1968: o ano que, querendo transformar o mundo, mudou as nossas vidas

Karl Marx disse certa vez que os filósofos interpretaram o mundo de diferentes maneiras, agora trata-se de transformá-lo. O poeta Rimbaud disse “Mudar a vida!”. 1968 juntou as duas coisas em um espectro revolucionário que rondou o mundo.

Karl Marx disse certa vez que os filósofos interpretaram o mundo de diferentes maneiras, agora trata-se de transformá-lo. O poeta Rimbaud disse “Mudar a vida!”. 1968 juntou as duas coisas em um espectro revolucionário que rondou o mundo. Das selvas do Vietnã, passando pela greve geral e barricadas de maio na França, impulsionando a revolução anti-burocrática contra o stalinismo na Tchecoslováquia, a “Primavera de Praga”, e chegando na revolta estudantil nas ruas do Rio de Janeiro, a vaga revolucionária pode não ter derrubado o capitalismo, mas mudou nossas vidas para sempre, na política, na cultura, nas artes, nos costumes e na sexualidade, preparando grandes saltos para frente.

O mundo em revolta

O ano de 1968 começa quente em todo o mundo. Depois de quatro anos do golpe militar de 1964 uma corrente elétrica impulsiona a juventude e o movimento estudantil a saírem as ruas massivamente contra a ditadura militar. O que estava acontecendo no mundo contaminava.

Em janeiro ocorre a chamada “Ofensiva do Têt”, o ano novo lunar no Vietnam, onde as tropas do Vietnam do Norte e da Frente de Libertação Nacional (Vietcong). A supremacia militar dos EUA é pela primeira vez posta em xeque. Em casa as coisas não vão boas para o Tio Sam. Pegam fogo mobilizações dos estudantes contra a guerra, pelo fim dos bombardeios no Vietnam e pela retirada das tropas americanas. A questão racial explode. Eclodem as grandes manifestações de massas contra a guerra em Washington e nas capitais americanas.

Na Europa, a burocracia stalinista soviética começa a ser questionada na Tchecoslováquia, com a promoção de reformas políticas de democratização que ficaram conhecidas como a “Primavera de Praga”. Mas na Tchecoslováquia a classe operária é poderosa e as reformas ganham um impulso de revolução política contra a burocracia. De janeiro a agosto de 1968 as massas tomam a iniciativa. Querem a democracia proletária e um socialismo com rosto humano. As tropas e os tanques do Pacto de Varsóvia sufocam em sangue a revolução política dos operários e da juventude tcheca.

Maio de 68 na França: um ensaio geral

O general bonapartista De Gaulle, presidente da França, declara um pouco antes dos acontecimentos que iriam abalar os franceses: “A França dorme serenamente”.

Não foi bem assim que as coisas aconteceram. A França estava em vias de conhecer um dos acontecimentos revolucionários mais importantes do século 20.  Tudo começou como uma série de greves estudantis, após confrontos com a administração e a polícia. A tentativa do governo gaullista de esmagar essas greves com mais ações policiais levou a uma escalada do conflito que culminou na noite das barricadas. Isso engendrou uma greve geral de estudantes e greves com ocupações de fábricas em toda a França. Os protestos chegaram ao ponto de levar o general de Gaulle a criar um quartel general para obstar à insurreição, dissolver a Assembleia Nacional e marcar eleições parlamentares para 23 de Junho de 1968.

O governo estava em vias de colapso (de Gaulle chegou a refugiar-se temporariamente numa base da força aérea na Alemanha), mas o stalinismo jogou todo seu papel contrarrevolucionário dissipando aquela situação revolucionária. Os operários voltaram ao trabalho, seguindo a direção da federação sindical controlada pelo Partido Comunista Francês (PCF), salvando assim De Gaulle da bancarrota. Não interessava à União Soviética, às voltas com a rebelião na Tchecoslováquia, uma revolução vitoriosa na França.

Os insurretos de Paris fizeram um ensaio geral de uma nova Comuna. Agora, em maio de 2016, as “Nuits Debouts” (Noites em Claro), com trabalhadores e jovens, ocupando as praças de Paris contra o Código de Trabalho imposto pelo governo a serviço do capital, são o melhor legado deixado pelo Maio de 1968. As memórias da Comuna de Paris de 1871 ecoam por toda a eternidade.

A ditadura militar brasileira acossada

A classe operária brasileira, a principal vítima do golpe militar de 1964, começa a recuperar sua capacidade de resistência em 1968. A luta de classes é inevitável quando a ditadura promove a expansão do capitalismo, promovendo o arrocho salarial e a repressão contra os sindicatos. No 1° de Maio em São Paulo, na festa promovida pelo governo estadual na Praça de Sé, o governador Abreu Sodré é apedrejado por centenas de operários. Em Osasco (SP) e Contagem (MG), cidades industriais, eclodem greves de massa e selvagens contra o arrocho salarial. A repressão é dura e violenta. Dezenas de operários são presos.

Mas a juventude assume a vanguarda na luta contra a ditadura. Sem esperar, mas sem substituir a classe trabalhadora, as entidades estudantis se reconstroem de forma livre do controle da ditadura. A luta contra a reforma universitária da ditadura logo ultrapassa o âmbito reivindicativo e passa para a luta pelo fim da ditadura militar.

As passeatas ganham as ruas, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na antiga capital federal, a repressão é violenta contra as manifestações. O estudante secundarista Edson Luiz é morto a tiros em uma manifestação. Em 21 de junho e nos dias que se seguiram, os estudantes tomam as ruas do Rio e expulsam a Polícia Militar. Em 24 de junho, a PM tenta tomar as ruas novamente. Eclode a “Sexta Feira Sangrenta”, com a formação de barricadas no centro da cidade. A população se revolta e apoia as manifestações. O confronto se generaliza com várias mortes entre civis e policiais. O Exército e os Fuzileiros Navais intervêm à noite com blindados e tanques.

No domingo, 26 de junho, acontece a famosa “Passeata dos 100 mil”, mas que na realidade tinha muito mais do que isso, provavelmente perto de um milhão de pessoas. A multidão com um cartaz onde se lia “Abaixo a Ditadura, O Povo no Poder” percorreu as manchetes dos jornais do mundo inteiro.

A ditadura esta acossada. Os militares não sabem o que fazer. A repressão fracassara. Era o momento das ruas darem o xeque mate e exigirem a renúncia dos militares, eleições livres e a convocação de uma Assembleia Constituinte Soberana. Mas a miopia de uma esquerda pequeno burguesa desconsiderou a oportunidade favorável para se concentrar na “guerra de guerrilhas”, causa perdida de antemão. Era o pretexto para os militares editarem o Ato Institucional n° 5, que promoveu o massacre da esquerda, a tortura e o assassinato em massa. Somente dez anos depois, em 1978 a ditadura começa a desabar sob o impacto das grandes greves operárias do ABC paulista. A classe operária pôs a pá de cal na ditadura militar.