A Revolução Russa e os “ideólogos” do capital

Representação da tomada do Palácio de Inverno, por ocasião do 3º aniversário do evento

O choro pela democracia perdida de fevereiro de 1917

 “Acontece muitas vezes ter um pai um filho feio e extremamente

desengraçado, mas o amor paternal lhe põe uma venda

nos olhos para que não veja as próprias deficiências.”

Miguel de Cervantes, Don Quixote, prólogo

Quando as operárias russas, no 23 de fevereiro de 1917 (8 de março no calendário ocidental) saíram as ruas para comemorar o dia das mulheres, o principal motivo da manifestação era o pão que faltava. A ração de pão diminuía e, quando era anunciado que haveria pão, as filas se formavam nas portas das padarias.

As greves, que tinham quase que cessado com a deflagração da guerra em 1914 e a prisão de sindicalistas e dirigentes dos partidos de esquerda (Bolcheviques, Mencheviques e Socialistas Revolucionários), voltaram com força a partir de 1916 e nos primeiros dois meses, janeiro e fevereiro, sacudiam a Rússia.

Na Rússia imperava o czar, mas a verdadeira mandante era a Czarina, que recebia os ministros, pressionava o czar e tinha, do seu ponto de vista, uma visão clara do que fazer.

Radzinsky[i], que fez um bom estudo sobre as cartas e os diários do czar e da czarina, além de outros personagens do governo de então, reproduz uma série de telegramas entre o czar e a czarina durante a revolução (A czarina é tratada como Alix, o czar como Nicolau):

Alix

“24 de ferreiro. Greves também em Petrogrado. Oitenta mil operários pararam de trabalhar e filas de famintos formam-se diante das padarias. Não há pão suficiente na cidade”

Nicolau:

“Quartel, 24 de fevereiro. Estou enviando a você e Aleksei as cruzes da ordem do rei e da rainha da Bélgica, em memória da guerra. Ele ficará tão contente com um nova cruzinha!”

Alix:

“24 de fevereiro. Houve distúrbios ontem na ilha de Vasilievsky e na esplanada Nevsky, porque alguns infelizes apedrejaram a padaria de Fiolippov, arrebentando-a, e os cossacos forma chamados”

Nicolau:

“Quartel, 24 de fevereiro. Então você cuida das crianças e de Anya, todos com sarampo… meu cérebro pode descansar, aqui, sem ministros sem perguntas incômodas que exigem reflexão”

A czarina já tinha escrito antes, em 22 de fevereiro:

“… Você sempre lhes mostrou seu amor e sua gentileza, agora deixe que sintam o seu punho, como estão pedindo. Muitos tem dito que precisamos usar o chicote. É estranho, mas a natureza eslava é assim…” (obra citada, cap. 8, a queda da Atlantida, pags. 233-236)

No dia 26 de fevereiro, Nicolau recebeu um telegrama do ministro da Guerra, contando que os soldados recusavam-se a atirar nos baderneiros e estavam apoiando a insurreição.  Nicolau respondeu com um telegrama para o comandante militar do Distrito de Petrogrado, ordenando que ele acabasse imediatamente com a desordem. Mas ele já não era obedecido.

Assim, a comemoração do dia das mulheres, uma greve operária, levou à derrubada do czar poucos dias depois. O comportamento dos três maiores partidos de esquerda nestes dias que se seguiram vai mostrar depois os caminhos da revolução. Todos tinham, no primeiro dia da greve, pedido calma e a volta ao trabalho, para evitar a repressão. Quando no segundo dia se viu que a repressão estava perdendo e os soldados mudando de lado, os partidos tomaram rumos diferentes. Os bolcheviques começaram a organizar a guarda vermelha, assaltando as delegacias de bairro e tomando armas dos policiais. Todos juntos convocaram uma reunião do soviete de Petrogrado, retomando o caminho que tinha sido interrompido na revolução de 1905 pela repressão. E dentro dos Socialistas Revolucionários um deputado da Duma sobressaia-se e tomava a iniciativa de participar junto com os burgueses de um “governo provisório”, Kerensky.

Ao contrário da lenda vista com os olhos de quem só quer defender a democracia burguesa, se tinha algo que fugia mais da discussão do governo provisório do que o diabo foge da cruz era a “República”.

A democracia e a liberdade que se viam nas ruas tinham sido conquistadas pelos operários e operárias, com luta e com muitos mortos (mais de 1.000 foram mortos na revolução “pacífica” de fevereiro). E o novo governo não resolvia nenhuma das três questões que levavam os operários e soldados (camponeses uniformizados) à revolução – o pão que continuava a não existir, a paz e a terra.

Nos meses que se seguiram até a revolução de outubro, essa foi a questão que se colocava. O governo provisório se enredava em discutir a convocação de uma assembleia constituinte e como retomar a “ordem” no exército para continuar a guerra. Enquanto isso, operários e camponeses, estivessem estes nos campos ou nas cidades, mais e mais tomavam distância dos partidos “reformistas” e “democráticos”. Afinal, enquanto tudo era prometido para ser resolvido na futura constituinte, essa nunca chegava. E, perguntavam e murmuravam operários e camponeses, porque o pão não chegava, porque os salários não subiam, porque a terra não era dividida, porque não se assinava logo a paz?

Nas trincheiras, apesar de todo o esforço para manter a guerra, os soldados ensaiavam por conta própria todo tipo de confraternização com o “inimigo”, os operários alemães sob uniforme. Nos campos, os camponeses colocavam fogo nas mansões, dividiam os bens aprendidos (roubados segundo os nobres expropriados) e as terras. Nas cidades, os sovietes e sindicatos implantavam a jornada de trabalho de 8 horas por dia e tentavam estabelecer controle operário sob as fábricas para impedir a sabotagem da burguesia que queria sufocar a revolução destruindo fábricas e a produção.

Democracia

Governo do povo, pelo povo, para o povo

Definição clássica burguesa da democracia

Enquanto isso, quem governava a Rússia? De um lado, um governo que ninguém elegeu, chamado de governo provisório, formado por burgueses, por príncipes do antigo império dos czares e por ministros socialistas. De outro, o soviete eleito diretamente pelas massas em luta. Duplo poder? Sim. Mas, como explica Trotsky, esse duplo poder tinha um segredo: o governo que ninguém elegeu era sustentado pelo soviete que a maioria elegeu. Sem isso, o governo provisório não sobreviveria um dia sequer.

E quando as massas no decorrer dos meses que se seguiram viram que os partidos majoritários, mencheviques e socialistas revolucionários, não resolviam os seus problemas, viraram-se para os bolcheviques. Todos os que chamam de “golpe” a insurreição de Outubro, esquecem exatamente isso – os bolcheviques ganharam a maioria e simplesmente fizeram o que a maioria que os elegeram queria – tomaram o poder e acabaram com o governo que ninguém elegeu.

E como se posicionam nossos “democratas” quanto a esta situação?

Daniel Aarão Reis, ex-guerrilheiro e hoje historiador a serviço da burguesia, nas páginas de O Globo resume sua posição, já exposta em livro:

Mas não foi uma revolução espontânea, pois nem um piquenique se faz sem preparação e articulação, mas uma revolução anônima, não dirigida pelos partidos políticos e pelas conhecidas lideranças intelectuais. Estas a quiseram controlar, instituindo-se um governo provisório e um conselho — um soviete — de deputados operários e soldados. E pretenderam fazer de uma revolução imprevista, violenta, unânime e anônima, um processo de mudanças democráticas e reformistas. Eram sonhos que a vida, cedo, desfez.

Sonhos que a vida desfez? O que estava em jogo eram milhões de vidas que tinham sido ceifadas pela guerra, o que estava em jogo era a fome, eram os direitos, era a terra que os nobres controlavam e que a covarde burguesia e pequena burguesia que dirigiam o governo não aceitavam mudar. Enquanto Daniel lamenta os sonhos perdidos dos democratas, nós saudamos a coragem dos operários e camponeses que souberam se desvencilhar desses sonhos dos “democratas” e trataram de realizar seus próprios sonhos.

Leandro Karnal, com uma análise um pouco mais sofisticada do mundo, condena a ditadura estalinista (resultado de uma contrarrevolução que levou a burocracia ao poder, mas parece que Karnal não leu Trotsky e, se o leu, resolveu que o antigo comandante do exército vermelho não deveria ser levado em consideração[ii]). E assim explica a sua posição e o seu medo:

…O fato de a miséria e de a desigualdade no capitalismo ocidental serem enormes ajudava a compor o encantamento. Operários explorados, bolsões de cortiços por todo lado, governos que oprimiam trabalhadores: o Ocidente era a realidade, a Rússia, a utopia. A nascente URSS assomava como um novo mundo contra o decadente universo capitalista do pós Grande Guerra. Em 1917, o capitalismo matava nas trincheiras da Europa e nas colônias. O socialismo tornava-se a resposta errada para uma crítica correta.

… De muitas formas, a legislação trabalhista foi pensada no Ocidente para conter a sedução do comunismo. No caso específico do Brasil, Getúlio incorpora o Primeiro de Maio como data oficial, concede vários benefícios e controla os sindicatos. O mesmo Vargas mata e tortura militantes comunistas. Havia uma luta para absorver e liderar a causa operária.

Karnal traça um quadro bem realista da situação: o encanto com o novo regime e a possibilidade do socialismo se tornar de uma previsão teórica em uma realidade prática movimentavam e movimentaram milhões de pessoas no mundo inteiro, que inclusive aceitaram os crimes de Stalin por não conseguirem enxergar outra alternativa.

Stalin, de outro lado, caçava impiedosamente os membros da oposição de esquerda, sejam estes os esquerdistas sem rumo do POUM espanhol ou a Oposição de Esquerda (trotskystas) tanto na URSS como no mundo inteiro. Isso culminou em milhares de membros leais do PC da URSS fuzilados nos campos de concentração e com o assassinato de dezenas de opositores no mundo inteiro, inclusive de Trotsky e do seu filho Leon Sedov.

Mas Karnal não chega a estes detalhes, já que só enxerga os “socialistas” ou “comunistas” enquadrados todos na mesma categoria, ignorando a contrarrevolução que levou uma burocracia a serviço do Imperialismo à direção do Estado Soviético.

Karnal, entretanto, enxerga bem o combate que a burguesia fez ao comunismo e ao fato que ela teve que entregar os anéis para salvar os dedos, como Getúlio fez no Brasil, inclusive sufocando a mão armada os reacionários de São Paulo e sua “revolução” de 32. O problema de Karnal é que ele não consegue (ou não pode) enxergar uma saída e apenas lamenta o fim inevitável, o fato da “velha senhora” de 1917 renascer como uma criança “esperneante” no Brasil de agora. Assim, ele conclui:

O ano de 1917 também originou um choque ideológico profundo entre o capitalismo e o socialismo. Na Europa, a queda do muro de Berlim e o fim da URSS marcaram o fim da Guerra Fria. No Brasil, pelo contrário, descobrimos há pouco os prazeres da discussão de um mundo bipolar. A Revolução Russa é uma senhora centenária. Nossa Guerra Fria é um adolescente mimado e esperneante.

Na verdade, Karnal não encontra saída fora do capitalismo. Por isso fala que o socialismo é a resposta errada para a situação de exploração. E agora, no Brasil, que o governo Temer mantem 12 milhões de desempregados enquanto diz que a economia vai bem, que quer acabar com a previdência social e os direitos trabalhistas, qual a resposta correta? Karnal apenas diz que a luta atual é um adolescente mimado e esperneante. Os operários e trabalhadores começam a entrar em luta. E saberão, cedo ou tarde, mostrar que os caminhos que tomaram os operários da Rússia 100 anos atrás não foram esperneios que levaram a uma “resposta errada”, mas única forma de construir um mundo novo. Nós analisaremos em outros artigos os problemas da revolução e da contrarrevolução para mostrar isso.

Próximo artigo que será tema de crítica: De 1905 até 1917, resposta a Demétrio Magnoli e à direita que leu os marxistas.

[i] Radzinsky, Edvard, O último Czar, 4a edição.

[ii] Para ver a posição de Trotsky ler “A revolução desfigurada” e “A revolução traída” onde ele prevê que há duas hipóteses centrais para a ex-URSS, ou uma nova revolução que derrube a burocracia ou a volta ao capitalismo, que seria a maior catástrofe que passaria pelo mundo.