Aleppo, Mosul e a hipocrisia imperialista

Há um ditado que diz que há mentiras, mentiras detestáveis e estatísticas. A esta lista devemos adicionar a diplomacia, que eleva a mentira ao nível de uma forma de arte.

A diplomacia faz parte da guerra e é o equivalente político da guerra. O objetivo da diplomacia é esconder dos cidadãos de um determinado estado os reais objetivos da guerra e culpar o outro lado por todos os seus horrores e crimes.

Estamos vendo isto se expressar agora em condições de laboratório no clamor atual sobre Aleppo. Dia após dia, o público ocidental é submetido a uma constante barragem de histórias de horror sobre o bombardeio deliberado de hospitais e comboios de ajuda, com imagens desgarradoras de crianças feridas e de cadáveres de civis enterrados nos escombros.

É natural que essas imagens despertem profundos sentimentos de horror e repulsa em qualquer pessoa com sentimentos humanos normais. Mas estes sentimentos podem ser facilmente manipulados pelos experts do ramo da formação da opinião pública, de acordo com certos interesses. É dever dos marxistas desfazer a névoa da propaganda para expor sua natureza cínica e desnudar os reais interesses que estão por trás dela.

O blefe e a arrogância de Boris

Em um debate de emergência na Câmara dos Comuns, Boris Johnson, o bobo da corte oficial do Partido Conservador, disse que gostaria de ver protestos em frente à embaixada russa contra o bombardeio de alvos civis em Aleppo. Cabe perguntar por que ele nunca convocou protestos em frente à embaixada da Arábia Saudita contra o bombardeio de alvos civis, incluindo escolas e hospitais, no Iémen.

Em sua diatribe contra a Rússia, o Ministro do Exterior Britânico advertiu que ela corria o risco de se converter em um estado “pária”. Ele assegurou à Câmara que o governo do Reino Unido estava “tomando a dianteira” em relação à Síria. Parece estranho, então, o fato de ele não explicar por que tal protagonista não foi convidado às conversações sobre a Síria em Lausanne, Suíça, que deviam ocorrer no fim da semana seguinte.

É ainda mais estranho que o estado “pária” russo não somente foi convidado à Lausanne, como também desempenhou um papel muito importante nos preparativos da reunião. Este pequeno detalhe diz-nos mais que uma dúzia de discursos de Boris Johnson. Apesar das absurdas pretensões de seu governo, a Grã-Bretanha não é mais capaz de desempenhar um papel de liderança na política mundial e, depois do Brexit, é ainda menos relevante aos olhos de Washington.

A nomeação de um bufão como Ministro do Exterior foi a cereja do bolo do prestígio declinante da Grã-Bretanha no mundo. Por não terem podido convidar a Grã-Bretanha ou a União Europeia à mesa de conferências onde todas as decisões importantes foram tomadas, os estadunidenses, pelo menos, tiveram a delicadeza de vir à Londres para dizer aos britânicos e aos outros europeus o que tinham decidido em sua ausência.

Estacionado tão próximo do Secretário de Estado estadunidense quanto permitia a decência humana, Boris Johnson parecia um mordomo cheio de respeito à espera da ordem para servir ao seu mestre o seu chá vespertino. Durante todo o tempo em que Kerry falou, o Ministro do Exterior Britânico balançava a cabeça em concordância total, fingindo não perceber que cada palavra que Kerry pronunciava era um pontapé direto na parte mais sensível de sua anatomia.

Rejeitando a reivindicação de uma intervenção militar na Síria, Kerry comentou acidamente: “Não vejo um grande apetite na Europa para as pessoas irem à guerra. Não vejo os parlamentos dos países europeus prontos para declarar a guerra; não vejo uma grande quantidade de países decidindo que esta é a melhor solução para este problema”.

Em um mal dissimulado rechaço ao homem parado junto dele, Kerry acrescentou: “É fácil dizer onde está a ação, mas qual é a ação? Vejo uma grande quantidade de pessoas que têm muitos problemas para definir isto”. E concluiu: “estamos perseverando na diplomacia porque são estas as ferramentas de que dispomos”.

A expressão no rosto de Boris era a de uma luta dolorosa entre o respeito obsequioso e um sorriso estúpido. Parecia um cão poodle agitando o rabo na presença de seu dono, e é esta a natureza precisa das chamadas relações especiais entre a Grã-Bretanha e os EUA.

Quem é o responsável?

De forma alguma é nossa intenção justificar Vladimir Putin, que representa os interesses da oligarquia capitalista russa e não os do povo russo, da classe trabalhadora ou do povo da Síria. Como seus pares no Ocidente, os líderes russos agem na política internacional a partir do ponto de vista de seus próprios interesses egoístas.

Contudo, devemos assinalar que não foram os russos que lançaram o Oriente Médio no caos sangrento. A atual catástrofe é o resultado direto de um ato brutal de agressão organizado por um presidente estadunidense e um primeiro-ministro britânico que repetidamente alimentaram o público com um pacote de mentiras. Se estamos a falar de atos atrozes, de assassinatos em massa, de bombardeios deliberados de hospitais e escolas, de tortura de prisioneiros e da matança de crianças, as primeiras pessoas que deveriam ser levadas a um tribunal internacional seriam George W. Bush e Tony Blair.

Os meios de comunicação de massa e os governos que os manipulam deram todos os passos necessários para levantar uma espessa cortina sobre estes crimes e se concentrar no tema mais interessante da brutalidade do homem do Kremlin. A propaganda estridente contra a Rússia proporcionou a desculpa perfeita para enterrar a já obstruída investigação Chilcot e desviar a atenção das ações criminosas da Grã-Bretanha e dos EUA, que, em primeiro lugar, causaram esta desordem.

Como os criminosos que usam luvas antes de cometer um roubo ou um assassinato, os que organizam os atos mais vergonhosos de agressão apresentam-se como campeões da paz, do humanismo e da democracia. Um excelente exemplo disto é o clamor sobre Aleppo. Os estadunidenses e os russos acordaram um cessar-fogo que supostamente permitiria o fluxo livre de ajuda humanitária a certo número de cidades cercadas na Síria, incluindo Aleppo. Mas este cessar-fogo foi anulado em poucos dias. O Ocidente imediatamente acusou a Rússia e seus aliados sírios. Quais são os fatos?

A primeira condição do acordo era que os estadunidenses exerceriam pressão sobre a chamada oposição moderada síria para se distanciarem dos jihadistas. Mas isto era impossível, uma vez que as únicas forças efetivas que lutam contra o governo de Assad são os grupos jihadistas como Al Nusra (que recentemente trocou de nome para Jabhat Fatah Al Sham). A oposição moderada é militarmente insignificante e inteiramente dependente dos jihadistas, sem os quais entrariam em colapso imediatamente.

Não é nenhum segredo que Jabhat Al Sham está ligado à Al Qaeda e tem exatamente a mesma ideologia e métodos reacionários de ISIS. De fato, ele foi criado por ISIS no início da guerra para assegurar uma participação no fluxo de apoio estadunidense de homens e dinheiro na Síria. As linhas de divisão entre ISIS e Al Nusra são extremamente vagas. Em termos ideológicos, ninguém pode dizer onde Jabhat Fatah Al Sham termina e ISIS começa. Ainda mais, a distinção entre a chamada oposição “moderada” e os extremistas islâmicos é uma ficção.

Al Nusra é apoiado pela Turquia e pelos Estados do Golfo (particularmente pela Arábia Saudita e Qatar), que lhe fornecem armas e fundos ilimitados. Ademais, as armas sofisticadas que os EUA forneceram aos pequenos grupos apoiados por eles não são mais que uma tênue cobertura de apoio aos jihadistas. Eles operam como pequenos grupos dentro do guarda-chuva das grandes organizações jihadistas que poderiam esmagá-los no momento em que desejarem. Muito frequentemente, a perda de apoio dos EUA por estes grupos apenas significa que eles se reintegraram nas organizações jihadistas.

Sergey Lavrov, ministro do exterior da Rússia, explicou o fracasso do cessar-fogo como segue:

“A primeira obrigação prevista pelo acordo era separar os terroristas da oposição moderada com quem a coalizão dos EUA trabalha. Esta disposição ainda não foi cumprida apesar de que, em fevereiro de 2016, eles disseram que poderiam fazer isto em duas semanas ou menos.

“A obrigação de desbloquear a Estrada de Castello para proporcionar acesso seguro à ajuda humanitária para Aleppo Oriental foi estabelecida em grandes detalhes no acordo Rússia-EUA, incluindo a especificação de distâncias para o recuo das tropas governamentais e das forças da oposição. Novamente, os EUA disseram que eram incapazes de honrar esta obrigação porque a oposição não os ouvia. E existem muitos outros exemplos como este (ênfase minha, AW).

“Parece que é pela simples razão de que os EUA foram incapazes de cumprir seus compromissos relativos ao recuo de forças ao longo da Estrada de Castello que eles decidiram se retirar deste acordo ou suspendê-lo, senão fechar a porta sobre ele. Eles escolheram apresentar a situação de forma diferente. De fato, havia uma razão específica por trás desse fracasso: comprometiam-se com a obrigação de fazer a oposição recuar mil e quinhentos metros.

“As tropas do governo estavam se retirando, mas a oposição tratou imediatamente de se apoderar do território evacuado. No entanto, em vez de admitir a causa específica que resultou no fracasso dos acordos, os EUA optaram por uma explicação abstrata. Argumentaram que a Rússia não estava disposta a dar um fim às hostilidades que infligem sofrimento aos civis. Estamos acostumados a este tipo de retórica, portanto continuamos trabalhando nisto”.

A relutância de Lavrov também parece coincidir estreitamente com os acontecimentos observáveis. A televisão ocidental mostrou cenas de uma suposta ofensiva de forças rebeldes (durante o cessar-fogo) que aparentemente foi bem-sucedida em ocupar uma área que estava sob o controle do exército sírio. De fato, o exército sírio estava se retirando desta área sob os termos do cessar-fogo. Os rebeldes, que não tinham a menor intenção de observar o cessar-fogo, aproveitaram-se da situação para apoderar-se do território que, pouco depois, foi recuperado pelo exército sírio. Desta matéria-prima são feitos os mitos e lendas da propaganda.

Naturalmente, Lavrov e Putin têm seu próprio interesse pessoal, e ninguém está obrigado a aceitar esta versão dos fatos. Mas várias coisas estão claras. Primeiramente, todos sabem que os rebeldes estavam determinados desde o início a sabotar o cessar-fogo. Eles desejavam desesperadamente evitar uma situação em que os estadunidenses e russos pudessem entrar em acordo para lançar uma campanha efetiva contra os jihadistas.

Por este motivo, os rebeldes deixaram claro desde o início o que podiam e o que não podiam observar do cessar-fogo. Os “moderados” não estavam dispostos e eram incapazes de romper com os jihadistas e os estadunidenses não estavam preparados para romper com os aliados “moderados”. Esta é a razão real por que o cessar-fogo entrou em colapso. Na verdade, ele morreu antes de nascer.

O cessar-fogo recebeu um golpe mortal quando os estadunidenses bombardearam o exército sírio matando mais de 100 soldados que lutavam contra ISIS no entorno da cidade cercada de Deir Ezzour, que necessita extremamente de assistência. O ataque às unidades do exército sírio através de aviões de guerra das forças da coalizão liderada pelos EUA foi uma clara provocação que evidentemente fazia parte de um plano para romper o cessar-fogo.

A explicação dada pelos estadunidenses de que foi um “erro” é simplesmente absurda. Os estadunidenses e seus aliados possuem os instrumentos mais sofisticados de vigilância, é simplesmente inacreditável que pudessem confundir as unidades do exército sírio com os rebeldes. Os russos dizem que têm evidências de que este ataque foi planejado de antemão, e não temos nenhuma dúvida de que este foi, de fato, o caso.

Escudos humanos em Aleppo e Mosul

Os russos fizeram uma oferta para estabelecer um corredor que permitisse a saída segura de Aleppo, não somente aos civis como também aos combatentes – mesmo armados. O Canal 4 de Notícias, que se inclina fortemente para o lado da oposição, admitiu que este mesmo método foi utilizado em muitas áreas. Se não foi utilizado em Aleppo é simplesmente porque os rebeldes não aceitaram a oferta.

Isto significa que um pequeno grupo de jihadistas fanáticos está mantendo a população de Aleppo Oriental como reféns, usando-a de fato como escudos humanos diante dos ataques do regime e seus aliados russos. Estão tentando usar a carnificina resultante como propaganda para angariar apoio a sua causa. O destino dos civis de Aleppo é de pouca ou nenhuma importância para eles.

O enviado das Nações Unidos à Síria, Staffan de Mistura, ofereceu-se pessoalmente para acompanhar os aproximadamente 900 combatentes da Al Nusra para fora de Aleppo para eliminar o pretexto da Rússia de bombardear a cidade. Os russos concordaram imediatamente, mas os rebeldes não. De fato, vários corredores que já tinham sido estabelecidos para os civis transitarem a Aleppo Ocidental, controlada pelo governo, foram fechados pelos rebeldes, que atacaram os civis que tratavam de deixar a área.

A hipocrisia ocidental encontra-se claramente exposta quando comparamos a atitude da mídia em relação a Aleppo com sua cobertura da recente ofensiva para retomar a cidade de Mosul, no Iraque. Tem-se a nítida impressão de que esta ofensiva foi concebida como um meio de compensar o Ocidente pela perda iminente de Aleppo.

De acordo com os informes da mídia, uma coalizão composta pelo exército iraquiano, forças curdas e milícias xiitas está em constante avanço nesta cidade, apoiada por ataques aéreos realizados pela coalizão liderada pelos EUA. Dizem que a queda de Mosul é inevitável. No entanto, estes informes são, sem dúvida, excessivamente otimistas. As forças de ISIS tiveram muitos meses para fortificar suas defesas e os atacantes encontrarão furiosa resistência à medida em que se aproximarem da cidade. A verdadeira batalha por Mosul ainda não começou.

Mosul tem um milhão e meio de habitantes, em comparação aos mais ou menos 200 mil habitantes de Aleppo Oriental. Para tomá-la, as forças atacantes terão de submeter a cidade a um intenso bombardeio por ar e terra. Apesar de todas as declarações sobre “bombas inteligentes”, o fato é que todo bombardeio é indiscriminado e leva inevitavelmente à morte de civis. A escala da matança em Mosul fará com que o derramamento de sangue em Aleppo empalideça de insignificância. As Nações Unidas já estão advertindo sobre um desastre humanitário em escala sem precedentes.

Que meios as forças da coalizão propõem para evitar a morte de civis em Mosul? No caso de Aleppo, os russos ofereceram proporcionar uma rota de escape para os civis e até mesmo para os combatentes rebeldes. Em Mosul a coalizão está lançando folhetos advertindo a população a ficar em casa e se abrigar! Mesmo uma criança pode ver que se esconder em casas sobre as quais as bombas estão caindo dificilmente é uma receita para salvar vidas.

Como se estivesse preparando a opinião pública para a próxima carnificina, a mídia já está dizendo coisas tais como: “em uma cidade tão densamente povoada, a morte de civis é inevitável”. Sem dúvida, a mesma mídia vai derramar lágrimas pela perda de vidas em Mosul, mas descreverá isto como “efeitos colaterais”, uma deplorável consequência da política cínica dos jihadistas que usarão a população civil como escudos humanos. O fato de que os Jihadistas de Aleppo estão usando precisamente a mesma tática é convenientemente esquecido.

Sanções à Síria

Uma avaliação interna de 40 páginas das Nações Unidas sobre os impactos das sanções relativas à prestação de ajuda, escrita por um importante funcionário da ONU, intitulada Impactos Humanitários da Síria Relacionados às Medidas Restritivas Unilaterais, foi filtrada pela publicação investigativa The Intercept. Ela expõe a pestilenta hipocrisia dos EUA e da União Europeia e o cinismo de suas acusações contra a Síria e a Rússia para impedir a entrega dos suprimentos de assistência às cidades cercadas na Síria.

A União Europeia impôs proibições de grande alcance sobre as transações comerciais e bancárias com a Síria, bem como o controle da exportação de itens de “uso duplo” que poderiam ter alguma aplicação de segurança. As sanções dos EUA são ainda mais extensas, impondo a proibição geral das exportações à Síria e das transações financeiras com o país. Isto inclui bens produzidos no exterior cujo valor do produto acabado tenha mais de 10% de conteúdo dos  EUA.

Há supostamente meios disponíveis para que os bens puramente humanitários cheguem à Síria, mas isto é uma mentira. O embargo foi direcionado para atingir o Presidente Bashar al-Assad e contribuir para sua remoção do poder. Em vez disso, está tornando mais difícil que os gêneros alimentícios, combustíveis e os cuidados de saúde alcancem a massa do povo.

Os e-mails filtrados mostram que o principal efeito das sanções estadunidenses foi a obstrução da assistência de emergência aos civis. Cinco anos de guerra civil sangrenta e de severas sanções econômicas lançaram mais de 80% dos sírios na pobreza, acima dos 28% em 2010. As sanções contribuíram para uma elevação de 300% no preço da farinha de trigo e de 650% no preço do arroz, na sequência de uma duplicação nos preços dos combustíveis durante os últimos 18 meses.

Os informes descrevem as sanções como um “fator principal” da degradação do sistema de saúde da Síria. A Síria já foi largamente autossuficiente em produtos farmacêuticos, mas muitas plantas estavam na área de Aleppo e foram destruídas ou inutilizadas pelos combates. O e-mail diz que muitas das fábricas produtoras de remédios que sobreviveram à luta foram forçadas a fechar devido às sanções relacionadas às restrições sobre matérias-primas e divisas.

Em 2013, as sanções foram suavizadas, mas unicamente nas áreas controladas pela oposição. Em outras palavras, o controle da ajuda “humanitária” está sendo utilizado como arma de guerra. Ao mesmo tempo, a CIA começou a enviar armas diretamente aos insurgentes armados a um custo colossal de aproximadamente 1 bilhão de dólares ao ano, lançando gasolina sobre as chamas do conflito.

Em 11 de outubro, Counterpunch.org publicou um artigo de Patrick Cockburn – um escritor premiado de The Independent, especialista na análise do Iraque, Síria e guerras no Oriente Médio – relativo aos efeitos das Sanções Econômicas do Ocidente sobre os sírios comuns, que diz:

“De fato, as sanções dos EUA e da União Europeia estão impondo um cerco econômico à Síria como um todo que pode estar matando mais sírios do que a morte por doenças e desnutrição nos cercos que os líderes da União Europeia e dos EUA descrevem como crimes de guerra. Mais da metade dos hospitais públicos do país foram danificados ou destruídos. Os médicos sírios de Damasco queixaram-se ao The Independent sobre as dificuldades na obtenção de remédios e peças de reposição de equipamentos médicos comprados antes da guerra”

As condições de vida caíram desastrosamente com cortes contínuos no suprimento de eletricidade mesmo na capital, visto que as peças de manutenção e reposição do sistema elétrico foram atingidas pelas sanções. Uma vez que a energia se tornou demasiado cara, muitos sírios vivem sem eletricidade. O artigo conclui: “Enquanto os sírios se sentam no escuro, as sanções dos EUA e da União Europeia estão combinadas à guerra para destruir seu país”.

O papel da ONU

O exército sírio, com o apoio da Rússia e do Irã, está avançando implacavelmente e a queda de Aleppo é apenas uma questão de tempo. Isto pode mudar todo o rumo da guerra em favor de Assad e de seus aliados russos. Os estadunidenses estão desesperados para deter esta ofensiva. É esta, e somente esta, a razão da barragem de propaganda.

Carente de meios materiais para intervir militarmente a fim de deter a ofensiva, Washington tratou de mobilizar a opinião pública. Decidiu lançar a carta das Nações Unidas. As Nações Unidas nunca evitaram – e nunca desejaram evitar – a guerra ou desempenhar absolutamente qualquer papel progressista na política mundial. A ONU é apenas um foro onde as grandes potências podem debater questões secundárias, mas que nunca pode decidir algo de fundamental. Em última análise, as grandes potências fazem o que convém aos seus interesses. As pequenas nações, de fato, não contam para nada.

John Kerry deu voz a sua raiva e frustração ao dizer que o bombardeio de civis em Aleppo poderá ascender a “um crime de guerra”. Suas palavras foram fielmente ecoadas por Boris Johnson no parlamento britânico, por Matthew Rycroft, o embaixador de Londres nas Nações Unidas, e pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. Era como se todos eles estivessem lendo o mesmo script. E na verdade estavam.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas votou duas resoluções antagônicas sobre a luta, uma redigida pela França pedindo um alto aos ataques aéreos e outra redigida pela Rússia propondo um cessar-fogo, mas, lamentavelmente, sem fazer nenhuma menção a parar os bombardeios. A Rússia naturalmente vetou a resolução francesa. O bombardeio continuou normalmente.

O conselho promoveu uma segunda votação do texto elaborado pelos russos, mas fracassou em reunir os votos necessários à aprovação. O embaixador russo chamou isto de “espetáculo”, uma descrição bastante justa. Ele disse “ninguém ganha” e “necessitamos voltar à diplomacia”. Mas a diplomacia lida com palavras, enquanto que na guerra não são as palavras, mas as ações que decidem. Enquanto os diplomatas disputam sobre as palavras, a aliança síria-russa-iraniana continua a conquistar territórios no terreno. No final, é isto o que importa.

Seus crimes de guerra, nossos “erros”

A grande maioria da cobertura da mídia ocidental sobre Aleppo se concentrou na situação dos civis da parte leste desta cidade ocupada pelos rebeldes. Pouco ou nada se diz sobre a situação da população de Aleppo Ocidental, que é diariamente submetida ao bombardeio indiscriminado e ao lançamento de morteiros pelos jihadistas no leste da cidade.

Áreas civis, escolas e hospitais são alvos rotineiros do fogo de morteiros e foguetes dos islâmicos. Muitas crianças nas áreas controladas pelo governo foram mortas e mutiladas. Uma escola primária, que fica a cerca de 1 km de distância da linha de frente, foi recentemente severamente danificada pelos foguetes procedentes dos islâmicos da parte leste de Aleppo.

“Nossa escola está constantemente sob o fogo dos terroristas”, disse um residente local à Russia Today. “Ontem mesmo um projétil caiu no pátio da escola. Graças a Deus nossas crianças já estavam nas salas de aula e ninguém se feriu”.

Hassan, um menino de dez anos de idade nascido surdo e mudo, perdeu uma perna no bombardeio, mas teve a sorte de sobreviver. “Anteontem ele estava brincando com outros garotos na área de al-Hamadaneyah quando o projétil caiu lá”, explicou um dos parentes de Hassan. “Um dos garotos foi totalmente dilacerado e meu sobrinho teve o pé arrancado”.

Quando um hospital dirigido pela organização médica humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Aleppo foi bombardeado por aviões russos e sírios matando 50 pessoas, isto foi imediatamente denunciado como um brutal crime de guerra. No entanto, em 3 de outubro de 2015, quando um caça AC-130U da força aérea dos EUA atacou o centro traumatológico de MSF em Kunduz, Afeganistão, matando 42 pessoas e ferindo mais um grande número, não houve tal resposta.

O Pentágono anunciou que não era um crime de guerra porque resultou de “um erro não intencional humano e do equipamento”. O exército estadunidense disse que a tripulação do avião estava “inconsciente” de que estava bombardeando um hospital. No entanto, o exército estadunidense dispõe de uma tecnologia muito sofisticada e é capaz de distinguir até mesmo os menores alvos com precisão. Além disso, o próprio Pentágono admitiu que MSF tinha seguido todos os procedimentos adequados para notificar aos EUA da localização do hospital.

MSF disse insistentemente que não podia estar satisfeito unicamente com uma investigação militar sobre o ataque de Kunduz. Mas seu pedido de uma investigação independente e imparcial pelo International Humanitarian Fact Finding Comission ficou sem resposta.

Atrocidades da Arábia Saudita no Iêmen

A guerra da Arábia Saudita no Iêmen impôs um estado de cerco em todo o país que está produzindo um desastre humanitário. De acordo com a ONU, estima-se que 10 mil pessoas foram mortas desde que o conflito começou em 2015.

“A escala de sofrimento em consequência do conflito em curso no Iêmen é chocante. Estima-se que 21,2 milhões de pessoas, que constituem aproximadamente 80% do total da população, necessitam de assistência humanitária. Quase metade dessas pessoas necessitadas são crianças”, disse o representante do Iêmen na UNICEF, Meritxell Relano, à CNN. No entanto, durante os últimos 18 meses, a opinião pública ocidental foi muito mal informada, se foi informada, porque a Arábia Saudita é nossa aliada.

Hospitais e escolas são rotineiramente bombardeados pelos sauditas. De acordo com o Yemen Post, não menos de 178 escolas foram atacadas. Todas as grandes infraestruturas foram alvejadas e destruídas ou seriamente danificadas. O objetivo é claro: destruir todos os elementos de vida civilizada e levar o povo do Iêmen de volta à Idade da Pedra.

O Iêmen é o país mais pobre do mundo árabe. Também é o país com a menor quantidade de água doce e, portanto, é muito dependente das importações de alimentos. O país importa 90% de seus alimentos. Os sauditas atacaram deliberadamente os depósitos de alimentos e os portos. Seus aviões de guerra destruíram as cabines das gruas gigantes que eram utilizadas para levantar pesados contêineres de barcos para o seu armazenamento nos portos, deixando assim as gruas inutilizáveis. Isto somente foi possível porque os aviões são dirigidos deliberadamente contra estes alvos. Não tem nada a ver com erro algum. Contudo, admite-se que oficiais britânicos e estadunidenses estejam participando em conjunto com a força aérea saudita “para ajudá-los na tarefa”.

A UNICEF informa que 1,5 milhões de crianças estão desnutridas atualmente no país, 370 mil delas de forma severa. As crianças que não são mais que esqueletos vivos morrem a cada dia de fome. Não há absolutamente nenhuma dúvida de que os sauditas estão utilizando a fome como uma tática deliberada para destruir o Iêmen. Se isto não é um crime de guerra, fica difícil entender em que consiste um crime de guerra.

Muito tardiamente os meios de comunicação começaram a prestar um pouco mais de atenção a esta guerra criminosa. Inclusive houve algumas tímidas críticas à venda de armas britânicas e estadunidenses à Arábia Saudita, armas estas que estão sustentando a guerra. No entanto, a lucrativa venda de armas continua sem cessar.

O que raramente se menciona é que as forças britânicas e estadunidenses estão realmente envolvidas na guerra. As forças estadunidenses facilitam e apoiam as operações logísticas; navios estadunidenses patrulham o mar em todo o país para manter o embargo que condena as crianças a morrer de fome. Os aviões estadunidenses participam de missões de reabastecimento em voo com a finalidade de permitir que os aviões terroristas sauditas mantenham sua campanha de bombardeio de forma ininterrupta e sem perder tempo com a aterrissagem e o reabastecimento.

As tropas britânicas e estadunidenses também participam nas principais salas de operações para selecionar e coordenar os objetivos. Seu êxito foi impressionante. O ânimo dos pilotos sauditas melhorou tanto que, além de um grande número de escolas, hospitais e depósitos de alimentos, foram capazes de bombardear com êxito um funeral, matando centenas de pessoas na capital iemenita de Sanaa.

Depois de negar inicialmente tudo, os sauditas finalmente admitiram que este fato tinha ocorrido. Mas não foi, naturalmente, um crime de guerra (somente os russos são culpados disso), mas simplesmente um “incidente lamentável”. Os governos britânico e estadunidense também expressaram o seu pesar – e continuam vendendo bombas, foguetes e balas para permitir que os monstros da Arábia Saudita continuem perpetrando com prazer sua matança contra o povo do Iêmen.

Os navios de guerra estadunidenses estiveram ajudando a manter o bloqueio criminoso pelo qual os sauditas evitam que os alimentos cheguem às pessoas que morrem de fome. Barcos carregados de trigo e de outros produtos alimentícios são detidos por longos períodos de modo que a maior parte dos suprimentos apodrece e fica incomestível quando finalmente chega aos armazéns. Na semana passada, os rebeldes hutis dispararam foguetes contra barcos estadunidenses que ajudavam no assédio. Estes últimos lançaram mísseis contra os rebeldes. Portanto, os EUA começaram a participar diretamente na guerra contra o povo do Iêmen.

“Devemos fazer algo!”

Gente como Boris Johnson disse que temos de “fazer algo” na Síria. A pergunta é, como Kerry tão eloquentemente expressou: fazer o quê? Uma ideia que se repete com frequência é impor “zonas de exclusão aérea” como um meio de defesa da população civil contra os bombardeios (russos). Apresenta-se como uma medida “humanitária”. Na realidade, não seria tal coisa.

As “zonas seguras” em discussão na realidade serviriam para proteger os rebeldes das bombas russas e sírias, e para dar aos combatentes da oposição locais para se congregar e reabastecer. Pode-se pensar muitas coisas acerca de Assad e Putin, mas uma coisa está clara: não são estúpidos. Por que haveriam eles de chegar a um acordo com uma medida que estaria calculada para atar suas mãos às costas e permitir que seus amargos inimigos se reagrupassem e rearmassem?

Por outro lado, esta proposta aparentemente razoável coloca sérias dificuldades práticas. Quem tem as aeronaves e os recursos militares, a logística e os sistemas de comando e controle para proteger as zonas propostas, isto é, para protegê-las durante um período indefinido de tempo? Isso é impossível sem colocar um grande número de tropas no terreno. Quem vai proporcionar uma força deste tipo? Os estadunidenses dizem a Europa: “Depois de vocês, senhores! Ao que os europeus respondem: Não, meu querido senhor, depois de ti!

Militarmente, a política atual dos EUA se limita ao emprego das forças de operações especiais para capacitar e apoiar os militares iraquianos e as forças árabes e curdas que lutam contra o ISIS na Síria. Em torno de 300 soldados de operações especiais dos EUA já estão sobre o terreno na Síria, ajudando a adestrar e aconselhando os combatentes curdos no país. No Iraque, cerca de 5 mil membros das forças especiais estadunidenses estão incrustados nas diversas milícias curdas iraquianas, muitas das quais são abertamente hostis aos estadunidenses. Isto revela a debilidade do imperialismo dos EUA nesta situação.

Dizem que Obama está considerando a possibilidade de armar os curdos. Mas seu governo esteve vacilando sobre este tema durante muito tempo. Apesar de que são os combatentes mais eficazes contra o ISIS, são vistos com receio pela Turquia. E já que a Turquia é um aliado fundamental dos EUA, Washington não pode ir muito longe em sua ofensa a Ankara. No melhor dos casos, os combatentes curdos receberão algumas armas pequenas e munições, mas não o tipo de equipamento pesado, como armas antitanques ou antiaéreas, que os tornariam uma formidável força de combate. Como sempre, os direitos dos curdos e a causa da democracia na Turquia, portanto, devem ficar em segundo plano diante dos interesses do imperialismo estadunidense.

Alguns indivíduos equivocados da esquerda engoliram tolamente a propaganda dos imperialistas com relação à Síria. Apoiam a demanda de uma zona de exclusão aérea sem considerar as consequências. Esta demanda é, por outro lado, utópica e reacionária. É utópica porque os imperialistas são incapazes e estão pouco dispostos a realizá-la. É reacionária porque implica que se pode servir aos interesses do povo sírio fazendo apelos aos próprios imperialistas.

Já ouvimos esta canção antes. As mesmas pessoas exigiram que “há que se fazer algo” na Líbia. E algo foi feito. Os imperialistas interviram para derrubar Kadafi. Qual foi o resultado? O povo da Síria está sofrendo sob um regime reacionário ainda mais horrível que o que antes existia.

Tony Blair argumentou que “havia que se fazer algo” para derrubar a ditadura de Saddam Hussein no Iraque. E algo foi feito. Os imperialistas invadiram e ocuparam o Iraque. Qual foi o resultado? O resultado foi a catástrofe que se apoderou não somente do Iraque, como também da totalidade do Oriente Médio, que terminou na catástrofe humana que vemos agora. É dever dos Marxistas lutar em primeiro lugar contra sua própria classe capitalista, seu próprio imperialismo.

Nosso primeiro dever na Grã-Bretanha é realizar uma luta implacável contra o governo conservador e seu aliado, o imperialismo estadunidense. Devemos expor os interesses cínicos que estão por trás da propaganda hipócrita, opor-nos às aventuras militares no exterior, e explicar que os imperialistas não podem, sob nenhuma circunstância, desempenhar um papel progressista no Oriente Médio nem em nenhuma outra parte do mundo. Fazer qualquer outra coisa, seria ficar com um brinquedo nas mãos da classe dominante e do imperialismo, seria deseducar a classe trabalhadora e terminar diretamente no campo da reação.

Londres, 21 de outubro de 2016


Artigo publicado originalmente em 21 de outubro de 2016, no site da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “Aleppo, Mosul and Imperialist Hypocrisy“.

Tradução Fabiano Leite.