Brasil: fronteiras abertas

Diante de um mundo cada vez mais interconectado, permeado por ideais universalizantes e pacifistas, certos eventos surgem como paradoxos desta utopia moderna chamada por pensadores contemporâneos de “humanismo cosmopolita”. A Hungria aprovou, semana passada, a construção de um muro de 150 km de extensão em sua fronteira com a vizinha Sérvia, penalizando com até três anos de prisão aqueles que tentarem ultrapassar a muralha. David Cameron, primeiro-ministro britânico, estabeleceu um limite de 20 mil refugiados sírios no prazo de preguiçosos cinco anos para o Reino Unido.

Recebemos este texto de Júlia Magnoli, estudante de relações internacionais da PUC-SP.

Ele coloca de forma articulada a questão histórica dos refugiados e mostra o caráter dos atuais governantes europeus frente a esta tragédia organizada por eles e pelos EUA com sua farta distribuição de guerras, armas e terror pelo mundo. A sua maneira o artigo se posiciona, também, por um mundo sem fronteiras e pela solidariedade humana universal. Nós compartilhamos este sentimento e publicamos o artigo como uma contribuição a um mundo sem guerras, sem fronteiras e sem exploração do homem pelo homem.

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Diante de um mundo cada vez mais interconectado, permeado por ideais universalizantes e pacifistas, certos eventos surgem como paradoxos desta utopia moderna chamada por pensadores contemporâneos de “humanismo cosmopolita”. A Hungria aprovou, semana passada, a construção de um muro de 150 km de extensão em sua fronteira com a vizinha Sérvia, penalizando com até três anos de prisão aqueles que tentarem ultrapassar a muralha. David Cameron, primeiro-ministro britânico, estabeleceu um limite de 20 mil refugiados sírios no prazo de preguiçosos cinco anos para o Reino Unido.

A seletividade moral de alguns países se torna ainda mais gritante quando nos deparamos com dados sobre refúgio ao redor do mundo: de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), 60 milhões de pessoas estão, atualmente, em busca de asilo no exterior. Não devemos confundi-las com os imigrantes, pois os refugiados são enquadrados em um estatuto especial desde 1951, quando a comunidade internacional impôs como dever de todo e qualquer Estado soberano a proteção de indivíduos sob ameaça e/ou perseguição em seus países de origem. Ironicamente, as nações que incluíram o direito ao asilo político na Declaração Universal dos Direitos Humanos são as mesmas que, setenta anos depois, violam o estatuto, enrijecendo vergonhosamente suas fronteiras a ferro e fogo contra famílias que nada têm além da proteção supostamente garantida pelo direito internacional.

Voltemos às estatísticas: em 2014, o ACNUR contabilizou 19 milhões de refugiados. Em pouco mais de um semestre, esse contingente foi assustadoramente triplicado, atingindo os já citados 60 milhões em setembro de 2015. Essa cifra, quando materializada em homens, mulheres e crianças (51% são menores de 18 anos), representa a maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. A diferença é que, agora, os conflitos estão espalhados pelo globo em forma de guerras civis que agravam situações catastróficas em nações já subdesenvolvidas e pobres, e não mais no círculo primeiro-mundista. O resultado? Estima-se que mais de 400 mil pessoas migraram rumo à União Europeia em 2015 em busca de asilo.

Do Atlântico para cá, a crise é, de fato, apenas uma “marolinha”. Devido à distância e aos custos da viagem, pouco mais de 8 mil refugiados vieram ao Brasil em 2015 (e apenas 11 mil pedidos de asilo estão em curso atualmente) – números insignificantes quando comparados ao tamanho e à população total do país. Os sírios compõem a maioria dos asilados, seguidos de angolanos, colombianos, congoleses e libaneses. Os haitianos, porém, não se enquadram no estatuto dos refugiados por não sofrerem nenhum tipo de perseguição política, religiosa ou étnica no Haiti, sendo “apenas” imigrantes econômicos em busca de melhores condições de vida.

Independentemente do país de origem ou do enquadramento legal das pessoas que vêem no Brasil um porto-seguro, devemos enxergá-las como seres humanos, que, assim como nós, buscam as melhores condições para viver de forma honesta e pacífica. Sírios, angolanos, haitianos, colombianos etc são apenas a releitura do século XXI para os milhares de italianos, portugueses, japoneses e africanos que formaram o Brasil contemporâneo no início do século passado. Fluxos migratórios são um fenômeno cultural “natural” (sim, uma contradição em termos, mas a mais pura verdade): todos os países, em todas as épocas, experimentaram a entrada de estrangeiros, ganhando uma enorme diversidade cultural, religiosa e étnica que deveria ser celebrada e estimulada, pois sinaliza uma nação tolerante e democrática.

Victor Orbán, primeiro-ministro húngaro, ao contrário, sinaliza ignorância histórica ao rejeitar o apelo dos refugiados e pressionar a União Europeia em favor da “pureza da raça”, argumento anacrônico e nazista. O Brasil pode agir diferente, dando uma lição de progresso e consciência humanitária à comunidade internacional. Para isso, é necessário continuar o que já está sendo feito e concentrar ainda mais esforços na acomodação dos imigrantes e refugiados. A medida do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) que simplifica a liberação de vistos para famílias refugiadas sírias, por exemplo, é um grande começo – no entanto, deveria ser ampliada para outras nacionalidades também.

As fronteiras milimetricamente definidas, surgidas com o advento do Estado moderno, cumprem a função de delimitar a área de soberania do governo estabelecido em um dado território – ou seja, um papel jurídico e organizacional. A dignidade humana, imune à tais arbitrariedades, sempre buscará sua manutenção e propagação, seja de um lado ou de outro da fronteira. Colocar os princípios legais do Estado-nação (como a divisão territorial) acima do princípio inalienável do respeito à vida humana, em pleno século XXI, seria uma barbárie draconiana. É por isso que o Brasil deve agir imediatamente, abrindo suas fronteiras para todos aqueles que procuram nada além de dignidade, respeito e paz.