Da bomba atômica ao acidente nuclear no Japão

Há 1 mês a terra tremia no Japão. Desde os primórdios da humanidade os monstros, bruxas e outros seres da imaginação povoaram a mente humana. O desenvolvimento da ciência poderia ter acabado com tudo isso, mas parece ter criado novos medos. Por que?

Frankenstein

Os medos antigos da humanidade começaram a ser varridos na era das grandes navegações, no final do século XV (1490 em diante). O mundo não tinha uma “beira”, o mar não terminava em abismo, os monstros imaginários não existiam e as caravelas de Portugal e Espanha chegavam à América, contornavam a África e chegavam à Índia e ao extremo Oriente.

Pela primeira vez na história, os homens faziam grandes viagens e continuavam em contato com a sua “casa”, o seu lugar de origem. O processo migratório, que povoava a terra criando distintas civilizações, não mais destruía laços, mas agora ocorria permitindo o contato permanente entre as pessoas. O desenvolvimento do capitalismo levou a ciência a fronteiras nunca antes exploradas. Mas, paralelamente a esse avanço, avançavam novos medos. Afinal, a mesma ciência que permitia a comunicação em toda a Terra criava meios de destruição sem precedentes. As caravelas despejavam homens, novas religiões, a civilização, pólvora, chumbo e balas.

Os novos mitos, bem como o medo do que a ciência pudesse produzir, encontram-se de forma detalhada na novela Frankenstein, de Mary Shelley: o homem, ao tentar criar a vida, cria um monstro. De certa forma, é uma visão romanceada do novo mundo que o capitalismo então criava: as máquinas rasgando a terra, tirando de suas entranhas o carvão e o ferro, forjando locomotivas e navios, e dali a pouco aviões que povoariam os céus. O sonho de Ícaro fora realizado e o homem podia então voar; entretanto, o fazia num cenário de pesadelo e aparente descontrole, sob o temor de que poucos dias felizes pudessem resultar num pesadelo diário. E afinal, o capitalismo, que permite todo esse avanço, também trata a Terra e os homens de forma impressionantemente anárquica. É “a força da grana, que ergue e destrói coisas belas”, como cantou Caetano Veloso.

Essa Ciência, irmã, mãe e filha do capitalismo, parece – e é – incompreensível para a maioria das pessoas, que em geral não recebe instrução suficiente para entender seus avanços. Tal compreensão fica relegada apenas aos cientistas. Assim, a maioria observa os efeitos dos avanços e recuos científicos com temor – justificadamente. Afinal, a mesma mão que produz radioisótopos capazes de curar o câncer pode provocar o câncer em um enorme número de pessoas, seja por meio do vazamento de uma usina radioativa (como no Japão), seja no dia-a-dia de um técnico de laboratório que trabalha no setor de radiologia de um hospital.
A ciência pode e deve ser usada para o bem da humanidade. Entretanto, isso não é possível sob o capitalismo: de sua busca desenfreada pelo lucro a despeito de todas as coisas resulta um mau uso da ciência que pode levar a destruições e medos muito mais reais do que os lobisomens, fantasmas e vampiros que povoavam a imaginação de nossos antepassados.

Átomos e radiação

Já tratamos do assunto em outro artigo sobre a física necessária para produzir bombas atômicas e energia nuclear (ver aqui). Contudo, diante do recente acidente nuclear no Japão, torna-se necessário acrescentar mais algumas informações para que o incidente seja devidamente compreendido – na contramão das informações veiculadas pela maioria dos órgãos de comunicação.

Para começar, uma pequena aula sobre física básica:

A matéria é formada por átomos. Do grego, a-tomos significa “sem divisão”. Esse nome justifica-se pelo fato de que os átomos foram descobertos pelos químicos e, como componentes originais de todas as moléculas (formadas por agregados de átomos) eram e são indivisíveis por processos químicos. Entretanto, descobriu-se que por processos físicos eles podem ser divididos.

Vários elementos naturais são radioativos, como o Urânio e o Radium. Outros são formados pela radiação deles. Como? Em termos gerais, um átomo é composto por nêutrons, prótons e elétrons. Prótons e nêutrons formam o núcleo do átomo, que é milhares de vezes mais pesado que os elétrons, que por sua vez giram em torno do núcleo. Prótons têm carga elétrica positiva, elétrons têm carga negativa e nêutrons não têm carga elétrica.

Como um corpo de eletricidade positiva repele outro corpo de mesma carga, os nêutrons conferem, através da atração nuclear, uma estabilidade no núcleo dos diferentes elementos atômicos. Um elemento atômico diferencia-se de outro pelo número de prótons (número atômico). A soma do número de prótons e de nêutrons equivale à massa atômica. O número de nêutrons pode variar sem mudar o elemento atômico, ou seja, um elemento pode ter diferentes pesos. Por exemplo, o Hidrogênio normal tem número atômico 1 e peso atômico 1, com 1 próton e sem nêutrons. Já o Hidrogênio pesado (que compõe a água “pesada”) é formado com um núcleo contendo um próton e um nêutron (deutério) ou com um próton e dois nêutrons (trition). Esses átomos, que são iguais quimicamente falando, mas diferentes em peso atômico, são chamados de isótopos.

Quando a radiação foi descoberta, no inicio do século XX, dividiu-se a mesma em três tipos: alfa, beta e gama. Posteriormente, foram descobertos os Raios X. Essa era apenas uma divisão inicial e foi necessário muito estudo e pesquisa para que atingíssemos o atual nível de conhecimento sobre o assunto, que nos mostra que esses raios são os componentes básicos de qualquer reação nuclear (a cientista Marie Curie, que pesquisou a radiação, morreu vítima de seus efeitos).

Mas, antes de explicarmos esses raios, precisamos saber como a radiação espalha-se a partir de um reator ou bomba atômica. Existe radiação originária do núcleo, seja de Urânio ou Plutônio (ver artigo sobre bomba atômica). A principal informação a ser considerada é que a reação nuclear produz isótopos radioativos.

Então, o que é a radiação?

A forma mais comum de radiação é a que conhecemos como radiação eletromagnética, formada por vibrações no campo eletromagnético (para uma explicação simples do fenômeno, ver esta apresentação, de onde extraímos a imagem a seguir*). O valor do comprimento de onda determina o tipo de radiação:

Como se pode ver, a radiação abrange desde aquilo que vemos até a “radiação” originada dos elementos ditos “radioativos”, raios gama e raios X. Nós não apenas necessitamos utilitariamente da radiação, mas também sofremos seus efeitos, natural ou artificialmente.

Radiações de comprimento de onda mais longo, como é o caso das microondas, têm efeito nas moléculas e podem destruí-las, mas esse efeito tem alcance muito curto (o que quer dizer que o seu forno de microondas provavelmente é seguro.) Ondas de rádio e TV já são comuns na maior parte da Terra e aparentemente não afetam prejudicialmente a humanidade. O mesmo vale para as ondas que usamos no celular (que é um rádio, em ultima análise), mas se discute o seu efeito com um emissor (o próprio celular ou as antenas de rádio) muito próximo das pessoas. Não existem dados conclusivos sobre isso, embora até hoje os aparelhos não tenham originado grandes problemas mesmo após muitos anos de uso.

Existem radiações naturais nocivas, como os raios infravermelhos, que podem queimar a pele, ou os ultravioletas, que podem causar câncer. Ou seja, a natureza não é “boa” intrinsecamente, ela é “neutra”. Apenas o fato da existência da atmosfera e da camada de ozônio explica o porquê de não sermos mortos pela radiação natural vinda do sol.

Por outro lado, a radiação X (que usamos nos raios X) nos causa mal, embora possa ser usado para salvar e curar milhões de vida (por meio dos raios X e da tomografia, que é um raio X mais complexo). Em termos gerais, a radiação acima do ultravioleta (descrita como raio X, de forma geral) é prejudicial a saúde.

Radiação Alpha e Beta

Na verdade, chamar de radiação a esses dois tipos de emissão é produto de um erro original. Tratava-se de tudo, na época, como “emissão” e “radiação”, como se os dois termos fossem equivalentes. A verdade é que os cientistas não sabiam do que se tratava, e os termos X, Alpha, Beta e Gama eram “variáveis” do que se queria descobrir. Não reproduziremos aqui as experiências e a história da física atômica desde o começo do século XX, mas sim seus resultados: raios X e Gama são radiações eletromagnéticas de alta frequência e Radiação Alpha e Beta são partículas emitidas pelos núcleos atômicos, não sendo “radiação” no sentido estrito da palavra.

Em termos gerais, os núcleos atômicos, quando não são estáveis, emitem radiação. A radiação X ou Gama representa, geralmente, uma “descarga” de energia, enquanto as outras são expulsões de partículas. Lembremos apenas de que, como Einstein demonstrou, matéria e energia são a mesma coisa em formatos diferentes e, em determinadas condições, uma partícula emitida pode se transformar em outras sob a emissão de raios X ou Gama.

Sinteticamente, o núcleo de um átomo é composto por nêutrons e prótons. Um nêutron pode se transformar em próton emitindo um elétron (radiação beta). Assim, um trítio (isótopo radioativo do hidrogênio composto por um próton e dois nêutrons) pode se transformar em Hélio 3 (um isótopo muito raro do Hélio, com dois prótons e um nêutron no núcleo). Mas, átomos mais pesados são mais complexos, sendo que núcleos com muitos prótons e elétrons (o Urânio possui 92 prótons e mais de 140 nêutrons!) formam estruturas complexas no interior dos núcleos, que ainda são estudadas. Uma dessas estruturas é a do Hélio, ou seja, grupos de dois prótons e dois nêutrons, ligados. A emissão de uma dessas estruturas para fora do núcleo leva à radiação Alpha, que nada mais é do que um átomo de Hélio sem elétrons viajando em alta velocidade.

Mas a emissão atômica mais importante só foi descoberta muito tempo depois: a dos nêutrons. Como se trata de partículas sem carga elétrica, foi difícil descobri-las. Somente podemos “vê-las” pelo efeito que causam em outros átomos. E a questão é que, enquanto os elétrons são muito pequenos para causarem qualquer tipo de dano e os átomos de Hélio (Alpha) geralmente destroem moléculas, os nêutrons destroem átomos e causam estragos relativamente altos.

Reatores, Usinas e bombas

Já explicamos, no artigo acima citado sobre bombas atômicas, que dificilmente um reator poderia sofrer uma explosão nuclear. Mas um reator pode explodir. Como?

Reatores emitem todo o tipo de radiação e de partículas radioativas o tempo inteiro. Então, para evitar que essas partículas e a radiação contaminem o meio ambiente e os trabalhadores, o reator é envolvido em água pesada, que é o material que melhor contém todo o tipo de radiação. O formato de uma usina atômica, em termos esquemáticos, é assim:

Esse tipo de usina, mais antigo, possui uma parte em constante contato com o meio ambiente, e na medida em que a água é “esquentada” dentro do prédio, também sofre os efeitos da radiação. Uma usina mais moderna, como os geradores ERP franceses, tem todo o ciclo dentro do próprio edifício de contenção. Mas o que é um edifício de contenção?

Em primeiro lugar, o reator propriamente dito (onde ocorre a fissão nuclear do urânio ou do plutônio) é cheio de grafite e água, e encerrado em aço. O urânio vem em forma de varetas, que são inseridas ou retiradas para aumentar ou diminuir a reação nuclear. Quando o urânio é gasto, é substituído por uma nova “vareta” e as antigas passam para o prédio para “descansarem”, até serem depositadas no lixo nuclear.

Depois do reator, há um prédio em aço e concreto que protege toda a estrutura. Os formatos do vaso de contenção do reator e do próprio prédio diferem muito, de acordo com a estrutura da construção. O maior perigo de um reator nuclear é de que ele “derreta”, rompendo a estrutura inicial de contenção e vazando os materiais radioativos para a atmosfera e para a água ambiente.

Como isso pode acontecer? Caso a temperatura aumente muito, o aço pode derreter e, com ele, toda a estrutura montada. Além disso, pode ocorrer que a água de contenção ferva a um ponto que cause uma explosão ou, então, que a radiação quebre a ligação atômica hidrogênio-oxigênio, produzindo um hidrogênio misturado com oxigênio e com alta temperatura… e bum! Acontece uma explosão provavelmente como a que aconteceu no Japão, que não foi uma explosão nuclear, mas uma simples explosão química. Menos mal, dirão todos. Sim, menos mal, a não ser que essa explosão libere os elementos radioativos no meio ambiente – e é isso o que está acontecendo no Japão. Uma usina não é uma bomba, mas pode explodir – não numa explosão atômica, mas numa explosão química.

Atenção: existem reatores nucleares destinados a pesquisas médicas e outras, que não produzem energia. Embora possam também sofrer acidentes, o seu tamanho e concentração de material nuclear é tão pequeno que o risco de acidente é praticamente nulo. Aliás, com a triste exceção do primeiro reator nuclear, nenhum deles em todo o mundo sofreu qualquer acidente digno de nota, ao contrário dos lamentáveis acidentes em usinas nucleares que ficaram famosos.

Assim, não temos bombas, não temos explosões atômicas. Mas como a radiação afeta nossos corpos e o meio ambiente como um todo?

Meia vida: isótopos e paredes

Um novo conceito a que todos nós devemos estar nos acostumando, em especial aqueles que estão acompanhando as notícias sobre o desastre nuclear: meia vida. O que significa isso? “Meia vida” significa o tempo necessário para que a radioatividade de determinado isótopo caia pela metade (o conceito foi importado pela bioquímica, que o usa para determinar quanto tempo um determinado composto químico, como os medicamentos, resistem no interior de um corpo vivo).

Observe que até o momento estamos falando dos problemas que esses isótopos podem causar em nossa vida diária. Mas, antes dos problemas, temos que olhar para os benefícios do uso desses isótopos, alguns deles relacionados abaixo:

Cálcio-45 – Estudo da nutrição das plantas.
Carbono-14 – Tratamento de tumores cerebrais, medir a idade de objetos antigos.
Cobalto-60 – Tratamento do câncer, irradiação de alimentos, provocando mutações.
Iodo-131 – Estudo e tratamento da glândula tireóide, encontrar vazamentos em tubulações de água.
Ferro-59 – Estudo do sangue.
Fósforo-32 – Estudo de fertilizantes.
Sódio-24 – Diagnóstico de doenças circulatórias.
Estrôncio-90 – Tratamento de lesões pequenas.
Enxofre-35 – Estudo de aminoácidos.

Aqui novamente vamos diferenciar um reator de pesquisa de um reator de produção de energia. O reator de pesquisa vai produzir esses isótopos para uso médico e de pesquisa, enquanto o reator nuclear vai produzi-los como lixo. A gravidade do problema reside no caso de haver um acidente em que vaze a matéria prima (Urânio ou Plutônio) e também os demais isótopos. O Urânio, com sua alta taxa de radiação, apesar de não ser venenoso em si mesmo (pois não é absorvido diretamente pelo corpo) produz continuamente os outros, simplesmente por sua radiação (composta primordialmente por nêutrons) sobre os átomos normais. E estes, uma vez tornados radioativos, são perigosos porque são componentes essenciais de nossa vida, absorvidos por nosso organismo, de diferentes formas. Os exemplos mais gritantes são o Iodo e o Césio, que são facilmente produzidos.

O Iodo-131 decai rapidamente (8 dias) e afeta principalmente crianças pequenas, que o absorvem e são mais suscetíveis à radiação. Além disso, se o organismo já tiver sido suprido da susbstância, ela não “substitui”, o que impede que o iodo radioativo seja absorvido. Já o Césio-137 tem parentesco químico com o Sódio (um dos componentes do sal de cozinha) e com o Potássio, substâncias amplamente aproveitadas por nosso organismo. Por isso, ele é absorvido e demora a ser expelido, o que significa que, durante toda a vida, ele continua o envenenamento radioativo do portador. E sua meia vida é de 30 anos! Ou seja, é extremamente perigoso.

Além disso, temos que encarar o perigo de um reator: à medida que o tempo passa as suas paredes são irradiadas, atingidas pelos nêutrons e, portanto, tornam-se elas também radioativas, além de serem transformadas. Ao serem atingidas por nêutrons e outras partículas, as paredes que são de aço (carbono e ferro, principalmente) transformam-se em outras substâncias, pouco a pouco, perdendo sua consistência original. O resultado é que, qualquer que seja o material usado, depois de algumas décadas a sua parede cederá e também se tornará radioativa.

E quais os problemas que poderiam causar isso tudo? O principal deles: o Capital não quer substituir os reatores. Construir um reator custa caro, então “que tal manter este reator que já está funcionando e que não apresenta nenhum problema aparente?” Nada de mais, até chegar o dia em que acontecerá um acidente e a culpa recairá sobre qualquer coisa – o terremoto, o tsunami, falha humana, etc. – exceto sobre o principal: a vida útil desse reator já expirou, mas foi prolongada para se obter mais lucros. O reator de Fukushima já tinha problemas desde o inicio e, além disso, apresentou fissuras e microfissuras em suas paredes – indício de que sua vida útil estava chegando ao fim, de que a radiação tinha feito seu trabalho e de que ele deveria ser desativado e enterrado. Mas quanto isso custaria para o bolso dos capitalistas? E então os engenheiros, fiscais e administradores, subornados por empregos melhores, vão atestando que tudo continua normal… até o dia em que chega a sua hora de morrer.

O jornal alemão Der Spiegel, em matéria de Markus Becker, explica o problema de forma direta:

“‘Primeiro, precisamos admitir que não tínhamos regras claras para julgar se o equipamento estava adequado para o serviço’, afirmou Katsumata em seu discurso, que está disponível no site da Tepco até hoje. Ele disse que não havia regras para lidar com o desgaste das máquinas e equipamentos, que racham com o tempo. Com isso, o equipamento era usado enquanto essas falhas não impusessem ‘riscos de segurança’.

E aí está o problema: quando algo não estava claro, os engenheiros da Tepco aparentemente faziam decisões arbitrárias. “Repetidamente, eles tomaram decisões pessoais baseadas em suas ideias de segurança”, disse Katsumata. Mas está claro que essas ideias de segurança não eram rigorosas o suficiente. ‘Os membros do departamento nuclear viam a oferta estável de eletricidade como o maior objetivo’, disse ele.

Com o tempo, o departamento nuclear pareceu fugir ao controle, de acordo com a avaliação de Katsumata. ‘Os engenheiros estavam tão confiantes em seu conhecimento da energia nuclear que acreditavam não precisar informar problemas para o governo, desde que a segurança fosse mantida’, disse ele. No final, ‘eles chegaram ao ponto de apagar dados e falsificar registros de inspeções e reparos’.”

Os heróis morrem a qualquer hora

Na época de minha adolescência brincávamos sempre sobre os conceitos de herói, dizendo: é o covarde que fugiu da batalha e diz que resistiu até o último minuto. Ou ainda: herói é aquele que morreu com medo, mas ninguém o revelará porque, afinal, ele está morto e servirá muito bem para a propaganda.

Atualmente, o cinema e as histórias em quadrinhos apresentam em geral a figura do super-herói que sempre sobrevive. Hoje, dentre as personagens fantásticas que figuram nessas histórias, a que mais se aproxima dos heróis de antigamente são os zumbis, mortos-vivos que não sabem que estão mortos e continuam tragicamente a sua vida morta pelas ruas, a contaminar qualquer um que deles chegue perto.

Ao que parece, esses são os “heróis” de Fukushima. Um ativista antinuclear chegou a dizer que temos ali 50 mortos que ainda vivem e respiram. E essa é a verdade. Mas não chegarão a contaminar outras pessoas: não lhes permitirão chegar perto. E absolutamente todos os órgãos de imprensa recusam-se a ver o que já está dado: eles vão morrer.

Juntando toda a radiação existente, partículas, raio-X e raio gama, podemos medir o fluxo da radiação e seus efeitos destruidores no corpo humano. Podemos medir inclusive a quantidade que podemos aguentar sem grandes problemas, como demonstra o gráfico abaixo:

Agora, de posse deste pequeno gráfico, vamos olhar o que temos no Japão. A companhia de eletricidade local, a Tepco, informou no domingo que a radiação local chegou a 10 milhões de vezes o normal. Pressionada, ela “reviu” os cálculos e disse que era somente “100 mil vezes o normal”. Reconheçamos que a Tepco está com problemas. Não é muito fácil medir as coisas quando ultrapassam nossas escalas normais. Qual instrumento, acostumado a medir valores entre 0,01 e 100 (limite da radiação que é exposto um trabalhador de uma central nuclear), pode diferenciar entre um valor de 10 milhões e um valor de 100 mil vezes? A verdade é que não temos instrumentos adequados para tais medições e elas são imprecisas. O problema é outro. É que de 400 miliservts (0,4 servts) informado inicialmente para 8 mil miliservts (8 servts no gráfico) há uma diferença. E os que trabalharam em Chernobil, com 6.000 miliservts (6 servts) de exposição, morreram todos, como mostra o gráfico. Então, por que insistem em esconder estes fatos?
Por que insistem em dizer que o Plutônio vazado do reator “não é mais do que o que se encontra na natureza”, quando o Plutônio é um elemento transurânico, artificial, que não existe na natureza (pelo menos, não no planeta Terra em quantidades mensuráveis)?

Esses senhores, esses jornalistas, esses pobres lacaios do capitalismo custam a dizer a verdade. Com esse nível de radiação todas as roupas de proteção já estão radioativas há tempos, e todos os que as vestem recebem quase tanta radiação quanto se estivessem nus. Olhem as suas tabelas: o mar chegou a 1.800! Rendemos nossa homenagem aos “heróis mortos” do Japão, aos 50, 100, 500 que continuam a trabalhar como se vivos estivessem. E trabalham, como desde o início do capitalismo, para manter viva a fábrica do patrão que não pode, de jeito algum, perder o seu lucro. Então, o que vale a vida de 500 trabalhadores diante dessa busca frenética, dessa necessidade de repor o capital e de manter o lucro?

Impossível não se indignar por essas pobres vidas humanas, por esses mortos-vivos. Eles morrerão, não por causa do terremoto ou do tsunami, mas pelas “falhas” da empresa, resumidos abaixo (a lista é grande, mas está reproduzida na íntegra para mostrar que muito mais do que falhas humanas, científicas ou de previsão, a grande causa desses problemas, desde o início, foi a necessidade de lucro):

– Durante os anos 80 e 90, em vários momentos, a Tepco falsificou dados em inspeções voluntárias, inclusive em relação ao número de fendas nos tanques de pressão do reator;

– Em 1991 e 1992, foi feito um teste no tanque de segurança do Reator 1 da usina de Fukushima, que tinha entrado em operação em 1971, para detectar a presença de vazamentos. De acordo com a Tepco, os funcionários bombearam ar para dentro do tanque de segurança para reduzir os vazamentos;

– Em 2000, foram descobertas rachaduras nos canos de água na usina nuclear;

– Em 2002, um engenheiro da firma norte-americana General Electric, que fabricou três dos seis reatores da usina de Fukushima Daiichi, também soou o alarme. Não haviam sido feitas inspeções em um total de 13 reatores nas usinas da Tepco. Ele revelou à autoridade regulatória japonesa 29 episódios de dados falsificados, um evento que levou à renúncia de altos executivos da Tepco em 2002;

– Em 2006, ou vazamento de vapor radioativo de um cano da usina de Fukushima;

– A empresa também foi acusada, no mesmo ano, de falsificar dados sobre a temperatura da água de resfriamento em 1985 e 1988. Os dados foram usados em inspeções obrigatórias da usina em 2005. Em 2007, foram revelados outros dados falsificados de um reator da Tepco;

– Em 2007, ao menos oito pessoas morreram quando a usina nuclear de Kashiwazaki-Kariwa foi fortemente danificada por um terremoto. Canos estouraram, houve incêndios e vazamento de água radioativa de uma piscina de armazenagem de varetas de combustível usadas. A Tepco teve que descontaminar o prédio afetado. A usina continuou fechada por um ano para que a segurança em caso de terremoto – que já era considerada suficiente pela empresa – fosse melhorada. Mais tarde, veio à tona a informação de que a Tepco havia dispensado 117 inspeções no local;

– Em março de 2009, outro incêndio ocorreu na planta de Kashiwazaki-Kariwa, ferindo um funcionário;

– No dia 2 de março de 2011, dias antes do catastrófico terremoto, a agência reguladora de energia nuclear do Japão levantou acusações de negligência ampla contra a Tepco. Ela alegava que a empresa tinha deixado de inspecionar 33 equipamentos na planta de Fukushima Daiichi, um dos locais da atual catástrofe, inclusive os elementos do sistema de resfriamento central nos seis reatores e as piscinas de varetas usadas. A empresa desde então admitiu ter cometido erros;

– Ao mesmo tempo, a Tepco informou à autoridade regulatória nuclear que não apenas negligenciou as 33 inspeções na usina de Fukushima-Daiichi, mas também 19 inspeções na planta de Fukushima-Daini;

– Alguns especialistas já advertiam desde os anos 70 que o reator do tipo Mark1, produzido pela General Electric e também chamado de “desenho de Fukushima”, não foi construído para sobreviver a uma combinação de terremoto e tsunami. Dias após o terremoto, dois engenheiros que ajudaram a construir a usina confirmaram, em uma conferência com a imprensa, que foram cometidos sérios erros de construção. Muitos sistemas de backup para emergências não haviam sido construídos na usina.

Morte e vida devido aos átomos no capitalismo – a cidade Zumbi nos EUA

Conforme pesquisa-se o assunto as revelações tornam-se cada vez mais nauseantes. Também no jornal Der Spiegel, uma matéria de Mark Spktize demonstra que o problema é muito maior do que parece à primeira vista, e que, além do Japão, existem outros locais em situação parecida, a começar pelos EUA.
Como exemplo, peguemos Handford, no estado de Washington, nos EUA, que possui o maior lixão nuclear do mundo. “Lixão”? Sim, porque uma boa parte dele está depositada a céu aberto. Na realidade, estão ali depositados os restos dos projetos nucleares realizados naquele país, como a produção da bomba que destruiu Nagasaki durante a Segunda Guerra Mundial e, depois, a produção de Plutônio e Urânio enriquecido para as bombas atômicas americanas, durante a chamada Guerra Fria, entre 1950 e 1990.

A cidade localiza-se às margens do Rio Columbia, e mantém mais de 200 milhões de toneladas de lixo radioativo, sendo o maior local de contaminação nuclear do mundo, depois de Chernobil. Essa situação instaurou-se aos poucos, desde os anos 50 até os anos 80. Ainda em 1971, a água radioativa era despejada diretamente no rio. Milhares de casos de câncer foram relatados, e até hoje milhares de processos contra o governo continuam em tramitação. Nessa cidade, como em nenhuma outra, o medo da ciência se justifica. Afinal, além de acidentes, a cidade foi palco de experiências como o lançamento de gás radioativo na atmosfera para verificar os efeitos sobre a população. Realmente, a maior potência nuclear do mundo fazia mesmo de tudo para “proteger” os seus cidadãos! A liberação de resíduos radioativos em 1949 a título de experiência foi mil vezes maior do que a liberada no acidente de Three Mile Island. Bebês de Handford sofreram duas vezes mais contaminação que os de Chernobil! Além dos moradores locais, a população indígena que vivia ali e sobrevivia da pesca no rio foi altamente contaminada – mas isso, evidentemente, “não conta”.

Não se pode dizer que os efeitos da radiação nuclear eram desconhecidos. A maior cientista nuclear e ganhadora de dois prêmios Nobel, Marie Curie, morreu vítima de intoxicação nuclear. Então, ignorar os riscos é “desculpa de malandro” dos cientistas envolvidos. Talvez não soubessem os valores exatos, mas sabiam em que estavam se envolvendo e estavam completamente cientes de que “descansar” a água por 6 horas não elimina nenhum resíduo radioativo – afinal, o conceito de meia vida dos isótopos já era conhecido havia muitos anos. Isso foi um crime deliberado em nome da guerra, e fatos como esse é que criam o medo na população, que acaba por temer a ciência e os cientistas quando deveriam temer os governos capitalistas e de suas empresas.
O governo reconheceu que mais de 3,8 milhões de toneladas de lixo radioativo escorreram para o lençol freático e para o rio. Mas, dizem, que vão vitrificar toda a lama restante, usando uma fábrica que está em construção e deve ser terminada brevemente, em… 2019!

Veja a segunda parte deste artigo, Ecologia, energia e reatores nucleares, em breve aqui no site da Esquerda Marxista.

Notas:

* O autor, da UFRJ, formulou uma apresentação que explica de uma forma surpreendentemente simples, embora discordemos do seu ponto de vista pessoal (religioso) com o qual a termina. Recomendamos também a seguinte fonte: Eletromagnetismo

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