Claudia da Silva Ferreira, vítima da agonia do capital

 “Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de estupidez,
Uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses,
Quando falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranqüilamente a rua
Já está então inacessível aos amigos
Que se encontram necessitados?”

(Trecho do poema “Aos que virão depois de nós” de Bertold Brecht).

Que tempos são esses em que vivemos? Mesmo com um trabalho constante da mídia de banalizar a violência, é difícil para qualquer um assistir o que aconteceu com Cláudia da Silva Ferreira no domingo (16/3) sem ficar chocado. Mulher, negra, trabalhadora, moradora da favela, Cláudia saía de sua casa rumo à padaria quando levou dois tiros da PM, foi “socorrida” pela mesma PM e colocada num porta-malas. Isso mesmo, num porta-malas.

Para piorar a tragédia, Cláudia, caiu do porta-malas e foi arrastada 350 metros no asfalto, pendurada na viatura.

Talvez por possuir um nome comum, ficou conhecida pela imprensa como “a mulher arrastada no Rio”.  E o que restou aos moradores do Morro da Congonha foi somente indignação.

Nesses tempos sombrios, Cláudias anônimas morrem diariamente, Amarildos são torturados e somem, a polícia mata trabalhador e manifestante. Nos estádios, ao invés de jogos, assistimos brigas bárbaras, com direito a tacape, nas ruas do país inteiro justiceiros prendem e humilham aqueles que a sociedade não presta nenhum suporte.

Algumas vítimas recentes da polícia são emblemáticas:

  • Cleonice Vieira de Moraes. Belém (PA). Gari. Vítima do gás lacrimogêneo lançado pela polícia militar.
  • 13 mortos na favela Nova Holanda. Complexo da Maré (RJ). A imprensa sequer se deu ao trabalho de informar todos os nomes.
  • Marcos Delefrate. Ribeirão Preto (SP). Estudante. Atropelado por um carro que furou um bloqueio de manifestantes.
  • Valdinete Rodrigues Pereira e Maria Aparecida. Cristalina (GO). Atropeladas em protesto na BR-251, no distrito de Campos Lindos.
  • Douglas Henrique de Oliveira. Belo Horizonte (MG). Caiu do viaduto José Alencar por ter sido acuado pela polícia militar.
  • Luiz Felipe Aniceto. Caiu do mesmo viaduto, ficou um mês em coma e também acabou morrendo.
  • Luiz Estrela. Morador de rua. No mesmo dia, foi espancado até a morte depois de um toque de recolher ilegal.
  • Igor Oliveira da Silva. Guarujá (SP). Marceneiro. Atropelado por um caminhão que fugia de uma manifestação, numa ciclovia próxima à Rodovia Cônego Domênico Rangoni.
  • Paulo Patrick. Teresina (PI). Atropelado por um táxi durante manifestação.
  • Fernando da Silva Cândido. Rio de Janeiro (RJ). Ator. Morto por inalação de gás lançado pela polícia.
  • Tasman Amaral Accioly . Vendedor ambulante. Senhor que foi atropelado por um ônibus, ao tentar fugir da polícia, na mesma manifestação em que o cinegrafista Santiago foi atingido – sobre esta outra vítima, nenhuma linha na imprensa.

Nas palavras do marxista Alan Woods: “é verdade que todas as ações mais bárbaras e desumanas do passado empalidecem quando comparadas aos horrores infligidos à raça humana pelo nosso supostamente civilizado sistema capitalista e seu homólogo, o imperialismo.

É um paradoxo terrível que, quando mais desenvolveu a humanidade e sua capacidade produtiva, quando os avanços da ciência e da tecnologia são mais espetaculares, maior é o sofrimento, a fome,  a opressão e a miséria da maioria da população mundial1.

É impossível para qualquer pessoa não pensar nos sintomas da barbárie ao ver o que aconteceu com Cláudia. Não podemos observar casos como esse de forma isolada, eles são parte de algo maior. Para entendermos o absurdo ocorrido no Rio de Janeiro e outros vistos nos últimos anos, precisamos compreender a sociedade que vivemos, o capitalismo, em sua amplitude.

Civilização e barbárie

Coberta de ignomínia, chafurdando em sangue, pingando imundície – assim se apresenta a sociedade burguesa, assim ela é. Ela se mostra na sua forma nua e verdadeira não quando, impecável e honesta, arremeda a cultura, a filosofia e a ética, a ordem, a paz e o Estado de direito, mas como besta selvagem, anarquia caótica, sopro pestilento sobre a civilização e a humanidade2.

As palavras acima são de Rosa Luxemburgo e foram escritas em 1916. É evidente o quão atual é essa descrição do regime burguês.

Não podemos negar que o desenvolvimento do capitalismo “representou um passo à frente colossal para o desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, um enorme desenvolvimento de nosso poder sobre a natureza. O desenvolvimento da indústria, da agricultura, da ciência e da tecnologia tem transformado o planeta e colocado as bases para uma revolução total que, pela primeira vez, nos converteria em seres humanos livres3. Ou seja, o capital permite criar as bases do socialismo.

Mas a crise atual é o reflexo do fato de que o desenvolvimento das forças produtivas está entrando em conflito com a a propriedade privada e o estado nacional. O capitalismo há muito que deixou de desempenhar um papel progressista e se converteu num monstruoso obstáculo para um novo desenvolvimento. Há que se eliminar este obstáculo, se a humanidade quer seguir em frente. Se não é eliminado a tempo, uma terrível ameaça pende sobre a cabeça da raça humana. Nas palavras de Engels, “a sociedade burguesa se encontra diante de um dilema: ou avanço para o socialismo ou recaída na barbárie4.

Mas o que os bárbaros tem a ver com isso?

A humanidade passou por diversos períodos de desenvolvimento. Marx e Engels explicam no Manifesto do Partido Comunista vários exemplos dessas fases que são: A barbárie, a escravidão e o feudalismo. “O período de barbárie representa uma parte muito longa da história humana e está dividido em vários períodos mais ou menos diferenciados. Em geral, caracterizou-se pela transição do modo de produção baseado na caça e na coleta, ao pastoreio e à agricultura, isto é, da selvajeria paleolítica, passando pela barbárie neolítica, à barbárie mais elevada da Idade do Bronze, que permanece como o umbral da civilização5.

É possível retornar à barbárie?

Ao aplicar o método do materialismo dialético à história, fica imediatamente claro que a história humana tem suas próprias leis, e que, conseqüentemente, é possível compreendê-la como um processo. A ascensão e a queda de diferentes formações sócio-econômicas podem ser explicadas cientificamente em termos de sua capacidade ou incapacidade de desenvolver os meios de produção e, desse modo, empurrar para frente os horizontes da cultura humana e incrementar o domínio da humanidade sobre a natureza6.

O desenvolvimento da humanidade ocorrido aos milhares de anos representa o progresso, no entanto, ele nunca ocorreu em linha reta. O desenvolvimento das forças produtivas é o fator decisivo no desenvolvimento do ser humano.

O que acontece é que, ao analisar a história, podemos perceber que em alguns momentos a humanidade progrediu e em outros ela regrediu. Marx e Engels colocaram que a luta de classes, no final, ou termina com a vitória total de uma das classes ou na ruína comum das classes em luta.

A queda do Império Romano pode ser explicada dessa forma. Após o colapso de Roma,  nenhuma das classes em disputa triunfou e os bárbaros a superaram. As forças produtivas sofreram uma interrupção violenta.  O que resultado foi a  destruição da civilização e uma regressão da sociedade e do pensamento em mil anos.

O socialismo na ordem do dia

O Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), prestou, hipocritamente, solidariedade ao caso Cláudia e ofereceu apoio psicológico, como se fosse algo que resolvesse o problema. Cabral é, no Rio de Janeiro, o principal responsável pelo que aconteceu com Claudia. A PM, um dos pilares do estado burguês, é responsável. Dilma que mantém as PMs tal qual herdadas da ditadura, as financia e com seu ministro Cardoso, são responsáveis. O que aconteceu com Cláudia não foi um acaso, foi o resultado da política de Estado adotada, portanto os governantes são os responsáveis diretos.

Precisamos nos preparar. Mais atrocidades podem vir a acontecer ainda. O estado de ânimo mudou no Brasil, depois das jornadas de junho do ano passado. Vamos assistir mais manifestações e mais repressão. Veremos a polícia matar mais trabalhadores e sair impune. Veremos o povo indignado nas ruas. Em seu texto publicado recentemente, o dirigente da da Esquerda Marxista, Serge Goulart, conta que “no Brasil, ninguém se engane. O espetáculo repressivo que vai fazer o governo Dilma durante a Copa, em unidade nacional com todos os partidos capitalistas através dos governadores e prefeitos, PMs e Forças Armadas, é apenas uma guerra preparatória para as grandes mobilizações que virão como consequência da continuidade das privatizações, da farra com o dinheiro público e o pagamento da Dívida, com a destruição dos serviços, com os cortes e toda a política de endividamento e agora de austeridade. Os treinamentos feitos pelas tropas brasileiras que invadiram e mantém até hoje a ocupação do Haiti já estão sendo usados nas ruas.  Muito mais virá!7.

No entanto, “o materialismo histórico não nos permite tirar conclusões pessimistas, pelo contrário. A tendência geral da história humana tem sido na direção de um maior desenvolvimento de nosso potencial produtivo e cultural. Os grandes acontecimentos dos últimos cem anos pela primeira vez criaram uma situação em que todos os problemas enfrentados pela humanidade podem ser resolvidos facilmente. O potencial para uma sociedade sem classes já existe em escala mundial. É necessário produzir um plano racional e harmonioso das forças produtivas para que este imenso potencial, praticamente infinito, possa ser realizado8.

Os homens não fazem a história como desejam. Mas são eles próprios que a fazem.

Construir as condições para que a humanidade possa se livrar da barbárie está na ordem do dia. Só a classe operária organizada poderá cumprir com essa grandiosa tarefa. Cláudia da Silva Ferreira é vítima da degeneração do capitalismo. As forças produtivas não se desenvolvem mais e o mundo se vê num impasse. A burguesia está desesperada, não consegue mais raciocinar, o seu regime está em crise. Cada dia está mais evidente que a construção do socialismo é uma necessidade real da humanidade.

Sabemos o quão duro é viver nesses tempos sombrios. Aos que virão ao mundo depois de nós deixamos as palavras do poeta: “que pensem em nós com um pouco de compreensão”.

1 Civilização, barbárie e a visão marxista da história, Alan Woods (2002). (https://www.marxismo.org.br/content/civilizacao-barbarie-e-visao-marxista-da-historia)

2 A Crise da Social-Democracia (Folheto Junius), Rosa Luxemburgo. Capítulo 1: Socialismo ou Barbárie? (http://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1915/junius/cap01.htm)

3 Civilização, barbárie e a visão marxista da história, Alan Woods (2002). (https://www.marxismo.org.br/content/civilizacao-barbarie-e-visao-marxista-da-historia)

4 A Crise da Social-Democracia (Folheto Junius), Rosa Luxemburgo. Capítulo 1: Socialismo ou Barbárie? (http://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1915/junius/cap01.htm)

5 Civilização, barbárie e a visão marxista da história, Alan Woods (2002). (https://www.marxismo.org.br/content/civilizacao-barbarie-e-visao-marxista-da-historia)

6 Civilização, barbárie e a visão marxista da história, Alan Woods (2002). (https://www.marxismo.org.br/content/civilizacao-barbarie-e-visao-marxista-da-historia)

7 Ucrânia! Venezuela! Brasil!, Serge Goulart (2014). (https://www.marxismo.org.br/content/ucrania-venezuela-brasil)

8 Civilização, barbárie e a visão marxista da história, Alan Woods (2002). (https://www.marxismo.org.br/content/civilizacao-barbarie-e-visao-marxista-da-historia)