A renúncia de Bento XVI – Verdades e Mentiras

Bento XVI é o primeiro Papa a renunciar depois de 600 anos. É o quinto Papa na longa história da Igreja Católica que toma esta resolução. Trata-se, portanto, de um fenômeno importante na história, sobre o qual dedicamos estas poucas linhas.

1. A política de Bento XVI

Uma das acusações que lançaram ao Papa renunciante é que ele estaria “descolado da realidade atual”. Em presença de um combatente pelas suas ideias, ainda que delas discordemos, mas que não renunciou a ela por pressão da “realidade atual”, ou como o próprio Papa assinalou, pela pressão da mídia e dos valores que a burguesia considera necessário salientar atualmente, quero aqui fazer a defesa do Papa frente a esta acusação. Bento está, é verdade, descolado da “mídia” e da “agenda” que esta produz, mas é um profundo conhecedor da realidade atual, pensou que a igreja atual poderia lhe fornecer um meio de combate para modificá-la, este sim foi seu “pecado”. Ele errou, e aqui também indicaremos os motivos deste erro que acabaram levando-o à renuncia.

Bento XVI marcou o seu pontificado por três encíclicas[i]. Logo na primeira (‘Deus carista est’, ou Deus é amor), ele explica a sua política:

“Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo ao dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande atualidade e de significado muito concreto”.

A Encíclica foi escrita em 2005 e é uma resposta concreta à situação política de então, onde se “digladiava” a política de Bush versus a dos Aiatolás do Irã, todos os dois falando em nome de Deus. Só por este início, já se pode perceber que o Papa entendia muito bem o mundo atual e queria se apresentar como uma alternativa, uma perspectiva de unificação contra a política de guerra. Mas, esta política era e é viável no mundo atual?

Sim, Bento compreendia muito bem o mundo atual, um mundo aonde a prostituição se tornou um dos maiores mercados e ele respondia a isso de forma muito concreta, ao explicar que a Igreja não se opõe ao amor entre homem e mulher, mas à sua degradação, à sua venda:

“Mas o modo de exaltar o corpo, a que assistimos hoje, é enganador. O eros degradado a puro « sexo » torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma « coisa » que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação do seu corpo. Pelo contrário, agora considera o corpo e a sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito”.

E se Bento tem plena consciência da venda do corpo, mais ainda tem das diferenças materiais que corroem o mundo de hoje:

“O elemento da « comunhão » (koinonia), que aqui ao início não é especificado, aparece depois concretizado nos versículos anteriormente citados: consiste precisamente no fato de os crentes terem tudo em comum, pelo que, no seu meio, já não subsiste a diferença entre ricos e pobres (cf. também Act 4, 32-37). Com o crescimento da Igreja, esta forma radical de comunhão material — verdade se diga — não pôde ser mantida”.

Mais ainda, Bento tem plena consciência de onde surgem estes problemas:

“Do ponto de vista histórico, a questão da justa ordem da coletividade entrou numa nova situação com a formação da sociedade industrial no Oitocentos. A aparição da indústria moderna dissolveu as antigas estruturas sociais e provocou, com a massa dos assalariados, uma mudança radical na composição da sociedade, no seio da qual a relação entre capital e trabalho se tornou a questão decisiva — questão que, sob esta forma, era desconhecida antes. As estruturas de produção e o capital tornaram-se o novo poder que, colocado nas mãos de poucos, comportava para as massas operárias uma privação de direitos, contra a qual era preciso revoltar-se”.

E, sim, Bento também faz o balanço do que significou a Revolução Russa de 1917 e, de modo sintético, o significado da destruição da URSS (que como já explicamos deveu-se ao estalinismo [ii]):

“O marxismo tinha indicado, na revolução mundial e na sua preparação, a panaceia para a problemática social: através da revolução e consequente coletivização dos meios de produção — asseverava-se em tal doutrina — devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor. Este sonho desvaneceu-se. Na difícil situação em que hoje nos encontramos por causa também da globalização da economia, a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicação fundamental, que propõe válidas orientações muito para além das fronteiras eclesiais: tais orientações — face ao progresso em ato — devem ser analisadas em diálogo com todos aqueles que se preocupam seriamente do homem e do seu mundo”.

Ao contrário do que dizem seus críticos Bento tinha uma visão muito clara do mundo atual. “Este sonho desvaneceu-se”. É todo um balanço da luta social dos trabalhadores, para dizer aos capitalistas que “deixem de se preocupar com isto novamente”, passem a cuidar para que os fundamentos que levaram à revolução não aconteçam novamente. O problema de Bento situa-se então em dois aspectos:

a) ao contrário do que pensa Bento, a revolução volta à ordem do dia, e a revolução nos países árabes, as greves gerais da Grécia, Itália e Espanha, as revoltas operárias em algumas cidades dos EUA mostram isso. A miséria decorrente da crise de 2008 faz a revolução avançar muito mais que qualquer propaganda marxista. O que distingue os marxistas, os revolucionários, nesta situação, é ter uma compreensão clara da situação e uma perspectiva para resolver o problema, a revolução social.

b) Ao contrário do que prega Bento, a burguesia não aceitou a proposta do colchão social e a igreja sonhada por Bento, que poderia cumprir este papel, através da caridade e do amor, parece mais interessada em resolver os próprios problemas de manter-se como uma casta privilegiada e com direitos e bens acima do cidadão comum. Tal qual João Paulo I, porém de forma diferenciada, Bento não teve condições de aplicar a sua política e é obrigado a renunciar.

2 – Bento e sua crítica social, um homem duro com os seus semelhantes

Bento XVI não chegou para apaziguar. Se ele não chegou ao exagero de Cristo que chicoteou os mercadores do Templo, exemplo muitas vezes usado pelos cristãos de esquerda, Bento critica já em sua primeira encíclica o uso que é feito do Estado. Tendo previamente criticado e dito que o sonho acabou para os revolucionários, Bento pode ir direto ao ponto que toca a maioria dos povos, quando veem os seus “políticos” cada vez mais envolvidos em crises de corrupção e degradação moral a que conduzem os tempos de crise e as necessidades de “sobrevivência” ou, no caso destes capachos da burguesia, de colherem melhor as migalhas que caem do banquete burguês:

“A justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado, que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrões, como disse Agostinho uma vez: « Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? »” (O que são os reinos, senão grandes roubos?)

Bento vai além, ele explica que a Igreja tem uma tarefa, uma tarefa de imbuir a sociedade do amor de Deus, da compreensão da justiça e do erguimento de uma ordem social justa. Mas, como conciliar isso com a questão da separação entre Estado e Igreja, como conciliar isto com o capitalismo? Nós voltaremos a isso mais adiante, mas nesta primeira encíclica, Bento dá uma resposta clássica e ao mesmo tempo dura a seus próprios seguidores, na medida em que exige destes, e em particular dos padres e bispos, uma atitude política muito diferente do que seguem os atuais, mais preocupados com seus próprios problemas:

“Isto significa que a construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada geração. Tratando-se de uma tarefa política, não pode ser encargo imediato da Igreja. Mas, como ao mesmo tempo é uma tarefa humana primária, a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis”.

“Entretanto, o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade é próprio dos fiéis leigos. Estes, como cidadãos do Estado, são chamados a participar pessoalmente na vida pública. Não podem, pois, abdicar « da múltipla e variada acção econômica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgânica e institucionalmente o bem comum ». [21] Por conseguinte, é missão dos fiéis leigos configurar com retidão a vida social, respeitando a sua legítima autonomia e cooperando, segundo a respectiva competência e sob própria responsabilidade, com os outros cidadãos. [22] Embora as manifestações específicas da caridade eclesial nunca possam confundir-se com a atividade do Estado, no entanto a verdade é que a caridade deve animar a existência inteira dos fiéis leigos e, consequentemente, também a sua atividade política vivida como « caridade social”.

“Dando a cada um o que lhe compete”. Bento não explica como saber o que a cada um lhe compete. Mas Bento já tinha explicado claramente que no mínimo o direito a uma vida digna. E isto, repetimos, o capitalismo não pode garantir. Assim, Bento exigia que a igreja combatesse nesta direção, para humanizar o capitalismo  e não para simplesmente adequar-se a ele. Atenção, “humanizar” no momento atual, ou seja, não se trata de reformar o capitalismo, mas, na situação concreta de miséria causada pela destruição dos direitos sociais – previdência e saúde, principalmente – uma igreja que pratique e organize a caridade como forma de evitar a miséria extrema.

Evidentemente, para todos os pedófilos acobertados pela igreja, a “formação ética” preconizada por Bento começava a soar a seus ouvidos como algo um pouco incomodo. Duplamente, Bento começava uma guerra que não tinha condições de ganhar, mas ele se lançou à tarefa, e sete anos depois, derrotado, ele é obrigado a renunciar. A Igreja não iria até o fim no combate pela ética – um dos eleitores do novo Papa, Roger Mahony, cardeal e ex-arcebispo de Los Angeles (EUA) , teve o desplante de dizer que não sabia que a pedofilia era um crime – e muito menos no combate para humanizar o capitalismo. Afinal, precisamos lembrar a todo instante que a Igreja Católica é dona de vários bancos – e, através destes, participa ou dirige imensas indústrias – terrenos imobiliários nas maiores cidades do mundo e uma das maiores proprietárias, se não a maior, de fazendas. Mas, voltemos ao pensamento de Bento.

Bento tem consciência, depois de ter dito que “este sonho desvaneceu-se” (e nesta frase nota-se o particular publicista que ele é ao tomar e modificar a frase de Lenon), que a situação não é tão simples, e ele, defendendo a caridade e a organização das comunidades de base como entidades caritativas, ele volta a combater o marxismo. Mas, prisioneiro aqui de seus próprios preconceitos, Bento combate a caricatura do marxismo e não o próprio Marxismo:

“O tempo moderno, sobretudo a partir do Oitocentos, aparece dominado por diversas variantes duma filosofia do progresso, cuja forma mais radical é o marxismo. Uma parte da estratégia marxista é a teoria do empobrecimento: esta defende que, numa situação de poder injusto, quem ajuda o homem com iniciativas de caridade, coloca-se de fato a serviço daquele sistema de injustiça, fazendo-o resultar, pelo menos até certo ponto, suportável. Deste modo fica refreado o potencial revolucionário e, consequentemente, bloqueada a reviravolta para um mundo melhor. Por isso, se contesta e ataca a caridade como sistema de conservação do ‘status quo’. Na realidade, esta é uma filosofia desumana”.

Bento não pode – ou não quer – ver que o que conduz ao empobrecimento é o próprio capitalismo, e que as iniciativas de caridade, por mais que possam mitigar alguns problemas sociais, têm seus limites exatamente no momento em que o capitalismo chega ao seu estágio mais cruel. Marx e Engels no Manifesto Comunista já explicavam que a sociedade tende a proletarização da maioria do povo. O exemplo dos EUA nos últimos 30 anos, no qual a parcela da renda que cabe aos assalariados diminuiu ao mesmo tempo em que aumentava a renda dos ricos, mostra isso. A situação da Grécia, na qual os remédios faltam nos hospitais e não conseguem ser repostos porque a Grécia deve muito e as multinacionais que fornecem tais remédios não confiam no pagamento, é outro exemplo. Como a caridade pode resolver tal problema? Vai pagar a dívida da Grécia?

De outro lado, o exemplo dos marxistas no Paquistão – que frente ao caos gerado pelo terremoto, foram os únicos que, enquanto organização leiga, competiu com os islamitas no socorro à população – mostra muito bem o que podem e devem fazer os marxistas em caso de caos social. ([iii])

3 – Bento e a revolução

Saltemos dois anos e vamos à segunda e, provavelmente, a mais filosófica das encíclicas de Bento, Spe Salvi (A esperança salva). Nela, Bento desenvolve de forma direta a sua crítica ao marxismo. Reconheçamos, escrita em 2007, as vésperas da crise de 2008, Bento tinha muito mais consciência da situação política que muitos outros escritores, analistas e jornalistas. E identificava de forma clara o que tinha que combater. O seu problema, de então e de hoje, é que ao invés de uma igreja combatente, a exemplo de Inácio de Loiola, ele tinha nas mãos uma igreja que sobrevivia do lucro e do “fashion”, onde seus bispos e cardeais preocupam mais com seus negócios terrenos do que com seu combate concreto para o reino dos céus. Assim, Bento encontra-se sozinho (perdendo nestes 2 anos muito do apoio que lhe foi dado em sua eleição, a criatura, o papa, voltando-se contra o próprio criador, a burocracia do vaticano, onde Bento cresceu e se formou) criticando a revolução e tentando apresentar uma alternativa à mesma. Mas se a revolução encontra os seus caminhos, a igreja como instrumento de combate a esta, parece que não tem muita serventia. Mas Bento, em 2007, continuava o seu combate e escrevia (e perdoem a nossa longa citação, mas ela é interessante, pois contém a síntese das críticas ao marxismo):

“O século XIX não perdeu a sua fé no progresso como nova forma da esperança humana e continuou a considerar razão e liberdade como as estrelas-guia a seguir no caminho da esperança. Todavia a evolução sempre mais rápida do progresso técnico e a industrialização com ele relacionada criaram, bem depressa, uma situação social completamente nova: formou-se a classe dos trabalhadores da indústria e o chamado « proletariado industrial », cujas terríveis condições de vida foram ilustradas de modo impressionante por Frederico Engels, em 1845. Ao leitor, devia resultar claro que isto não pode continuar; é necessária uma mudança. Mas a mudança haveria de abalar e derrubar toda a estrutura da sociedade burguesa. Depois da revolução burguesa de 1789, tinha chegado a hora para uma nova revolução: a proletária. O progresso não podia limitar-se a avançar de forma linear e com pequenos passos. Urgia o salto revolucionário. Karl Marx recolheu este apelo do momento e, com vigor de linguagem e de pensamento, procurou iniciar este novo passo grande e, como supunha, definitivo da história rumo à salvação, rumo àquilo que Kant tinha qualificado como o « reino de Deus ». Tendo-se diluída a verdade do além, tratar-se-ia agora de estabelecer a verdade de aquém. A crítica do céu transforma-se na crítica da terra, a crítica da teologia na crítica da política. O progresso rumo ao melhor, rumo ao mundo definitivamente bom, já não vem simplesmente da ciência, mas da política – de uma política pensada cientificamente, que sabe reconhecer a estrutura da história e da sociedade, indicando assim a estrada da revolução, da mudança de todas as coisas. Com pontual precisão, embora de forma unilateralmente parcial, Marx descreveu a situação do seu tempo e ilustrou, com grande capacidade analítica, as vias para a revolução. E não só teoricamente, pois com o partido comunista, nascido do manifesto comunista de 1848, também a iniciou concretamente. A sua promessa, graças à agudeza das análises e à clara indicação dos instrumentos para a mudança radical, fascinou e não cessa de fascinar ainda hoje. E a revolução deu-se, depois, na forma mais radical na Rússia.

“21. Com a sua vitória, porém, tornou-se evidente também o erro fundamental de Marx. Ele indicou com exatidão o modo como realizar o derrubamento. Mas, não nos disse, como as coisas deveriam proceder depois. Ele supunha simplesmente que, com a expropriação da classe dominante, a queda do poder político e a socialização dos meios de produção, ter-se-ia realizado a Nova Jerusalém. Com efeito, então ficariam anuladas todas as contradições; o homem e o mundo haveriam finalmente de ver claro em si próprios. Então tudo poderia proceder espontaneamente pelo reto caminho, porque tudo pertenceria a todos e todos haviam de querer o melhor um para o outro. Assim, depois de cumprida a revolução, Lenin deu-se conta de que, nos escritos do mestre, não se achava qualquer indicação sobre o modo como proceder. É verdade que ele tinha falado da fase intermédia da ditadura do proletariado como de uma necessidade que, porém, num segundo momento ela mesma se demonstraria caduca. Esta « fase intermédia » conhecemo-la muito bem e sabemos também como depois evoluiu, não dando à luz o mundo sadio, mas deixando atrás de si uma destruição desoladora. Marx não falhou só ao deixar de idealizar os ordenamentos necessários para o mundo novo; com efeito, já não deveria haver mais necessidade deles. O fato de não dizer nada sobre isso é lógica consequência da sua perspectiva. O seu erro situa-se numa profundidade maior. Ele esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e a sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. Pensava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro é o materialismo: de fato, o homem não é só o produto de condições econômicas nem se pode curá-lo apenas do exterior criando condições econômicas favoráveis”.

Bento explica claramente que a promessa de Marx (e não só a promessa, mas a sua concretização em um partido comunista que combate pela revolução) tinha e tem o seu apelo. E qual a sua crítica? Que uma vez satisfeitas as condições econômicas, o mal continuava a existir e isso foi o erro da revolução russa, foi Marx (e Lenin) terem esquecido “o homem” em sua totalidade, serem materialistas e não serem idealistas. E que as condições econômicas não podem curar o mal do homem.

Precisemos: Marx não previu tudo nem podia fazê-lo. Mais de uma vez ele deixa claro que a sua análise é sobre as condições concretas, ele não é um profeta[iv], mas um homem que fez da história e da economia uma ciência para avançar a sociedade e não para “curá-la” ou para “curar” o mal do homem.

O que deu errado? Trotsky analisou isto em dois livros, a Revolução Permanente e a Revolução Traída. Neles, ele explica que a revolução só pode ser plenamente vitoriosa se estender-se para todo o mundo, se conseguir expropriar as forças produtivas nos países avançados e ter todo o domínio da produção mundial, do mercado mundial. Sem isso, a pressão da contrarrevolução, a pressão da burguesia vai levar a uma situação insustentável. E, novamente, lembrando que o homem é produto do seu meio, ele não “demoniza” Stalin, mas o reduz justamente ao que ele sempre foi: um agente, no início inconsciente, da própria burguesia para a destruição da revolução. A sua política, independentemente de suas intenções, conduziu à morte de milhões, não para salvar a revolução frente à burguesia, mas para impedir que a revolução avançando, deslocasse ele e a burocracia do seu lugar, dos seus ganhos concretos. Essa é a essência que levou à destruição da URSS. A pressão da burguesia fracionou o antigo partido bolchevique (comunista), criando uma fração burocrática, que de passo em passo transfigurou-se no agente direto desta burguesia no seio do estado russo, no seio da URSS.

Isto não se deu em um dia. De 1924 (morte de Lenin) até 1933, os passos foram muitos, com avanços e recuos. De uma teoria errada (socialismo em um só país) a erros concretos que afundaram revoluções e greves (Revolução chinesa em 27, Greve Geral na Inglaterra), até transformar-se em agente do imperialismo (apoio a Hitler contra a socialdemocracia, fuzilamento dos revolucionários na revolução espanhola, fuzilamento de centenas de milhares de comunistas na URSS, etc), houve uma mudança profunda.

Sim, a economia, ao contrário do que pensa e prega Bento, foi o determinante. Isolada do mercado mundial, a URSS não podia competir com o capitalismo dominante no mundo. E quebrou. Esta quebra, combinada com a não construção de um partido revolucionário na URSS levou à contra revolução e à sua situação atual – queda brutal do nível de vida, um capitalismo mafioso, etc. Sim, e isto nada tem a ver com a maldade dos homens, ou com sua bondade, mas é o resultado concreto das condições sociais da derrubada do Estado Operário e da restauração do capitalismo, com tudo o que ele é: busca desenfreada do lucro.

Voltando: Bento oferecia uma saída. O problema é que: ele não tinha uma igreja que combatesse por esta saída. Tinha e tem somente uma burocracia carcomida pelo luxo, empenhada em salvar seus lucros, seus investimentos, suas propriedades, pela imponência e pela impunidade que daí decorre. Batendo de frente com a burocracia, no seio da qual ele pontificou, Bento vai se isolando e renuncia.

“Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética do homem, no crescimento do homem interior (cf. Ef 3,16; 2 Cor 4,16), então aquele não é um progresso, mas uma ameaça para o homem e para o mundo”.

Se as palavras de Bento não correspondem ao mundo atual (afinal, os males do capitalismo decorrem da sua busca incessante do lucro, não da falta de uma ética, mas precisamente pela sua ética, o lucro acima de tudo), a falta de ética corroi e corrompe a igreja, que deveria ser a componente ética do capitalismo, o seu esteio moral, que através da caridade fornece o azeite capaz de engraxar esta máquina torpe e viciada. Mas nem isto a igreja atual consegue prover.

4 – Um homem sofrido

O último grande esforço de Bento encontra-se na sua terceira e última encíclica, Caridade na Verdade, escrita em 2009. Bento não vai voltar a escrever em 2011, deixando um vácuo e em 2013 ele renuncia. O que aconteceu? Retrospectivamente, podemos lembrar que 2009 é um ano depois do início da crise e a esperança de que Bento falava não é exatamente como se comportava a humanidade. A desesperança era o tom. Mas Bento tentava, mais uma vez, impor a sua visão à igreja, num momento em que os desacertos se tornavam maiores. Afinal, como conseguir transformar esta burocracia em algo útil no momento atual?

Bento retoma na sua encíclica o papel social da igreja (caridade, lembremos, não reformas sociais) e a sua discordância com a situação atual:

“Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a atividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização que atravessa momentos difíceis como os atuais”.

Sim, Bento tem plena consciência da crise e de seus resultados e clama por caridade e pela verdade, para que tudo não se dissolva “mercê de interesses privados e lógicas do poder”. Antes de tudo dirigido aos Bispos e cardeais, estes leem muito corretamente, mas continuam com seus interesses privados.

Bento, ao contrário do que dizem seus críticos tem muita consciência dos problemas do mundo atual. Desprezando as discussões que dizem ser relevantes no mundo atual – liberação da maconha, homossexualismo, cotas –  Bento vai direto ao ponto:

“Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociais empobrecem e nascem novas pobrezas. Em áreas mais pobres, alguns grupos gozam duma espécie de superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora. Continua « o escândalo de desproporções revoltantes »[56]. Infelizmente a corrupção e a ilegalidade estão presentes tanto no comportamento de sujeitos econômicos e políticos dos países ricos, antigos e novos, como nos próprios países pobres. No número de quantos não respeitam os direitos humanos dos trabalhadores, contam-se às vezes grandes empresas transnacionais e também grupos de produção local. As ajudas internacionais foram muitas vezes desviadas das suas finalidades, por irresponsabilidades que se escondem tanto na cadeia dos sujeitos doadores como na dos beneficiários. Também no âmbito das causas imateriais ou culturais do desenvolvimento e do subdesenvolvimento podemos encontrar a mesma articulação de responsabilidades: existem formas excessivas de proteção do conhecimento por parte dos países ricos, através duma utilização demasiado rígida do direito de propriedade intelectual, especialmente no campo da saúde; ao mesmo tempo, em alguns países pobres, persistem modelos culturais e normas sociais de comportamento que retardam o processo de desenvolvimento”.

Sim, Bento tem clareza do problema que aflige a maioria do povo e falaria diretamente a estes, se a ele fosse permitido. Afinal, ao falar o que falou, ele se dirige prioritariamente à própria Igreja e ao que ela está fazendo. Quanto da Igreja está envolvida no processo de corrupção? Quanto está envolvida nos desvios das ajudas? Quanto está envolvida pelos seus bancos e empresas nos problemas que Bento aponta? Quanto a burocracia do Vaticano está fazendo para proteger seus interesses, ao invés de praticar a caridade e a verdade? Sim, a denuncia é verdadeira, mas Bento está preso à igreja e à sua burocracia, ele não sai de lá e ele se cala depois de 2009. E a igreja continua com seu papel, seus investimentos e nada faz para resolver seus problemas. Bento? Ele renuncia.

Bento era um revolucionário? Não, não o era e não o é. Mas ele enxerga mais longe. Não só mais longe do que a burocracia da igreja, como também da burocracia sindical que corrói os sindicatos, sem falar nestes “analistas”, “economistas” e outros “istas” de plantão. Perdoem agora a longa citação, mas compartilhamos plenamente com uma boa parte da análise de Bento deste trecho:

“O mundo, que Paulo VI tinha diante dos olhos, registrava muito menor integração do que hoje, embora o processo de sociabilização se apresentasse já tão adiantado que ele pôde falar de uma questão social tornada mundial. Atividade econômica e função política desenrolavam-se em grande parte dentro do mesmo âmbito local e, por conseguinte, podiam inspirar recíproca confiança. A atividade produtiva tinha lugar prevalecentemente dentro das fronteiras nacionais e os investimentos financeiros tinham uma circulação bastante limitada para o estrangeiro, de tal modo que a política de muitos Estados podia ainda fixar as prioridades da economia e, de alguma maneira, governar o seu andamento com os instrumentos de que ainda dispunha. Por este motivo, a Populorum progressio atribuía um papel central, embora não exclusivo, aos « poderes públicos »[59].

Atualmente, o Estado encontra-se na situação de ter de enfrentar as limitações que são impostas à sua soberania pelo novo contexto econômico comercial e financeiro internacional, caracterizado nomeadamente por uma crescente mobilidade dos capitais financeiros e dos meios de produção materiais e imateriais. Este novo contexto alterou o poder político dos Estados.

Hoje, aproveitando inclusivamente a lição resultante da crise econômica em curso que vê os poderes públicos do Estado diretamente empenhados a corrigir erros e disfunções, parece mais realista uma renovada avaliação do seu papel e poder, que hão de ser sapientemente reconsiderados e reavaliados para se tornarem capazes, mesmo através de novas modalidades de exercício, de fazer frente aos desafios do mundo atual. Com uma função melhor calibrada dos poderes públicos, é previsível que sejam reforçadas as novas formas de participação na política nacional e internacional que se realizam através da acção das organizações operantes na sociedade civil; nesta linha, é desejável que cresçam uma atenção e uma participação mais sentidas na res publica por parte dos cidadãos.

25. Do ponto de vista social, os sistemas de segurança e previdência — já presentes em muitos países nos tempos de Paulo VI — sentem dificuldade, e poderão senti-la ainda mais no futuro, em alcançar os seus objetivo de verdadeira justiça social dentro de um quadro de forças profundamente alterado. O mercado, à medida que se foi tornando global, estimulou, antes de mais nada, por parte de países ricos, a busca de áreas para onde deslocar as atividades produtivas a baixo custo a fim de reduzir os preços de muitos bens, aumentar o poder de compra e deste modo acelerar o índice de desenvolvimento centrado sobre um maior consumo pelo próprio mercado interno. Consequentemente, o mercado motivou novas formas de competição entre Estados procurando atrair centros produtivos de empresas estrangeiras através de variados instrumentos tais como impostos favoráveis e a desregulamentação do mundo do trabalho. Estes processos implicaram a redução das redes de segurança social em troca de maiores vantagens competitivas no mercado global, acarretando grave perigo para os direitos dos trabalhadores, os direitos fundamentais do homem e a solidariedade pactuada nas formas tradicionais do Estado social. Os sistemas de segurança social podem perder a capacidade de desempenhar a sua função, quer nos países emergentes, quer nos desenvolvidos há mais tempo, quer naturalmente nos países pobres. Aqui, as políticas relativas ao orçamento com os seus cortes na despesa sociais, muitas vezes fomentados pelas próprias instituições financeiras internacionais, podem deixar os cidadãos impotentes diante de riscos antigos e novos; e tal impotência torna-se ainda maior devido à falta de proteção eficaz por parte das associações dos trabalhadores. O conjunto das mudanças sociais e econômicas faz com que as organizações sindicais sintam maiores dificuldades no desempenho do seu dever de representar os interesses dos trabalhadores, inclusive pelo fato de os governos, por razões de utilidade econômica, muitas vezes limitarem as liberdades sindicais ou a capacidade negociadora dos próprios sindicatos. Assim, as redes tradicionais de solidariedade encontram obstáculos cada vez maiores a superar. Por isso, o convite feito pela doutrina social da Igreja, a começar pela Rerum novarum[60], para se criarem associações de trabalhadores em defesa dos seus direitos há de ser honrado, hoje ainda mais do que ontem, dando antes de tudo uma resposta pronta e clarividente à urgência de instaurar novas sinergias a nível internacional, sem descurar o nível local.

A mobilidade laboral, associada à generalizada desregulamentação, constituiu um fenômeno importante, não desprovido de aspectos positivos porque capaz de estimular a produção de nova riqueza e o intercâmbio entre culturas diversas. Todavia, quando se torna endêmica a incerteza sobre as condições de trabalho, resultante dos processos de mobilidade e desregulamentação, geram-se formas de instabilidade psicológica, com dificuldade a construir percursos coerentes na própria vida, incluindo o percurso rumo ao matrimonio. Consequência disto é o aparecimento de situações de degradação humana, além de desperdício de força social. Comparado com o que sucedia na sociedade industrial do passado, hoje o desemprego provoca aspectos novos de irrelevância econômica do indivíduo, e a crise atual pode apenas piorar tal situação. A exclusão do trabalho por muito tempo ou então uma prolongada dependência da assistência pública ou privada corroem a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relações familiares e sociais, causando enormes sofrimentos a nível psicológico e espiritual. Queria recordar a todos, sobretudo aos governantes que estão empenhados a dar um perfil renovado aos sistemas econômicos e sociais do mundo, que o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: « com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida econômico-social »[61].

Bento tem muita clareza do que ele denuncia. Sem um colchão social, o que pode vir é a revolução. O colchão social de Bento não são reformas, não é a manutenção dos direitos, não é a manutenção dos empregos. Ele diz diretamente que o desemprego chegou para ficar. O problema é: como lidamos como ele. Bento não faz nenhum apelo por “mais empregos”, por “melhores salários”, por “manter a previdência e a saúde pública”. O seu apelo é para transformar a igreja em algo que possa ser útil ao capitalismo. A sua análise é fria e cortante como uma faca. O problema, como sempre, é que ela se choca com a burocracia do vaticano, com as propriedades da igreja, com sua responsabilidade empresarial, com seus luxos e seus lucros. Mas, ainda sim, ele comete erros na própria análise, prisioneiro que é da defesa do capitalismo.

Aonde não concordamos?

1) Com o caráter “fatalista” da atual crise. Ela não nasce do nada, mas nasce da própria existência do capitalismo, que produz mais do que consegue comerciar. Em outras palavras, é o capitalismo que produziu a atual crise e, portanto tem uma responsabilidade.

2) Com o caráter também “fatalista” da situação. Bento não propõe – e nem poderia propor – que se combata a política de destruição dos sindicatos implementada pela maioria dos governos. Mas registra que ela existe com uma crueza que os analistas atuais não querem e não “podem” ver.

Nesta situação, os seus apelos e lembretes aos governantes só poderiam cair no vazio, como de fato caíram. Nenhum deles quer lembrar-se da corrupção (que ele denunciou) e muito menos na necessidade de defender o homem e o seu emprego. Pelo contrário, por todo o mundo espalha-se a “novidade” que o pleno emprego é algo que nunca existiu e nunca existirá.

Mas Bento foi claro: os sistemas de saúde e de previdência estão sob ataque e precisamos de uma resposta internacional para isto. Em outras palavras, ele propõe que a igreja retome o seu trabalho sindical, retome a perspectiva internacional deste trabalho e ajude os trabalhadores a se defenderem. É uma declaração de guerra, uma declaração de combate, que combinada com a sua crítica ao marxismo, resulta numa doutrina coerente de construção e de crescimento da igreja, ao contrário do que dizem seus críticos de que queria uma igreja “pequena”. O problema é que a burguesia enxerga este caminho como perigoso em épocas de crise (a revolução russa de 1905 começou com um padre ortodoxo, ao que parece inclusive agente da inteligência russa de então, chamando uma manifestação que, ao ser reprimida, deu origem a revolução). Assim, Bento estava, de determinada forma, “isolado”. Mas não isolado do seu mundo e do seu tempo. Isolado no combate que propunha. Era um general sem soldados, sargentos, capitães, coronéis. Ele os perdeu durante o tempo em que desenvolve os seu programa, que toma forma mais completa nesta última encíclica. Pelo contrário, o seu estado maior fugia, como o diabo foge da cruz, destes problemas.

Pobre papa. Ele podia analisar – como nenhum outro economista burguês o faria – corretamente o problema social da fome:

“Além disso, eliminar a fome no mundo tornou-se, na era da globalização, também um objetivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra. A fome não depende tanto de uma escassez material, como, sobretudo da escassez de recursos sociais, o mais importante dos quais é de natureza institucional; isto é, falta um sistema de instituições econômicas que seja capaz de garantir um acesso regular e adequado, do ponto de vista nutricional, à alimentação e à água e também de enfrentar as carências relacionadas com as necessidades primárias e com a emergência de reais e verdadeiras crises alimentares provocadas por causas naturais ou pela irresponsabilidade política nacional e internacional. O problema da insegurança alimentar há de ser enfrentado numa perspectiva em longo prazo, eliminando as causas estruturais que o provocam e promovendo o desenvolvimento agrícola dos países mais pobres por meio de investimentos em infraestruturas rurais, sistemas de irrigação, transportes, organização dos mercados, formação e difusão de técnicas agrícolas apropriadas, isto é, capazes de utilizar o melhor possível os recursos humanos, naturais e socioeconômicos mais acessíveis a nível local, para garantir a sua manutenção em longo prazo. Tudo isto há de ser realizado, envolvendo as comunidades locais nas opções e nas decisões relativas ao uso da terra cultivável. Nesta perspectiva, poderia revelar-se útil considerar as novas fronteiras abertas por um correcto emprego das técnicas de produção agrícola, tanto as tradicionais como as inovadoras, desde que as mesmas tenham sido, depois de adequada verificação, reconhecidas oportunas, respeitadoras do ambiente e tendo em conta as populações mais desfavorecidas. Ao mesmo tempo não deveria ser transcurada a questão de uma equitativa reforma agrária nos países em vias de desenvolvimento. Os direitos à alimentação e à água revestem um papel importante para a consecução de outros direitos, a começar pelo direito primário à vida. Por isso, é necessária a maturação duma consciência solidária que considere a alimentação e o acesso à água como direitos universais de todos os seres humanos, sem distinções nem discriminações[65].

Entretanto, preso na armadilha de sua própria concepção, da defesa do capitalismo e do sistema social, ele não podia ter outro meio de realizar isso senão apelando à boa vontade – cada vez mais escassa – dos ricos e dos governantes:

“Além disso, é importante pôr em evidência que o caminho da solidariedade com o desenvolvimento dos países pobres pode constituir um projeto de solução para a presente crise global, como homens políticos e responsáveis de instituições internacionais têm intuído nos últimos tempos. Sustentando, através de planos de financiamento inspirados pela solidariedade, os países economicamente pobres, para que provejam eles mesmos à satisfação das solicitações de bens de consumo e de desenvolvimento dos próprios cidadãos, é possível não apenas gerar verdadeiro crescimento econômico mas também concorrer para sustentar as capacidades produtivas dos países ricos que correm o risco de ficar comprometidas pela crise”.

Sim, mas quem vai fazer isso hoje? Não o capitalismo, que sempre impediu e impede a reforma agrária e nunca foi “solidário” com os pobres. A solução, revolução social, é o diabo e o Papa a repele. Pendurado no vazio, Bento afinal vai ter que renunciar.

Bento vai além. Ele mostra aonde conduz o caminho atual de “soluções” da crise e alerta a burguesia para estes problemas:

“O aumento sistemático das desigualdades entre grupos sociais no interior de um mesmo país e entre as populações dos diversos países, ou seja, o aumento maciço da pobreza em sentido relativo, tende não só a minar a coesão social — e, por este caminho, põe em risco a democracia —, mas tem também um impacto negativo no plano econômico com a progressiva corrosão do « capital social », isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensáveis em qualquer convivência civil”.

O problema é que Bento continua claramente como um defensor do mercado, como ele mesmo explica:

“O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é a instituição econômica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de operadores econômicos que usam o contrato como regra das suas relações e que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas carências e desejos. O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza. De fato, deixado unicamente ao princípio da equivalência de valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar a coesão social de que necessita para bem funcionar.Sem formas internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função econômica. E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar; e a perda da confiança é uma perda grave”.

Marx explicou em O Capital (Volume I) que o mercado tem um grave “inconveniente”. Nele o trabalhador só pode vender a sua força de trabalho, pelo preço que lhe paga o capitalista (o seu valor de troca). Mas que ele usa a força de trabalho como qualquer mercadoria, por um tempo maior que lhe custa (valor de troca) e dai obtém o seu lucro. Numa situação de crise, o que o trabalhador conseguiu de vantagem (salários maiores, direitos sociais como aposentadoria e saúde) são questionados e o “principio da equivalência” reduz-se ao seu ponto mais cru: trabalharás pelo valor simples de sua força de trabalho e nada mais. A competição com os desempregados reduz mais ainda o valor de troca da força de trabalho, forçado os trabalhadores a viverem em uma situação de miséria cada vez mais gritante. Esta é a real situação que conduz à “perda de confiança” e nenhuma explicação moral e ética, nenhum combate “moral e ético” vai mudar isso. Bento XVI prega no vazio e sabe disso.

Sim, neste ponto, a análise de Bento cai por terra em confronto com a própria realidade:

“Com efeito, a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se quem as gere tiver apenas referimentos egoístas. Deste modo é possível conseguir transformar instrumentos de per si bons em instrumentos danosos; mas é a razão obscurecida do homem que produz estas consequências, não o instrumento por si mesmo. Por isso, não é o instrumento que deve ser chamado em causa, mas o homem, a sua consciência moral e a sua responsabilidade pessoal e social”.

Aonde Bento erra? Ao achar que o mercado pode ser gerido pelo bem ou pelo mal. A lógica do mercado é simples: gerar lucros. E se alguém começa a gerir uma empresa de outra forma, para praticar “o bem” simplesmente ela não gera lucros e é espirrada do mercado, irá falir. Querer dar um caráter social ou moral ao mercado é ignorar o que ele é. Assim, Bento é preso em sua própria armadilha e confrontado com a realidade social, aonde a igreja deve existir para confortar os pobres, mas não para exigir responsabilidade pessoal e social, Bento cai.

Bento sabe que este não é o único problema. Florescem na sociedade, particularmente em tempos de crise, as “novas ideias”. A mídia as propaga, inventores, charlatães e todo tipo de aproveitadores nascem. “Empreendedorismo social”, “sustentabilidade”, tornam-se palavras da moda. As cooperativas dos trabalhadores tornam-se “cooperativas de produção” em oposição às empresas. Bento tenta dar um sentido a tudo isso:

“Assim, temos necessidade de um mercado, no qual possam operar, livremente e em condições de igual oportunidade, empresas que persigam fins institucionais diversos. Ao lado da empresa privada orientada para o lucro e dos vários tipos de empresa pública, devem poder-se radicar e exprimir as organizações produtivas que perseguem fins mutualistas e sociais. Do seu recíproco confronto no mercado, pode-se esperar uma espécie de hibridização dos comportamentos de empresa e, consequentemente, uma atenção sensível à civilização da economia. Neste caso, caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização àquelas iniciativas econômicas que, embora sem negar o lucro, pretendam ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si mesmo”.

Durante a crise de 2008 e logo antes dela, centenas de fábricas foram fechadas. Algumas delas reuniram-se no Movimento das fábricas ocupadas, da qual a Cipla foi a maior, e propuseram a estatização como solução. O governo Lula propunha o contrário, transformá-las em cooperativas. A maioria das que trilharam este caminho faliram, não conseguiram (e nem podiam) “adequar-se ao mercado”. Outras terminaram em conflitos internos com a disputa de quem mandava na fábrica. E a Cipla foi invadida para “ensinar” os trabalhadores a respeitarem o capital. Sim, Bento vê isso em nível mundial e propõe que este tipo de coisa, o “empreendimento social”, as “cooperativas de trabalho”, prosperem. Vende ilusão. Mas ele não pode pagar isso.

Poderíamos continuar a análise desta encíclica, mas o trabalho nos afastaria da questão central – os motivos da renúncia do papa.

O que quisemos, e esperamos ter conseguido mostrar, é que existe um problema que transcende a simples crise moral ou de disputa de aparelho na renuncia. Bento XVI tinha um programa, programa este que se chocava com a inatividade, a morosidade, a corrupção e o luxo da atual burocracia da igreja, situação esta criada pela própria posição da igreja, dona de bancos, de empresas, de imóveis urganos e rurais, de ser uma grande proprietária, mais que defensora só sistema burgues, ela própria detentora de capital.

Ele apostou neste programa e na sua luta por ele, ele perdeu. Bento poderia ter continuado? Não nos é possível responder a esta questão. Apenas podemos especular sobre isto. O que podemos responder de modo claro é que Bento renunciou porque a sua proposta de transformação da igreja num instrumento de combate social, com um programa de combate ao comunismo e de ajuda social ativa foi derrotado. Os próximos passos da igreja nós veremos nos tempos que se seguirão.

 

Notas: 


[i]               As três encíclicas podem ser encontradas no seguinte endereço, em várias línguas: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/index_po.htm

[ii]              Para melhor conhecer sobre o tema, é necessário ler Trotsky, a Revolução Traída.

[iv]             Um pretenso marxista, Issac Deutcher, ao fazer a biografia de Trotsky o chama de Profeta…(são três volumes, cada qual com este título e um subtítulo). Isso é uma enganação e uma deturpação do marxismo, que baseia sua análise cientifica no concreto e não em “visões”.