que estude a aprenda sobre política? Todos temos a capacidade de nos tornarmos esses líderes para a nossa classe se para isso dedicarmos tempo e esforços. É por essa razão que a educação teórica é mais essencial do que nunca.

No entanto, alguns poderiam se perguntar por que alguém deveria se preocupar em ler um livro de obras escritas muito antes que a maioria das pessoas hoje vivas tivesse nascido. À primeira vista, isso parece ser uma dúvida razoável. Frente a uma avalanche de redes sociais e com tantas análises de qualidade dos atuais acontecimentos históricos fornecidas em sites como In Defence of Marxism, quem tem tempo para ler um livro inteiro de teoria? A resposta a essa pergunta é clara: compreender os acontecimentos atuais e desenvolver perspectivas para o curso mais provável dos acontecimentos futuros é essencial, mas tudo isso se fundamenta em ter uma base teórica clara. É por isso que devemos ter tempo para ler a teoria marxista! Quem quiser mais do que uma compreensão superficial dos acontecimentos, e quem não quiser simplesmente papaguear o que ouviu ou leu em algum lugar, considerará o esforço mais que recompensador.

A teoria marxista é admiravelmente simples e infinitamente complexa – a unidade dialética entre o conhecimento humano e as leis de movimento e desenvolvimento da própria natureza. Longe de ser um fardo, aprofundar-se nas nuances dessas ideias é um prazer. Assim como o movimento de uma música expressa ideias e sentimentos de uma forma que uma pessoa sozinha não poderia expressar, os clássicos marxistas expressam as aspirações mais profundas e a visão de mundo coletiva dos explorados e oprimidos. Ainda mais importante, o marxismo nos arma com as ferramentas intelectuais e organizacionais que necessitamos para lutar e vencer.

A classe dominante obscurece deliberadamente o funcionamento real da sociedade para nos dividir e confundir. Mas quando nos aprofundamos na teoria marxista, o véu da névoa começa a se dissipar e começamos a entender não só o que está acontecendo, mas por que está acontecendo. À medida que conectamos os pontos e desvendamos as relações ocultas entre pessoas, lugares e processos, a confusão desaparece e o mundo parece “se encaixar”. Ainda mais importante, a ideia de que podemos participar de forma efetiva e decisiva no processo histórico torna-se cada vez mais concreta e menos desalentadora. É por isso que o objetivo de cada revolucionário socialista deve ser o de dominar o método do marxismo para aplicar essas ideias ao mundo vivo e em constante mudança. Todos devemos aprender a analisar os acontecimentos para intervir neles.

Todos têm uma visão de mundo, mas esta é normalmente uma mistura eclética de um pouco disso e um pouco daquilo, recolhidos desse ou daquele professor, colega de trabalho, parente ou outra fonte de informação pouco confiável. Da mesma forma, parece que todos têm uma opinião sobre o marxismo, mas muito frequentemente não é uma opinião própria. Há muitos livros que pretendem explicar “o que Marx realmente quis dizer”. Mas interpretar as ideias de outras pessoas é altamente subjetivo, e todo tipo de distorções – tanto conscientes quanto inconscientes – podem penetrar. Por que não ir direto à fonte e elaborar sua própria opinião?

Em primeiro lugar, a curva aparentemente íngreme do aprendizado do marxismo pode ser intimidante. Existem muitas palavras e conceitos não familiares para se entender. No entanto, como em qualquer campo do conhecimento, necessitamos do senso de proporção. Não devemos esperar ter o conhecimento de um neurocirurgião se não estudarmos os elementos básicos da biologia. Mas todo esse conhecimento é alcançável e avança e se acumula ao longo do tempo. O mais importante é dar o primeiro passo. O destacado revolucionário russo Leon Trotsky, que sabia uma ou duas coisas sobre a teoria marxista, deu o seguinte excelente conselho aos novos marxistas em seu curto artigo, “Não tente abraçar o mundo com as pernas” [“Don’t Spread Yourself too Thin”, em tradução livre]:

Na esfera ideológica, assim como na arena econômica, a etapa da acumulação primitiva é a mais difícil e problemática. E só depois que certos elementos básicos do conhecimento, e em particular elementos de habilidade teórica (método), forem dominados com precisão e se tornarem, por assim dizer, partes da carne e do sangue da própria atividade intelectual, torna-se mais fácil manter-se em dia com a literatura não apenas nas áreas familiares, mas em campos de conhecimento adjacentes e até mesmo mais remotos do conhecimento, porque o método, em última análise, é universal.
É melhor ler um livro e lê-lo bem; é melhor dominar pouca coisa de cada vez e dominá-la a fundo. Somente assim seus poderes de compreensão mental se ampliam naturalmente. O pensamento gradualmente ganhará confiança em si mesmo e crescerá de forma mais produtiva.

Acreditamos que esse conselho se aplica a cada seleção deste volume e à coleção como um todo. Então por que selecionamos essas obras em particular? Existem muitos outros excelentes textos, que incluímos no volume dois, e mais volumes se seguirão. No entanto, embora não exista um livro de receitas para a revolução, essas quatro obras relativamente curtas representam formidáveis blocos de construção da teoria marxista. Também vale a pena revisitá-los de vez em quando, pois sempre há alguma nova pérola de compreensão perdida durante uma leitura anterior, devido à nossa cada vez maior compreensão das ideias e da nova situação objetiva e subjetiva que nos cerca.

Primeiro está o “Manifesto Comunista” – o livro que deu início a tudo. Redigido por Marx, mas atribuído a ele e a Engels, lança o corajoso desafio contra a sociedade burguesa. Depois de todas as mentiras e distorções acumuladas sobre o comunismo, a maioria das pessoas está surpresa ao descobrir que não é um manual satânico ou um livro de receitas anarquista. Ao contrário, é uma pesquisa notavelmente concisa da história e da economia mundial, uma antecipação visionária do mundo em que hoje vivemos. De fato, uma vez que Marx e Engels estavam bem à frente de seu tempo, o Manifesto é ainda mais relevante hoje do que quando foi escrito. Não é que eles tivessem uma bola de cristal, mas sim porque eles foram os primeiros a combinar a dialética hegeliana à filosofia materialista, a ferramenta mais poderosa para a investigação intelectual que a humanidade já concebeu.

Da economia à globalização e à ascensão do capitalismo, das classes e da luta de classes que impulsiona toda a história escrita, tudo o que é essencial acerca do marxismo está ali. Embora Marx e Engels tenham desenvolvido e refinado muito mais essas ideias em trabalhos posteriores, todos os elementos básicos estão presentes como embrião nesta obra de gênio escrita por um jovem de 27 anos de idade. Dezessete décadas desde que suas linhas foram escritas, o “espectro do comunismo” continua a perseguir a burguesia, e é tarefa da presente geração dar um fim ao pesadelo do capitalismo de uma vez por todas.

Em seguida, está “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, a extraordinária e compacta introdução de Engels aos fundamentos do materialismo dialético, a filosofia do socialismo científico. O marxismo é uma visão de mundo que abraça a contradição, a mudança e o movimento; é uma ferramenta para se entender a realidade viva e dinâmica. O materialismo histórico é essa filosofia aplicada ao processo histórico, que é infinitamente complexo e que não pode ser entendido se o abordarmos superficialmente, como uma caricatura rígida e sem vida da realidade.

Como Engels explica, o marxismo parte da premissa de que mudar a sociedade não é apenas uma questão de levantar a ideia do socialismo, como os socialistas utópicos, mas de ter os meios materiais para realmente proporcionar um mundo de abundância para todos. O papel historicamente progressista do capitalismo foi o de desenvolver os meios de produção a um estágio em que podemos objetivamente proporcionar o suficiente para todos. No entanto, hoje o capitalismo esgotou o seu potencial e se tornou um obstáculo ao desenvolvimento futuro da humanidade, ameaçando arrastar toda a humanidade com ele. O socialismo não virá através de apelos à boa-vontade dos ricos, mas através da luta de classes, e a vitória da classe trabalhadora lançará as bases para acabar com todas as classes, a exploração e a opressão.

“O Estado e a Revolução”, de Lênin, é outra obra essencial. Escrita durante o curso da Revolução Russa de 1917, aborda problemas teóricos e práticos muito concretos enfrentados pela classe trabalhadora na luta contra os capitalistas e seu estado. Com base na compreensão de Marx e Engels sobre essa questão, e em particular com a experiência da Comuna de Paris, Lênin demole a ideia revisionista de que o capitalismo pode de alguma maneira ser reformado sem o desmantelamento do aparato de Estado capitalista. Ele explica o que é o Estado, que interesses de classe ele representa, como um Estado operário seria diferente de um Estado burguês e como o Estado acabará desaparecendo completamente com base nos antagonismos de classe uma vez que a classe trabalhadora ganhe poder econômico e político e comece a construir o socialismo em todo o mundo. Desde Black Lives Matter até aqueles que se perguntam se a revolução é realmente necessária, ou se serão suficientes as reformas dentro do capitalismo, há muitas lições fundamentais a serem aprendidas.

Esse volume termina com o “Programa de Transição”, escrito por Trotsky às vésperas da 2ª Guerra Mundial e que fornece ideias incríveis sobre como lutaram os trotskistas para construir suas forças em um mundo dominado pelo stalinismo, fascismo e rooseveltismo, no precipício de um cataclismo humano. Muita coisa mudou desde então, pelo menos na superfície, mas os fundamentos da exploração capitalista continuam os mesmos. Mais uma vez, o que mais importa é o método usado para analisar a situação e para determinar qual a melhor forma para se erguer as demandas transicionais. Ou seja, de uma forma que eleve os horizontes dos trabalhadores à perspectiva e à necessidade de uma revolução socialista.

Desenvolver perspectivas políticas é uma ciência, ao passo que a construção de um partido é uma arte. Uma análise científica começa analisando as necessidades concretas da classe trabalhadora hoje e examina como essas necessidades podem ser satisfeitas. Se formos objetivos em nossa análise, a conclusão resultante é que isto requer uma mudança de sistema. A tarefa dos revolucionários de hoje é levantar as demandas que unam o nível atual de consciência de classe à necessidade do socialismo, declarando objetivamente o que é necessário para elevar essa consciência. Seria criminoso adaptar nossas demandas ao que o sistema capitalista pensa ser “razoável” ou “prático”. O que é razoável e prático para os capitalistas é o oposto para a classe trabalhadora.

De forma diferente das décadas de 1950 e 1960, o sistema capitalista não está em posição de conceder nenhuma reforma ampla e duradoura. A história mostra que até as mais modestas reformas são subproduto da luta militante, e é para isso que devemos nos organizar e preparar. Isso é o oposto dos que pensam que os socialistas devem diluir suas ideias dentro de um “apelo mais amplo” ou simplesmente acabar com o movimento. A tarefa de uma liderança revolucionária é fazer precisamente isto: liderar. Não através de decretos ou de imposições a partir de cima, ou de denúncias a partir dos lados, e sim demonstrando na prática que nossas ideias e métodos produzem resultados concretos enquanto lutamos ombro a ombro com o restante de nossa classe através de todos os altos e baixos da luta de classes. O programa transicional também serve como uma ponte indispensável entre os quadros revolucionários e as massas, como uma forma de se conquistar os indivíduos mais perspicazes para o programa e perspectivas revolucionárias. Um exemplo de um programa de transição moderno é o desenvolvido ao longo de anos de discussão e debates democráticos pelos camaradas da seção estadunidense da CMI, disponível em www.socialistrevolution.org.

Apoiamo-nos nos ombros de gigantes – e isso inclui o sacrifício de milhões de trabalhadores que lutaram e morreram por um mundo melhor. A teoria marxista é um guia para a ação, e podemos assegurar a cada um que quer “fazer alguma coisa” que haverá muita ação no período histórico em que entramos. Mas a impaciência é a ruína dos revolucionários. Necessitamos nos preparar pacientemente para os acontecimentos sem precedentes cuja sombra já podemos ver no horizonte. A verdadeira questão é se toda essa ação conduzirá a um êxito real e duradouro – o fim das classes e da exploração de classe. Tudo isso depende de nós. Um exército que enviasse recrutas inexperientes à batalha sob a liderança de generais que nunca estudaram as guerras do passado seria pulverizado na primeira escaramuça. Nossa classe merece algo melhor. A compreensão e o sentimento orgânicos sobre a luta de classes não podem ser improvisados no fragor da batalha. Somente podem ser construídos minuciosamente durante períodos de anos e décadas, através do treinamento persistente e da participação ativa nas lutas da classe trabalhadora.

Há uma sede de ideias que não pode ser aplacada pelo liberalismo e pelo reformismo. Os pós-modernistas querem nos fazer crer que qualquer ideia é tão boa quanto qualquer outra e que, em última instância, as ideias realmente não importam absolutamente. Mas os socialistas científicos julgam a utilidade de qualquer conjunto de ideias pelo fato delas darem ou não darem resultados. Essas ideias têm poder persuasivo e preditivo? Podem elas nos ajudar a antecipar os fluxos e refluxos da luta de classes e traçar um rumo para mudar a história? Lênin disse uma vez que o marxismo é todo-poderoso porque é verdade. Como revolucionários marxistas, estamos cheios de confiança no futuro e confiantes de que a verdade triunfará sobre as mentiras e a perfídia do capitalismo e de seus aduladores.

No mundo em que vivemos, não há espaço para a complacência. Literalmente, vai ser agora ou nunca para a espécie humana. A barbárie rasteja no planeta e pode rapidamente engolir-nos a todos se não enterrarmos o sistema que a engendra. O capitalismo não cairá por si mesmo e também não nos ensinará como fazer isso. É aqui que entram os grandes marxistas. É por isso que, se estamos falando seriamente sobre mudar o mundo, devemos ser sérios sobre o estudo da teoria marxista. Como disse Arquimedes, “deem-me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o mundo”. Se a classe trabalhadora é a alavanca que pode transformar o mundo, a teoria marxista é o ponto de apoio.

Artigo originalmente publicado em 18 de dezembro de 2017 no site Socialist Revolution, seção americana da Corrente Marxista Internacional, sob o título “Ten years on from the crisis — why we need Marxist theory“.

Tradução de Fabiano Leite