A mais-valia: a classe operária como produtora de riquezas

Um dos assuntos mais discutidos hoje é o novo valor do salário mínimo. Este texto do camarada Daniel explica de onde vem o valor do salário e porque interessa aos capitalistas que o salário seja o mais baixo possível.

A questão da mais-valia não apenas é uma das principais descobertas da teoria econômica de Karl Marx como também é questão chave para a análise e crítica do capitalismo. Neste breve texto, vamos tratar resumidamente do problema, a partir das considerações de Marx no livro “O Capital”.

“A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias e a mercadoria individual como sua forma elementar”. Esta citação abre o primeiro capítulo de “O Capital”. Na medida em que no capitalismo as sociedades passam a produzir para o mercado, os produtos do trabalho passam a ter um significado diferente. Em geral, nas sociedades mais antigas, o mercado tinha uma importância limitada, e a produção era voltada diretamente para o uso, ou seja, para satisfazer necessidades diretas. No capitalismo, cada produtor ou empresa produz não para seu próprio uso, mas sim produz para vender a um terceiro. Daí o que Marx descreve como o caráter duplo da mercadoria: de um lado, cada mercadoria tem um valor de uso, ou seja, deve servir para satisfazer necessidade de seu comprador; por outro lado, para seu produtor, a mercadoria tem apenas um valor de troca, pouco importando se está se produzindo arroz, carros ou armas.

O valor de troca, ou seja, o dinheiro que pode ser obtido com a venda de uma mercadoria, passa a ser no capitalismo o objetivo supremo da atividade econômica. Mas, o que então, determina tal valor de troca? Marx brilhantemente mostrou em “O Capital” que toda troca no capitalismo não é simplesmente uma troca entre “coisas”, mas sim uma relação social entre seres humanos. Como toda mercadoria só pode ser um produto do trabalho humano, quando uma troca se estabelece em um mercado, na verdade estão sendo trocados diferentes quantidades de trabalho. Pois afinal, o que existe em comum entre diferentes mercadorias como arroz, carro e armas? A despeito de seu valor de uso diferente, cada uma dessas mercadorias tem em comum o fato de serem produtos do trabalho humano. Assim, sendo, a única medida possível para o valor de troca é quantidade de trabalho embutida nas mercadorias. Ou seja, quanto mais (menos) horas de trabalho for necessário para produzir uma mercadoria, maior (menor) há de ser seu valor de troca.

Feitas essas considerações, podemos introduzir o problema da mais-valia. Marx constatou que existe uma mercadoria especial no capitalismo, diferente de todas as outras, que tem o atributo de produzir um valor maior do que aquele necessário para comprá-la. Tal mercadoria é justamente a força de trabalho. Quando um capitalista compra a força de trabalho de 8 horas de um operário que produz o equivalente a 160 reais num dia, ele não tem qualquer necessidade de pagar estes 160 reais para seu empregado. Na verdade, ele só paga um valor correspondente ao mínimo necessário para a subsistência do operário e sua família, que no nosso exemplo, supomos serem 80 reais [1]. Ou seja, é como se das oito horas de trabalho, em apenas 4 horas o operário trabalha para si mesmo, e nas 4 horas restantes ele “entrega” gratuitamente 4 horas de trabalho ao capitalista. Este trabalho “gratuito”, que Marx chamava de roubo, é justamente a mais-valia.

Com esta descoberta relativamente simples, Marx desmontou toda a ideologia econômica da burguesia em seu tempo. Na medida em que ignoravam ou não davam a devida atenção ao problema da mais-valia, os economistas burgueses difundiam a ideia de o capitalismo seria “justo”, pois afinal, nas trocas entre bens, cada mercadoria era trocada por uma mercadoria de valor equivalente e desta forma ninguém sairia “lesado”. Marx, por sua vez, dizia que isso só seria verdade numa sociedade hipotética de pequenos produtores independentes que trocavam os produtos de seu próprio trabalho individual. Com a propriedade privada e a separação dos trabalhadores dos meios de produção que ocorre no capitalismo, o operário para sobreviver é obrigado a vender sua força de trabalho como uma mercadoria e produzir a mais-valia ao capitalista. O fato de que uma mercadoria produzida seja vendida por seu “preço justo” no mercado pouco importa, pois na verdade a espoliação do trabalhador não ocorre na troca de mercadorias, mas sim no próprio processo de produção onde ele é obrigado a fornecer a mais-valia ao seu patrão. A mais-valia é então, a base do lucro e, portanto o objetivo do capitalista.

Não apenas o trabalhador precisa ser explorado, como também a sociedade passa a se tornar cada vez mais irracional e anárquica na medida em que a produção passa a se voltar para o aumento do valor de troca através da extração de mais-valia em vez de ser dirigida para as necessidades humanas. O fato de que hoje bilhões de dólares sejam gastos com armas enquanto milhões passam fome é prova desta irracionalidade.

Marx descreveu distintas formas de aumentar a mais-valia. Em primeiro lugar, isto pode ser feito através do que ele chamava de mais-valia absoluta, ou seja, aumentando a jornada de trabalho. Se no nosso exemplo, o operário trabalha 10 horas em vez de 8, ele deverá produzir 200 reais. Se seu salário continuar equivalente a 4 horas de trabalho (80 reais), a mais-valia vai aumentar para 6 horas (120 reais). Esta forma de aumentar a mais-valia era muito comum no início do capitalismo onde os operários tinham jornadas de até 15 horas diárias. Como sabemos, as lutas do movimento operário conseguiram impor tetos para a jornada de trabalho.

Com o desenvolvimento das forças produtivas, o capitalismo desenvolve outra forma de aumentar a mais-valia. Mesmo sem aumentar a carga de trabalho do operário, mas conseguindo aumentar o tempo dentro de uma determinada jornada de trabalho em que se trabalha de graça ao capitalista, produz-se a chamada mais-valia relativa.

Do ponto de vista geral da classe capitalista, a mais-valia relativa é produzida quando o aumento de produtividade barateia os produtos que fazem parte da cesta de consumo do operário. Se, por exemplo, com o barateamento do custo de vida do operário, uma jornada de 3 horas for suficiente para produzir o seu salário, sobrarão 5 horas de mais- valia ao capitalista, ou seja, uma hora a mais que no nosso exemplo anterior.

No capítulo 10 do livro 1 de “O Capital”, Marx desdobra o conceito de mais-valia relativa para explicar o processo de obtenção de mais- valia extraordinária que é extremamente importante para os capitalistas individuais que buscam se destacar na concorrência. Digamos que o preço de uma dada mercadoria é de 100 reais. O capitalista X consegue introduzir inovações tecnológicas que permitem que com uma quantidade de trabalho equivalente a 70 reais essa mesma mercadoria seja produzida. Ou seja, do ponto de vista individual do capitalista, a mercadoria vale 70 reais. Todavia, como no mercado o valor social da mercadoria prossegue sendo 100, o capitalista X pode vendê-la digamos a 90 reais para roubar mercado de seus concorrentes e desta forma extrair uma mais-valia extraordinária. Ao se manter a mesma jornada e o mesmo salário, na prática, isso significa aumentar a mais-valia relativa obtida pelo capitalista X, pois agora será necessária uma menor quantidade de trabalho para produzir o valor equivalente à remuneração dos trabalhadores. Este processo pode continuar até que os outros capitalistas consigam também eles produzir a mercadoria de forma mais barata anulando assim a fonte de mais-valia extraordinária.

A atualidade do debate

A partir dos exemplos que mencionamos, Marx deduziu que a luta de classes é uma decorrência necessária do processo de desenvolvimento capitalista. Sendo o trabalho a única fonte de produção de novo valor é inevitável que quanto maior o salário, menor há de ser o lucro e vice-versa. Assim, não se trata de uma questão de existirem “bons” ou “maus” capitalistas como querem alguns, mas sim de que o próprio sistema confronta objetivamente o capital contra o trabalho. Mesmo no caso em que vimos da mais-valia extraordinária, apenas na aparência se trata meramente de uma disputa entre os próprios capitalistas, pois em última instância, o lucro extra obtido só pode ocorrer a partir de um aumento da exploração relativa do trabalhador.

É por isso que sempre os capitalistas e seus defensores ideológicos insistem em criticar o que chamam de “alto custo dos salários”. É isso que explica, por exemplo, a declaração do economista tucano Mendonça de Barros no jornal Valor (19/1) de que uma política de pleno emprego tende a fazer com que em muitas categorias o salário suba de forma prejudicial às empresas. Ou seja, implicitamente ele quer dizer que uma certa taxa de desemprego seria importante ao recriar um exército de reserva de trabalhadores que diminuiria o poder de barganha dos sindicatos e consequentemente os salários.

A luta capitalista pela mais-valia não pode terminar, pois se trata de uma questão de sobrevivência do próprio capital. Inclusive as formas mais primitivas de produção de mais-valia absoluta recorrentemente ressurgem como podemos constatar em países de desenvolvimento recente como a China com suas longuíssimas jornadas de trabalho ou então nas diferentes tentativas de desregulamentação do trabalho ao redor do mundo que na prática fazem a trabalhar por mais tempo. Conscientizar os trabalhadores de que eles e só eles produzem a riqueza existente é um passo fundamental na luta pela sua emancipação!

[1] Para Marx o valor do salário que aqui supomos ser 80 reais/dias depende de uma série de fatores. Depende tanto do valor das mercadorias que fazem parte da subsistência cotidiana do trabalhador (alimento, vestuário, moradia, etc.), como também do grau de organização da classe trabalhadora. Isto é, num local, onde os sindicatos são fortes e combativos é de se esperar que o salário seja maior.

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