Atas do Congresso que deu origem ao Bolchevismo e ao Menchevismo

Numa importante entrevista, Ruy Penna, organizador e tradutor do livro lançado pela Editora Marxista Ltda, em 2014, “Atas do 2º Congresso do POSDR”, explica a importancia e atualidade deste livro até hoje inédito em português. A entrevista foi concedida à revista “Leituras da História” e publicada na edição 77, de 2014.

As deformações e falsificações sobre este Congresso são inúmeras. Os primeiros a tentar esconder a verdade foram os stalinistas que após uma política burocratica violenta, seguida de um zig-zag ultraesquerdista, se passam com tudo para a política menchevique de colaboração e apoio à burguesia e aos regimes capitalistas.

Este livro, portanto, é um elemento muito importante no restabelecimento da verdade histórica assim como no combate à regressão teórica e política impostos à classe operária pelo stalinismo e seus irmãos-inimigos, os socialdemocratas.

Leituras da História – Qual a importância do livro que o senhor traduziu para os dias de hoje, em termos de organização de massa e enfrentamento do sistema vigente?

Ruy Penna: Esse livro é o registro direto dos debates que aconteceram no congresso do POSDR em 1903. Não sendo uma interpretação desse ou daquele autor, o próprio leitor pode considerá-lo como uma janela aberta no tempo. A sua importância histórica refere-se ao surgimento no POSDR das duas correntes políticas, os mencheviques e os bolcheviques, que ao longo do caminho que desemboca na Revolução Russa de 1917 vão adotar métodos e estratégias muito diferentes. Nos momentos decisivos, o Partido Bolchevique mostrou ser o instrumento sem o qual a classe trabalhadora não teria completado a revolução no plano nacional.

Para Lenin, o principal dirigente bolchevique, a revolução socialista só pode triunfar dispondo de uma força organizada que seja a expressão consciente do movimento político da classe trabalhadora. A construção dessa força organizada não pode ser um resultado espontâneo da experiência nua e crua dos acontecimentos. Ela depende da experiência histórica acumulada e condensada na teoria. Uma das divergências fundamentais entre mencheviques e bolcheviques encontra-se no que Lenin chamou de “culto da espontaneidade”, expressão com a qual ele caracterizava a posição dos mencheviques.

A ideologia dominante, sustentada com um exército de intelectuais, burocratas e variados meios de propaganda, exerce uma enorme pressão sobre qualquer indivíduo que nasce e vive em uma sociedade de classes. Espontaneamente, ou seja, sem a consciência teórica do processo histórico real, nós pensamos e agimos dentro dos limites da ideologia dominante. O que Lenin chamava de “espírito de partido” ou de “centralismo democrático” – em contraste com a mentalidade de pequenos círculos que agem isoladamente uns dos outros – é o único método prático pelo qual a teoria pode transformar-se na força organizada capaz de romper esses limites.

As revoluções explodem porque as contradições e a crise do capital causam guerras, desemprego, privações intoleráveis, aumento da exploração do trabalhador, e assim por diante.

A iniciativa revolucionária das massas é espontânea no sentido de que ela não depende de uma consciência teórica do processo histórico real. Ao mesmo tempo, ela é a manifestação de um aprendizado, de uma consciência que nasce diretamente da crise do sistema, do mal estar generalizado que essa crise provoca. Vimos isso recentemente no Egito. As massas derrubaram a ditadura de Mubarak. Depois derrubaram o governo reacionário de Morsi. O mesmo aconteceu em fevereiro de 1917 na Rússia. Se existisse um Partido Bolchevique no Egito, sem dúvida teríamos assistido a um novo outubro, no qual a revolução teria um desfecho vitorioso para a classe trabalhadora.

LH – Em algum momento da História da Humanidade, a emancipação da classe trabalhadora foi obra dos próprios trabalhadores?

Ruy Penna – No Manifesto Comunista, Marx e Engels afirmaram que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. A luta de classes não teria uma importância tão crucial em nossos dias se a emancipação fosse possível apenas dando uma face “mais humana” ao capitalismo. Pelo contrário, a contradição entre a propriedade privada e as forças produtivas chegou a um patamar tão avançado que a luta dos trabalhadores por sua emancipação é inseparável da luta contra todas as formas de barbárie geradas pela decadência do sistema capitalista.

A base material para a emancipação da classe trabalhadora é a economia planejada das forças produtivas em escala mundial, o que significa que a revolução socialista é um processo desigual e combinado, no plano nacional e internacional, que passa por uma série de momentos históricos. A Comuna de Paris e a Revolução Russa de 1917 são momentos desse processo, entre muitos outros, que demonstram a disposição e a capacidade da classe trabalhadora para lutar por sua emancipação.

O que o marxismo explica é que as contradições do capital levam os trabalhadores a tomar o seu destino em suas próprias mãos. Portanto, a emancipação dos trabalhadores coloca, inevitavelmente, a questão da tomada do poder político e do controle dos meios de produção pelos produtores associados. Com a concentração do capital em grandes monopólios, o próprio capitalismo transforma cada vez mais a propriedade privada dos meios de produção num interesse que só diz respeito a uma pequena minoria da população. É por essa razão que a juventude nos Estados Unidos lançou o seu grito de revolta: “nós somos os 99% !!”.

LH – Embora o contexto seja totalmente diferente, da Revolução Bolchevique, dá para dizer que a massa só se organiza e tenta se rebelar diante de fatores econômicos (como a falta de alimentos, aumento excessivo dos preços, desemprego etc.), que minimizam unicamente suas chances de sobrevivência?

Ruy Penna – O “economicismo” é uma das formas mais influentes da ideologia burguesa no movimento político da classe trabalhadora. Ele procura conter o movimento dentro dos limites da compra e venda da força de trabalho, e defende a ideia de que o interesse real da classe trabalhadora, a sua consciência política, não ultrapassa esses limites ou somente o fará – espontaneamente – em uma etapa posterior. Isso faz parte do “culto da espontaneidade” mencionado por Lenin.

Os mencheviques não compreenderam a necessidade de lutar contra o economicismo dentro do movimento operário, e em 1903 recusaram a análise de Lenin sobre a “questão das relações entre o consciente e o espontâneo”, que tratava da necessidade de articular a mobilização das massas com uma perspectiva baseada na história da luta de classes. O Partido Bolchevique realizou essa articulação.

As contradições da vida real não respeitaram as ilusões que os mencheviques recusaram-se a combater. A crise dos “fatores econômicos” concentra-se em crises políticas que colocam na ordem do dia a questão do poder. E essa concentração da economia na política produz circunstâncias que fazem a consciência das massas avançar aos saltos.

Em 1917, quando a consciência das massas deu um salto histórico, a situação de duplo poder (governo provisório e os sovietes) tinha que ser resolvida, não podia continuar indefinidamente. Os mencheviques ficaram atados à contrarrevolução. O processo histórico real havia desobedecido o seu esquema de etapas que evoluiria espontaneamente, mas sempre num futuro indefinido, para o socialismo.

LH – Se por um lado a Revolução Bolchevique tem quase um século e por outro o capitalismo sempre se mostrou instável por natureza, nos dias atuais qualquer revolta espontanêa de trabalhadores já surge fadada ao fracasso devido a influência das classes dominantes?

Ruy Penna – A Revolução Russa de 1917 teve uma repercussão imensa e ainda continua reverberando em nossos dias. Por uma série de circunstâncias históricas, a revolução foi derrotada nos países capitalistas mais avançados daquela época, especialmente na Alemanha, país no qual o Partido Socialdemocrata era um partido de massas, porém compartilhava a mesma política dos mencheviques. A revolução ficou isolada na Rússia, e por essa razão sofreu uma degeneração burocrática.

Mas a influência das classes dominantes, inclusive a influência dos dirigentes operários atrelados aos interesses da burguesia, não é de modo algum invencível. As relações de produção capitalistas tornaram-se um freio absoluto ao desenvolvimento das forças produtivas. A crise iniciada em 2008 não é apenas uma crise do setor financeiro, mas sim uma crise orgânica do estágio monopolista e imperialista do capitalismo. Ela é uma crise da época de decadência do capitalismo, e isso aparece cada vez mais no profundo descrédito das instituições burguesas e de todos os partidos que sustentam o capitalismo. Veja a Espanha, a Grécia, a Itália, Portugal, etc., em plena Europa isto é visível dentro de uma das principais “vitrines” do capitalismo!!

Portanto, muito longe de estar condenada ao fracasso, “qualquer revolta espontânea de trabalhadores” terá cada vez mais condições objetivas de alcançar um resultado vitorioso. Mas existe uma condição, e a leitura do livro 1903 ajuda a compreender essa condição.

A questão decisiva da nossa época, como Trotsky explicou com tanta argúcia, é a crise de direção do proletariado. A articulação orgânica entre a perspectiva histórica da luta de classes e a mobilização das massas precisa ser reconstruída. O leitor deste livro será capaz de reconhecer que a bandeira dessa reconstrução é a mesma bandeira erguida vitoriosamente pelo Partido Bolchevique.

LH – Na apresentação do livro que o senhor traduziu, ao falar do Partido dos Trabalhadores, o senhor diz que, apesar das tentativas de implantar um programa revolucionário nele, o que prevalece na direção é a influência dos aparelhos da burguesia. Tal situação explicaria os demandos, as falcatruas e trocas de favores em que se envolveram os antigos revolucionários que lutaram contra o governo militar brasileiro na década de 1960?

Ruy Penna – A história do PT é um exemplo da afirmação de Lenin: “sem teoria revolucionária, não há prática revolucionária”. Em outras palavras, não é possível manter uma política de independência de classe se a direção e o programa do partido não articulam a luta por reformas com a necessidade de uma mudança revolucionária. Na luta de classes não existe uma “terceira via”. A crise do capital, inclusive nos países avançados, empurra a burguesia para o confronto, coloca na “ordem do dia” o ataque às reformas com a redução dos gastos sociais, o desemprego e o arrocho salarial.

A colaboração de classes – a política oficial do PT desde a conferência nacional do partido em 1988 – provoca a divisão e enfraquece a mobilização dos trabalhadores, e joga a pequena-burguesia nos braços da direita mais reacionária. Os dirigentes do PT, presos na armadilha de um reformismo sem reformas, praticam a política dos mencheviques levada às suas últimas consequências. Surpreendidos pelas manifestações de massas, tal como em junho de 2013, eles estão dispostos a promover a mais dura repressão.

A burguesia, em vez de ficar satisfeita com os serviços prestados pelos dirigentes do PT, está bem mais consciente do que eles sobre a crise econômica e política do seu sistema. Ela começa a desconfiar que esses dirigentes estão perdendo a capacidade de dar conta do seu recado. Se esses dirigentes não conseguem mais controlar e conter a mobilização das massas, torna-se necessário atacar as próprias organizações que tem raízes na classe trabalhadora. A burguesia não perdeu tempo e vem promovendo uma vasta campanha de criminalização de tudo o que possa refletir as pressões da classe trabalhadora. A farsa jurídica do “mensalão”, que faz parte dessa campanha, encontrou um ambiente favorável criado pela própria política de colaboração de classes.

LH – O senhor também diz que, que em nenhum país do mundo – do Egito à Grécia, da Espanha ao Brasil – as mobilizações se voltaram para as organizações tradicionais. Isso realmente se aplica ao nosso país, onde, há mais de um ano, o povo foi as ruas para exigir mudanças com um furor extraordinário, mas que rapidamente dissolveu-se, inclusive em sua intenção inicial, como confirmam os resultados do primeiro turno da últimas eleições pelas quais passamos?

Ruy Penna – A luta de classes reflete-se parcialmente no resultado das eleições, e esse resultado aparece de um modo distorcido. Se incluirmos na análise a soma dos votos nulos e em branco, e também das abstenções, vemos claramente – comparando com as eleições anteriores – que os votos perdidos pelo PT aumentaram aquela soma, mas não migraram para o PSDB nem para os outros partidos burgueses. Não aconteceu, portanto, nenhuma guinada para a direita, ao contrário do que afirmam a midia e a maioria dos analistas.

O resultado das eleições, em vez de mostrar a dissolução do impulso das manifestações de 2013, não somente mostra que ele persiste mas também confirma a característica mencionada em sua pergunta: o furor das massas está correndo por fora das suas organizações tradicionais. O PT sofreu uma derrota no primeiro turno destas eleições, e recebeu a seguinte mensagem das massas: se continuar tentando nos enganar com esse reformismo sem reformas, a sua política de colaboração de classes levará o partido ao naufrágio.

Veja o caso do colapso quase total do PASOK, na Grécia, e também do PSOE, na Espanha, o PCI e depois o PRC na Itália, etc. Os dirigentes das organizações de massa – partidos e sindicatos – transformaram-se nos profissionais da inércia, agarrados com unhas e dentes à política de colaboração de classes, e tão temerosos da mobilização das massas quanto a burguesia. A inércia e a burocratização destas organizações é tão profunda que as massas começam a entrar em cena sem direção, como se essas organizações não existissem.

LH – No caso dos brasileiros ainda, qual a possibilidade da criação de um partido pelo menos parcialmente revolucionário?

Ruy Penna – A crise do capital aumenta o potencial explosivo da luta de classes. Mais cedo ou mais tarde, apesar da sua absoluta inércia política e, ao mesmo tempo, por causa dela, as organizações de massa serão atingidas pelo impacto da mobilização da classe trabalhadora. Esse mesmo processo, em circunstâncias diferentes, pode tomar rumos diferentes. As organizações tradicionais podem entrar em colapso, sendo substituídas por novas organizações – como o SYRIZA na Grécia – ou podem surgir em seu interior tendências com ampla base social e capazes de romper com as direções atuais.

As novas direções serão testadas pela classe trabalhadora, uma após a outra, e serão novamente descartadas se a “experiência nua e crua dos acontecimentos” mostrar que, no final das contas, elas são apenas uma nova versão do velho menchevismo.

A situação econômica e política é muito instável. Erupções violentas podem colocar no poder executivo direções “parcialmente revolucionárias”, até mesmo capazes de impor ao capital algumas derrotas dolorosas apoiando-se no entusiasmo das massas, como vemos no processo em curso na Venezuela. Mas uma revolução não pode ficar no meio do caminho. Conservando em suas mãos as alavancas da economia e os meios de comunicação, a burguesia travará uma guerra econômica e ideológica, buscando solapar o ânimo revolucionário das massas, e preparando o terreno para a contrarrevolução golpista ou “democrática”.

Toda a experiência histórica da luta de classes demonstra que, qualquer que seja o rumo particular dos acontecimentos, o elemento decisivo para a vitória da classe trabalhadora é a presença de uma organização verdadeiramente revolucionária, um partido bolchevique.

LH – Por último, quais suas considerações finais tanto sobre o livro traduzido quanto sobre a situação que vivemos na atualidade e que se estende por vários paises do planeta?

Ruy Penna – O livro 1903 é um documento histórico que trata de questões que permanecem tão decisivas para nós quanto naqueles dias, ainda que em circunstâncias muito diferentes. Contra o bolchevismo, a burguesia coloca em operação toda a sua máquina de propaganda. A leitura deste livro permite compreender que o sentido histórico do bolchevismo é o caráter consciente da revolução socialista.

Ao contrário das revoluções burguesas do passado que, para arregimentar as massas e chegar ao poder, disfarçavam seus interesses particulares em interesses universais, a revolução socialista só pode realizar-se com base na consciência do processo histórico real, e não pode realizar-se sem traduzir essa consciência em força organizada das massas.

A juventude mais combativa da classe trabalhadora tomará em suas mãos o marxismo revolucionário. Ela será a espinha dorsal para a construção de uma Internacional Revolucionária que dará um basta na crise de direção do proletariado.