Antropofagia: a arte como pensamento revolucionário (Nossa homenagem a Oswald de Andrade)

Mais do que uma arte nacional ou regional, a Antropofagia propunha-se a uma universalidade internacionalista, a fundir as riquezas culturais, brasileira e do resto do mundo, na produção de uma obra nova e singular

O manifesto antropofágico, escrito por Oswald de Andrade em colaboração com Mário de Andrade e Raul Bopp em 1928, foi o marco inicial de uma nova poética artística, a Antropofagia. Nela buscou-se fundar uma escola artística brasileira que fugisse da mera reprodução de modelos importados, sem afundar em chauvinismo que negasse o diálogo com o que havia de relevante na produção cultural do resto do mundo e sem abdicar de uma crítica social e política.

Mais do que uma arte nacional ou regional, a Antropofagia propunha-se a uma universalidade internacionalista, a fundir as riquezas culturais, brasileira e do resto do mundo, na produção de uma obra nova e singular. O nome foi adotado em referência aos antigos rituais indígenas onde os mais valorosos guerreiros capturados eram literalmente devorados pela tribo vencedora, na pretensão de assimilar suas melhores qualidades, devorando-os. Assimilar as melhores qualidades de toda a arte, mesmo aquela produzida pela classe inimiga, era a sua pretensão.

A Antropofagia desafiava outras correntes vindas do modernismo brasileiro, como o nacionalismo metafísico de Graça Aranha e o nacionalismo prático verde-amarelo do grupo Anta, de Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado (o fundador da Ação Integralista Brasileira, o movimento nacionalista, anticomunista e antiliberal, sob o lema “Deus, pátria e família”).

Ela surge em resposta às antas, contra seu chauvinismo nacionalista, que não colocava recorte de classe ao propor-se a expropriar na arte a riqueza cultural popular brasileira para os artistas burgueses, através da chamada propriedade intelectual.

Oswald radicaliza seu giro à esquerda a partir da crise de 29 e suas conseqüências materiais à economia do estado paulista produtor de café. Uniu-se com Patrícia Galvão (Pagu) em 1930 e com ela editou o jornal “O Homem do Povo”, do PC, onde engajou-se a partir de 1931, após encontro com Luis Carlos Prestes em Montevidéu.

No prefácio de seu livro “Serafim Ponte Grande”, de 1933, declarou ter sido palhaço da burguesia, com Emílio de Menezes e Blaise Cendras, ao passar pela experiência de vanguarda por conta de uma inquietude pouco clara, onde ignorava a origem social e o fundo político dessas inquietações. Nem por isso rendeu-se ao panfletarismo fácil e infantil do dirigismo dos PCs aos artistas, essa verdadeira burocracia reivindicando-se arte que foi o “realismo socialista”.

Autor de obra considerada por vezes difícil, citava o compositor austríaco Arnold Schöenberg: “a massa ainda vai consumir o biscoito fino que eu fabrico”, entendendo que o problema não é o conteúdo mais ou menos explícito e objetivo da arte para torná-la mais didática ou acessível, mas a apropriação das riquezas culturais, tanto quanto das riquezas materiais, na sociedade capitalista.

Na sociedade capitalista, tudo que é produzido como obra social pela colaboração de muitos é sempre expropriada por poucos indivíduos, que mantém esse estado de coisas seja pela coerção ideológica em momentos de paz social, seja pela violência física franca e aberta, nos momentos do acirramento da luta de classes. A recusa em rebaixar a própria arte é o entendimento que o rebaixamento das condições materiais dos trabalhadores e de sua educação e cultura é interesse da classe dominante, não da classe trabalhadora. Reduzir sua criação artística pensando produzir para os trabalhadores é uma arrogância intelectual de quem não entende que os potenciais humanos mais elevados não se realizam por incapacidade nessa sociedade, mas pelas condições materiais dadas.

Romperia com Pagu, na vida comum como na política: ela se aproximaria de Mario Pedrosa e realizaria a crítica da burocratização e degeneração do estado operário soviético. Oswald realizaria a crítica a essa degeneração na tese “A Crise da Filosofia Messiânica”, em 1950, sem reconhecer a teoria do socialismo em um só país como um prognóstico messiânico e idealista, não marxista, sem base material real que conduziria, como de fato conduziu a U.R.S.S. à ‘restauração capitalista’ caso não houvesse uma reorientação internacionalista da revolução.

Limitou sua crítica à necessidade de maior democracia interna, coerente, mas insuficiente. Porque a evolução crescente e permanente das conquistas revolucionárias dependerá sempre da construção internacional com laços que permitam que as economias deixem de produzir lucros para uma classe parasitária, mas sejam reorientadas no interesse e necessidades sociais do conjunto da humanidade.

Nesse momento histórico de convulsão social e econômica e vagas revolucionárias pelo mundo, lembramos que não é a arte, mas os seres humanos concretos que intervém na história e a modificam. Nem por isso a arte, riqueza material e imaterial da humanidade, deve ser menosprezada. Sua apropriação realmente democrática, na fruição ou na produção, é uma tarefa que apenas a revolução socialista poderá colocar na ordem do dia.

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